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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.59 n.2 São Paulo abr./jun. 2007

     

     

    PEDRO BIONDI

     

     

    A FLORESTA, VISTA DE BAIXO

     

    Essas sumaúmas poderiam realmente impressionar vistas desse jeito, para além da raizama descomunal. Soam como um comitê de adultos recriminadores, incriminadores: vertiginosas e moucas. Sobra pouco para a luz, uma pequena capoeira no firmamento, e ela vem cegando, procurando desfolhar caminho. Acho que agora conheço a sensação de um líder de doces massas sendo docemente carregado pela multidão. Ou tudo à minha volta lembra um louco brinquedo infantil, pelúcias de escorpiões, aranhas, pássaros coloridos, um jacaré, todos flutuam e riem, flutuem e riam, congelados em espuma, como no universo de sonho de um bebê que sobrevoa as grades do berço-lar. Só esta a Amazônia-pra-todos que consegui. Lutei, lutei muito: até onde deu. Busquei me arrebentar arrebentando quem estivesse em volta, puxei todas as energias que me restavam em murros, urros, ursos... giros. Mas quem mata a água? Risos. Quem ganha uma guerra contra partículas? Quando o inimigo é o chão ou o ar? Cada chute que dei era como chutar o escuro, em instantes aquela calda-viva voltava e preenchia o vazio, comendo o vácuo. Do que lembro: as sumaúmas de rosto indecifrável me julgaram e quatro rudes caboclos me arrebentaram o português e me jogaram ao mar, gringo em meu próprio mapa, um oceano de antenas, perninhas e ferrões, aprende a nadar alemão, por ali um representante de cada preciosa espécie da floresta equatorial, uma procissão de zoologia ou alucinada arca-de-noé sem noé, até uma sucuri que desistiu de se enrolar no que não quebra, pobre monstra inutilizada, seria o mais horrível de Dante ou Cousteau não fosse essa total anestesia e o riso babado que me curva a boca depois dos zilhares de aguilhadas de ácido fórmico. Entre maoris ou pigmeus eu tinha um transe de caramuru ou oferecia espelhos, mas esse turba invertebrada é absolutamente surdo-muda, chão mais fluido, adiós belas damas de españa...

     

     

    REINALDO

     

    Driblar? Não é bem a palavra. Ele dá uns cortes que fazem o cara procurar a bola nas placas, pedala como quem caça um coelho na cartola, se movimenta em campo como se visse tudo do alto, de helicóptero, ou desenhado numa lousa. Aplica um lençol que é quase uma cortesia, de tão plástico. Tão plástico que o cara nem fica com raiva, sabe? Dá um sorriso de humilhado cordial, de "vocês viram o que eu vi?", e não seria de estranhar se se ajoelhasse para lustrar a chuteira dele. Mas se o cara é desleal ele rosna com os pregos da sola, nunca vi ninguém dividir com tanto sangue, com os dentes rilhados, a coxa triangular quase estourando de dentro para fora, pintura gritando para vazar das linhas do desenho. Não é corpulento mas, bom brasileiro, é capaz de derrubar zagueiro com puxão de Dener, extrai que nem carrapato mão que lhe gruda na camisa, se preciso arranca cabelo ou arranha rosto no toma-lá do escanteio. A gente quase esquece o chutador que vive ali dentro: trivela, bicuda, folha-seca, acorda-coruja, peito-de-pé, colocadinha nana-nenê, chapa simples pra empurrar pra dentro, cobertura. Calcanhar, se necessário – ou se maximamente desnecessário. E carrinho pra não ensejar capricho da torcida, que de tempo em tempo tem que arranjar um boneco de judas, um bode pra expiar. Único do time que eu não vi chorar quando a gente foi campeão da segundona, seis anos depois de o clube ter caído, quatro depois de a gente ter entrado e um depois de a gente ter feito uma temporada de arrebentar e perdido a final com gol anulado e pênalti inexistente, sem falar nos vários resultados que iam coincidindo em favor do adversário. Único do time que não desceu pra mulherada comprada no vestiário. Puta que pariu, o que o bicho jogou nesses dois anos não tá no gibi. Fez gol aos 2, aos 45, aos 49. Levou tesoura criminosa pra gente ganhar uma expulsão. Fez gol com drible-da-vaca, gol de barriga e gol de raiva, afundando o goleiro. Perdeu pênalti e fez questão de bater e converter o seguinte, no mesmo canto. Perdeu o pai e parece que jogou com mais garra, parecia até mais mágoa do que homenagem. Aliás, do pouco que ele fala – sempre daquele jeitão caladão –, disse que o velho nunca apoiou: a última coisa que eu queria é te ver correndo atrás de uma bola no meio de um monte de marmanjo. Antipático, bastante. Parece que comigo ainda um pouco mais – o pai. Ele, de sorriso nublado, de não dar intimidade pra ninguém – principalmente depois que uns chimpanzés começaram com brincadeirinha pra cima da gente –, mas gente boa incontestável. Tomamos umas tubaínas depois que voei na cara de um deles. Três jogos na primeira divisão e veio sujeito managear. Possibilidade de pular de trezentos pra trinta mil. Ele sabia que fechar na hora era bobagem, fintou, tenho certeza de que vai fechar pelo dobro. Me contou como quem vê chegando o trem do alívio, me revelou um apelido de bicho miúdo e me deu um beijo de mulher – de mulher que tirou das costas as toneladas de um segredo.

     

     

    Pedro Biondi, 31 anos, é jornalista e escritor. Tem textos literários publicados em sites e revistas e na antologia Todas as gerações – o conto brasiliense contemporâneo (LGE,2006). É autor do livro inédito de contos Cheiro de leoa. Trabalha como editor de primeira página da Agência Brasil, noticiário da Radiobrás na internet. Nasceu em São Paulo e mora em Brasília desde 2005.