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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.59 no.2 São Paulo Apr./June 2007

     

     

    LANCAMENTO

    BRASIL/ÁFRICA: FRONTEIRAS INDISSOCIÁVEIS

     

    Num momento em que a história da África e dos africanos passa a ser obrigatória nos ensinos fundamentais e médios, iniciativas como a das organizadoras do livro Brasil/África - como se o mar fosse mentira devem ser altamente valorizadas. A variedade de temas e a erudição com a qual, em geral, são tratados, fornecem grande material de reflexão sobre a disciplina de história da África, a despeito da diferente qualidade dos artigos, ensaios e poemas que compõe o livro.

    A leitura da obra trouxe-me distintas sensações, ambas diretamente ligadas à sua grande multiplicidade e heterogeneidade constitutiva. A primeira delas refere-se à dificuldade de apresentar ao leitor, em poucas palavras, um empreendimento tão vasto, que contém artigos de história e crítica literária, além de ensaios e poemas. Essa é uma característica do livro explicitada no prefácio: a coletânea apresenta "uma certa falta de unidade entre os textos, percorrendo terrenos variados, procurando dar conta da rede de contatos, do passado à contemporaneidade, voltando-se alguns para a África que permanece no Brasil, ou para os problemas vividos pelos descendentes dos que viveram o tristíssimo capítulo da escravidão".

     

     

    Essa mesma diversidade, em contrapartida, traz à tona uma segunda sensação de grande prazer, ao oferecer múltiplas leituras sobre as relações entre África e Brasil e, junto com isto, certamente uma ampliação do repertório do leitor, dificilmente versado de antemão em tantos campos do conhecimento.

    O livro divide-se em três partes. A primeira delas composta de dois breves ensaios. O de Alberto da Costa e Silva, diplomata de carreira e estudioso de fôlego da história da África e de suas relações com o Brasil, que relata a memória de sua primeira visita à cidade de Lagos na Nigéria, e o segundo, do músico Martinho da Vila, ressaltando a importância da influência da música africana em diversas expressões rítmicas brasileiras. Este segundo texto introduz um dos sentidos que permeiam todo o livro: a interinfluência constante entre as duas margens do Atlântico sul.

    A segunda parte, composta por diversos textos de maior densidade acadêmica, apresenta estudos de crítica literária e de história sempre tendo como tema principal esta via relacional entre África e Brasil. Como exemplo, os artigos de Rita Chaves, Tânia Macêdo, Marcelo Bittencourt, Elisalva Dantas e Carmen Secco trabalham, em linhas gerais, com relações entre as literaturas brasileira e africanas de língua portuguesa. Tais autores fornecem elementos para compreender a apropriação criativa de temáticas ou autores brasileiros por parte de autores africanos, mas sempre considerando os espaços contextuais de sua produção, com destaque para o processo de luta pela independência nesses países. Em especial o artigo de Rita Chaves mostra como escritores de Angola, Cabo Verde e Moçambique, ao longo do século XX, criam suas próprias raízes nativistas ainda que tenham usado imagens utópicas de um Brasil liberto.

    Já Tânia Macêdo procura mostrar, na literatura africana, a presença do "malandro" – um tipo social que com freqüência julgamos exclusivamente brasileiro, e realiza, dessa forma, uma aproximação entre as sociedades dos dois lados do Atlântico, demonstrando que ambas, marcadamente excludentes, configuram o terreno para a presença desse tipo social, que sobrevive nas brechas sociais, à margem da ordem.

    Dois dos artigos voltados para o estudo histórico também podem ser tomados como exemplo da pertinência da temática do livro. Milton Gurán e Flavio Gomes preocupam-se com a configuração de identidades de grupos populacionais em ambas as margens do Atlântico. Gurán aborda as especificidades da formação do grupo de "brasileiros" no Benim, passando por diversos períodos históricos, desde o período do tráfico escravo até a contemporaneidade, e ressalta a importância da experiência dos escravos em terras brasileiras como elemento importante para a formação de laços identitários na África. Praticamente no sentido inverso, Flavio Gomes apresenta um estudo sobre a reconfiguração das identidades étnicas africanas em cidades brasileiras, levando em consideração não apenas as diferentes origens culturais africanas dos escravos mas, também, o espaço de sua ressocialização no contexto escravista brasileiro.

    Finalmente, a terceira parte é de poemas que, de alguma forma, sintetizam as percepções expostas ao longo do livro, mostrando ao leitor o quão indissociáveis são as duas margens do Atlântico. A idéia central é que as duas margens atlânticas devem ser vistas como fronteiras porosas, plenas de trocas e relações, e a compreensão de cada uma delas só se faz possível com o conhecimento de ambas. Assim, apesar da possibilidade o mar como mentira, é preciso refletir numa nova dimensão atlântica, considerando o próprio oceano como espaço privilegiado de constituição de histórias africanas e brasileiras.

     

    Alexsander Gebara