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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.59 n.2 São Paulo abr./jun. 2007

     

     

     

     

    ENTREVISTA

    Boaventura de Souza Santos: atenção para questões básicas de defesa da vida

     

    O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, um dos palestrantes mais freqüentes do Fórum Social Mundial (FSM) acredita na força do evento como espaço promotor de diálogo entre diferentes movimentos. É desse diálogo que ele imagina estejam saindo as melhores respostas e alternativas ao capitalismo neoliberal, o que se convencionou chamar movimento contra-hegemônico.

    Presente na última edição do FSM, em janeiro último no Quênia, o sociólogo falou sobre o diálogo intercultural que é preciso criar entre os movimentos, sobre o neocolonialismo que atinge os países pobres e sobre aquele que é um dos maiores problemas do continente africano hoje, a aids.

    Qual a importância de se realizar um FSM na África?

    A realização desse fórum no Quênia é uma das grandes vitórias do movimento, que se tornou um processo permanente. Ele teve a capacidade de sair de seu ninho original, que foi a capital gaúcha de Porto Alegre, no Brasil, o que muitos consideravam impossível. Mumbai, na Índia, em 2004, foi um grande desafio. Mas foi um grande fórum, bem organizado, com a crítica que precisávamos ouvir, que só poderia ter sido trazida por eles. Lá foi discutida a questão do fundamentalismo religioso, que nunca havia sido discutido a sério antes.

    A questão das castas também, e lá estavam 33 mil dalits, os intocáveis. Aqui, em Nairobi, se passa exatamente o mesmo: tivemos alta presença africana, o que nunca havia ocorrido e era uma das grandes deficiências do fórum. Os africamos estiveram mais presentes nas sessões onde foram discutidos assuntos que os tocam e, com isso, levaram esses temas à primeira página do fórum. Que assuntos? A questão da terra, muitos estão sendo expulsos por causa da mineração, pela especulação urbana, pelos grandes projetos turísticos.

    Outra questão fundamental é a água, pois esse é um continente com carência de água que, inclusive, está sendo privatizada, virando item de lucro, o que agrava ainda mais a situação. E tem o grave problema do HIV/aids: os suecos têm uma esperança de vida de 80 e tantos anos, enquanto em Moçambique a esperança é de 32. Essa disparidade explodiu aqui neste fórum, com a violência da desigualdade. São questões fundamentais para serem discutidas e talvez não aparecessem num fórum em outro continente.

     

     

    O FSM reúne diferentes movimentos sociais de todo o mundo. Existe alguma causa que os una?

    A força do FSM é a diversidade. A possibilidade de nos dedicarmos a algumas causas específicas e sobre elas focarmos toda a nossa atenção tem sido sempre um problema e um fator de tensão. Realizar isso é muito difícil e exige uma tradução intercultural. Porque o que é prioritário para um não é para outros, a linguagem que uns usam não é a mesma usada por outros. É claro que é possível algumas ações em comum, como foi o caso dos protestos contra a guerra, em 2003. Uma ação propositiva é complexa e pode fazer com que alguns movimentos se excluam. Mas o que ocorre? Diferentes movimentos estão concentrando sua força em diferentes áreas. A questão da água, por exemplo, não existia há cinco anos e hoje é um dos focos. A questão indígena aqui é fraca, mas na América Latina foi muito importante na construção do fórum e das agendas políticas regionais. Veja o impacto dela, de modo indireto, na Bolívia, no Equador e um pouco no Peru. Acho muito importante essa diversidade das ações, pois acaba aproveitando consensos regionais, como a luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), uma das lutas intercontinentais de maior êxito.

    A questão devastadora da aids pode ser uma força criativa para a luta social na África?

    Isso eu chamo de novos básicos. Estamos num processo que, ao mesmo tempo que discutimos as questões mais avançadas, que inclui os direitos econômicos e sociais pelos quais temos que continuar a lutar, temos que prestar atenção em coisas tão básicas como a perda da vida perante a violência. Tivemos aqui relatos apresentados sobre crianças de seis anos, de Uganda, que são obrigadas à prostituição; ou sobre a violação da integridade física constante que é a mutilação genital. Ou seja, ainda é preciso tratar do que é mais básico para a dignidade humana e o HIV, para os africanos, acaba sendo um tema agregador, pois diz respeito às famílias, às escolas, à política, a todas as instâncias da vida. Toca a política para a juventude pois, num país em que a grande maioria são jovens, não pode haver uma política para idosos como a européia e sim uma política para os jovens. Muitas organizações internacionais não entenderam isso e tentam aplicar aqui modelos europeus o que, para mim, é um novo tipo de colonialismo.

    Um Fórum na África enfoca o colonialismo mais fortemente?

    Sim, e é preciso pensar que o processo de descolonização aqui foi diferente do da América Latina, onde a independência foi mais voltada para os descendentes dos colonos, não para as populações nativas. Aqui foi para as populações nativas. É um processo político distinto, que ocorre mais de um século depois. Aqui, a maioria dos países europeus, quando descolonizaram, a partir dos anos 1950, estabeleceram em seu lugar um pacto neocolonial. Perceberam que é mais fácil explorar, expropriar, através das relações comerciais com países livres do que mantê-los como colônias dispendiosas. O mesmo se dá com o Banco Mundial que promove a democracia, um bom sistema para o capitalismo atual.

    O único colonialismo que escapou a isso foi o português, porque veio mais tarde e porque, em Portugal, a descolonização ocorreu durante a Revolução dos Cravos, em 1974. Um sinal disso foi que os dois únicos governos que foram, digamos, socialistas por algum tempo na África foram ex-colônias portuguesas, Angola e Moçambique.

    Portanto, tudo é muito recente, estamos falando de 30 anos, e há uma forma de colonialismo que ainda persiste. Aliás, muitas das ONGs que estão aqui são dos mesmos países que colonizaram o continente, são as mesmas missões das igrejas católica e protestante. Claro, ainda bem, estão numa posição progressista, com uma agenda antineoliberal, na luta contra a pobreza. Porém, no fundo, as mesmas relações neocoloniais ainda estão presentes.

     

    Rafael Evangelista
    colaborou Renato Rovai