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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.59 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2007

     

     

    LARA CHRISTINA DE MAKIMPENSA

     

     

    DE OLHOS NO CHÃO

     

    Já falei pro Josivaldo: se ele gostasse de passarinho, não colocava na gaiola. Entre gostar de passarinho e gostar de ter passarinho, tem diferença.

    Nunca gostei de ver bicho em gaiola. E vim parar aqui, neste jardim zoológico.

    Herdei o dom da minha avó que enxergava tristezas. De todos os tipos, mas principalmente as que mancham. Sim, porque nem todas têm a densidade que faz tristeza virar mancha.

    Tristeza de verdade vira uma tacha, de tamanho variado. Quando vem desses golpes que a vida desfere num repente, já nasce grande. Às vezes, começa num salpico, e vai engrandecendo, ou não. No caso do bicho enjaulado, costuma avultar. Aparece num ponto qualquer de seu corpo, escura. Quando fica do tamanho do corpo, é sinal que a morte não tarda.

    Enxergar tristeza é uma sina. Tento não olhar pra dentro das jaulas. O dia inteiro, mantenho o olhar fixo no movimento da vassoura e nos restos que o chão não rejeita.

    Também não olho pros outros, os de fora da jaula, que olham o bicho, mas não enxergam a tristeza do bicho. Não olham pra mim e não olho pra eles. Finjo que não sou um deles. Tenho vergonha.

    Eles vêm aos bandos, olhar o bicho encurralado na solidão. Falam o tempo todo. E o bicho ali, calado, aquela dignidade de quem sofre em silêncio, aquele silêncio compacto de bicho que sofre, principalmente se já viveu onde devia, longe do homem, e não esqueceu.

    Crescei e multiplicai-vos. Se Deus fosse vivo, garanto que não repetia uma coisa dessas. Ficava quietinho, olhando o movimento macio de uma onça pintada. Pintada, mas sem mancha.

     

     

    Lara Christina de Malimpensa é tradutora e intérprete de conferências. Entre os últimos livros que traduziu estão Um ponto no holograma, de Edgar Morin, e O machismo invisível, da socióloga Marina Castañeda. Carta das Ilhas Andarilhas, uma tradução do livro Lettre des Îles Baladar, de Jacques Prévert, será publicado brevemente pela Editora 34.