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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.59 no.3 São Paulo July/Sept. 2007

     

     

     

     

    ANTROPOLOGIA

    Como a sociedade "não" enxerga os invisíveis e os surdos

     

    "Sou um homem invisível. Não, não sou um fantasma como os que assombravam Edgar Allan Poe... Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos – talvez se possa até dizer que possuo uma mente. Sou invisível, compreendam, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver". A recusa do olhar do outro como negação da sua própria humanidade motivou Ralph Ellison em seu romance Homem invisível, de 1952, a relatar a experiência da discriminação racial nos Estados Unidos.

    Inspirado em Ellison e pela idéia da invisibilidade, o filme Um dia sem mexicanos (2004), do diretor mexicano Sergio Arau, tenta imaginar o que aconteceria com a Califórnia se toda a população hispânica residente no estado, repentinamente, desaparecesse. Bastante criticado por "brincar" com o preconceito, para denunciá-lo, o filme acabou inspirando, em maio de 2006, o protesto "Um dia sem imigrantes", quando boicotes foram realizados em grandes cidades dos Estados Unidos com o objetivo de paralisar o país durante 24 horas. O objetivo era demonstrar o peso do trabalho dos imigrantes na economia americana, num momento em que o Senado estudava endurecer as leis do país contra a entrada de estrangeiros para trabalhar no país e forçar a regularização da situação dos imigrantes ilegais.

    HUMILHAÇÃO SOCIAL O filme e o protesto exploraram o que pode acontecer quando pessoas socialmente invisíveis desaparecem. Mas os invisíveis existem por conta daqueles que se recusam a enxergar. O que dizer, então, dessa relação entre invisibilidade e cegueira social? Essa é uma das questões do livro Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (Editora Globo, 2004), do psicólogo Fernando Braga da Costa. Durante nove anos e pelo menos uma vez por semana, Fernando trabalhou junto com os garis da Universidade de São Paulo, varrendo calçadas e ruas, recolhendo folhas, papéis, plásticos e sucatas, limpando lixeiras, capinando grama, retirando o barro acumulado nos canteiros. Por meio dessa convivência com os trabalhadores, dentro e fora da cidade universitária, pôde compartilhar e ouvir deles o sofrimento vivido nas situações de humilhação social pelas quais passam cotidianamente.

    O autor descreve o "episódio do uniforme". Na companhia de Antônio, um dos garis com quem trabalhava, Fernando precisou passar por dentro do prédio do Instituto de Psicologia, onde fazia o seu mestrado. Vestindo o uniforme de gari, sua expectativa era a de que seus colegas de classe e professores o reconhecessem e se surpreendessem. Expectativa frustrada. A surpresa foi dele. "Não fui reconhecido. E as pessoas pelas quais passávamos não reagiam à nossa presença. Talvez apenas uma ou outra tenha se desviado de nós como de obstáculos, objetos. Nenhuma saudação corriqueira, um olhar, sequer um aceno de cabeça. Foi surpreendente. Eu era um uniforme que perambulava: estava invisível, assim como Antônio. Saindo do prédio, estava inquieto; era perturbadora a anestesia dos outros, a percepção social neutralizada". Vários outros episódios semelhantes a esse são narrados por Fernando, que experimenta, assim, uma situação vivida assiduamente pelos garis.

    Segundo o psicólogo, a invisibilidade pública caracteriza a vida de empregadas domésticas, faxineiros, porteiros, garis e outros trabalhadores subalternos, que deixam de ser vistos como pessoas e passam a ser tratados como coisas. Aparecem apenas os uniformes e os lugares varridos e limpos. Sua subjetividade é totalmente ignorada e, mais do que isso, a própria humanidade dessas pessoas, deixa, assim, de ser reconhecida.

    Tanto quanto a invisibilidade e a humilhação social que a acompanha, a cegueira pública deve ser entendida como um fenômeno político e, ao mesmo tempo, psicológico, considera o pesquisador. Político porque relacionado às desigualdades históricas entre classes sociais. Portanto, há interesses de classe informando a cegueira – aqueles que se recusam a ver o outro, trabalhador subalterno, porque não o reconhecem como um igual. E a cegueira pública, segundo Costa, também é psicológica, na medida em que participamos pessoalmente (mesmo que sem o perceber) da sua manutenção. Ou seja, não se trata apenas de uma determinação histórica – a distância social entre pessoas de classes distintas. E, nesse caso, o que vale lembrar é que ela pode ser superada. Reconhecendo-se, por exemplo, a presença do outro através de uma genuína conversa. Ao reconhecer o seu direito de falar e ser ouvido, o outro passa a ser visto.

     

     

    EXCLUSÃO INCLUSIVA Mesmo em contextos que se propõem a ser mais inclusivos, lutar contra a invisibilidade ainda é um desafio. Trabalhando como intérprete de língua de sinais (Libras) no curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Paulista (Unip), de Campinas, há 3 anos, a pedagoga Vanessa Martins alerta, a partir da sua experiência com alunos surdos que, muitas vezes, a inclusão desses estudantes apenas mascara uma forma mais sutil e discreta de exclusão. A acessibilidade dos alunos surdos ao ensino superior é garantida por lei, desde 1999 – as universidades são obrigadas a contratar intérpretes de Libras para estudantes surdos. A despeito do intérprete presente na sala de aula, a presença desses alunos (e dos próprios intérpretes) continua invisível para alunos e professores.

    "A língua de sinais tem uma gramática diferente do português. E muitos surdos foram alfabetizados em Libras. A língua portuguesa é sua segunda língua. Muitos professores não reconhecem essa diferença durante a aula e na hora de avaliar seus alunos surdos, quando exigem uma prova escrita em português, por exemplo", lembra.

    Vanessa conta um episódio em que, na apresentação de um seminário, um aluno, com o consentimento do professor, apagou as luzes da sala, ignorando completamente seu colega surdo e a intérprete. "Como, após tantos meses de contato, esqueceram que minhas mãos precisavam das luzes para dialogar com o aluno surdo? Por que o professor aceitou passivamente a situação; será que ele também esqueceu?"

    Para a pedagoga, alunos surdos e não-surdos devem compartilhar a mesma sala de aula. Mas não se pode ignorar que usam uma língua distinta, o que traz uma série de implicações para o seu aprendizado. "O intérprete de sinais, por exemplo, interfere no conhecimento que está sendo transmitido para o aluno. Interpretar não é um ato mecânico e, por isso, a interação entre o professor, o intérprete e o aluno é muito importante. Trata-se de uma questão pedagógica e não meramente técnica". Porém, enquanto a dinâmica escolar não for alterada e a aula continuar a ser pensada para quem ouve e fala, os surdos, embora presentes na sala, continuarão a ser tratados como invisíveis.

     

    Carolina Cantarino