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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.59 n.3 São Paulo jul./sep. 2007

     

    CINEMA

    DOCUMENTÁRIO NAS ALTURAS DA SERRA DO CAPARAÓ

     

    Caparaó, documentário de Flávio Frederico, vencedor do Festival "É tudo verdade" de 2006, acaba de estrear em circuito nacional. Baseado em pesquisa cuidadosa, o filme busca reconstituir, por meio de depoimentos e imagens atuais e de arquivo, o primeiro episódio de luta armada contra a ditadura militar no Brasil, nos anos 60. Com trilha sonora bem cuidada, montagem afinada e direção consciente, Caparaó seduz pelo tema, teor dos testemunhos e talvez, principalmente, por recriar uma atmosfera de idealismo, tão rarefeita nos dias de hoje.

    O foco é a Serra do Caparaó, na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. Mas o filme varre o território nacional em busca dos personagens do episódio. Aprende-se que, na verdade, o episódio Caparaó nasce no Sul – mais precisamente no Uruguai – de onde Brizola, então exilado, envia dinheiro e instruções ao grupo de ex-militares expurgados pelo regime. Esse grupo se organiza em Porto Alegre, e a primeira tentativa de guerrilha, frustrada, se dá em Criciúma. De lá o grupo parte para Caparaó, no sudeste do país, para estruturar uma resistência no campo.

    Apoiados pelo governo de Fidel Castro e na expectativa de criarem uma "Sierra Maestra" brasileira, os guerrilheiros do Caparaó passam bom tempo nas montanhas se preparando, à espera de uma ordem para entrar em ação que nunca chega. Com saúde e moral abalados nessa espera, os militantes acabam presos antes mesmo de a guerrilha ser efetivamente deflagrada. O episódio resultou na morte de um dos revolucionários, assassinado pelo exército.

    Alguns dos depoentes reconhecem o caráter "Brancaleone" ou quixotesco da empreitada, mas não escondem o orgulho e a certeza de que tiveram um papel no combate à ditadura. No conjunto, Caparaó procura recriar a atmosfera de utopia revolucionária, idealismo e até uma boa dose de ingenuidade, alguns reconhecem, daquele período, talvez incompreensível para as gerações mais novas.

    Em Caparaó, o diretor Flávio Frederico opta por um mosaico de entrevistas. O filme mescla película e digital. A câmera deixa e volta ao tripé com alguma freqüência, numa variação de registro e estilo que pede o olhar atento, numa constante vigília. Para Fernão Ramos, pesquisador e professor de cinema do Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp, essa é uma produção representativa do documentarismo contemporâneo: "Caparaó parte do documentário clássico, ou seja, que estabelece asserções sobre o mundo, sobre um determinado momento histórico, mas usa também depoimentos de personagens que viveram a época, imagens de arquivo, voz over na forma de texto, etc.". Ramos acredita que o trauma da ditadura ainda deve render muitas produções. "Parte da geração que viveu intensamente o período continua produzindo e, assim, o tema volta freqüentemente à tona, numa espécie de ‘eterno retorno’. E não apenas no cinema documentário, mas também no cinema de ficção. Somados ficção e documentário, chegamos tranquilamente a 20 ou 30 filmes versando sobre a ditadura", observa o pesquisador.

     

     

    Sob o signo do cinema de Eduardo Coutinho, Caparaó parece bem-sucedido em seu movimento de reconstituição dos conflitos interiores de seus personagens e dilemas morais do grupo. Os momentos de controvérsia ou frustração dão vida à narrativa e respondem por algumas das melhores passagens do filme. Se Caparaó não é inovador, é um filme sedutor pela eficiência.

     

     

    Como surgiu a idéia do filme?
    FLÁVIO FREDERICO Em 2002/2003 eu estava fazendo um documentário chamado Serra, sobre a Mantiqueira, uma espécie de road movie em que perguntava onde terminava a serra. Acabei chegando à conclusão de que era no maciço do Caparaó. Como já sabia alguma coisa sobre a guerrilha, aproveitei a ida para pesquisar. Achei três ou quatro personagens da época e que foram fundamentais para o filme. Deixei Caparaó com muita vontade de contar essa história. Montei o projeto, viabilizei o custo de quase R$500 mil pela Lei Mendonça e fui atrás de outros guerrilheiros. Assim nasceu o filme, a partir do interesse despertado pela montanha.

    Quanto tempo durou a pesquisa?
    Na verdade, a pesquisa durou o filme inteiro. A fase inicial durou uns seis meses, enquanto eu ainda terminava o Serra e começava a viabilizar o Caparaó. Depois fiz pesquisas no Rio, São Paulo e na região de Caparaó. O melhor documento que encontrei foi um trabalho acadêmico de Esther Cooperman. O escritor capixaba José Caldas também me ajudou muito. Ele está lançando um livro sobre a guerrilha de Caparaó agora, junto com o filme, e me deu o contato de todos os guerrilheiros.

    Como foi o trabalho de roteiro?
    Havia um roteiro inicial que funcionou como guia. Decidi, desde o início, que o filme não teria narrador, que a história seria contada pelo encadeamento dos depoimentos. Então o roteiro se fez muito na montagem, o que demorou cerca de um ano e meio. Algumas pessoas me ajudaram a formalizar o roteiro: Mariana Pamplona, Priscila Torres, Silvio Da-Rin, e o historiador Paulo Canabrava. Quanto aos recursos, a maior parte veio pela Lei Mendonça e, agora, recebemos R$ 90 mil da Petrobras, via Lei Rouanet, para distribuição pelo sistema Rain [digital].

    Houve dificuldades em viabilizar o projeto devido ao tema da ditadura?
    O exército não cooperou, mas a PM de Minas foi muito receptiva. Para eles, esse episódio é motivo de orgulho, ainda que Caparaó sempre tenha sido meio ridicularizado, tanto pela direita quanto pela esquerda. Uma das primeiras matérias que li sobre Caparaó na internet trazia o título "O incrível exército de Brizoleone". Isso me seduziu.

    Que suportes foram usados na filmagem?
    Usei tudo. Gosto disso em documentário. Os depoimentos sempre tentei fazer com DV-Cam,com o modelo de câmera grande, cujo resultado é superior. Os depoimentos menos centrais captei com a minha câmera PD-150. Nas filmagens externas, de paisagens, e mesmo alguns retratinhos, usava uma câmera 16mm. A paisagem era muito presente na história, e isso pedia a película. Usei, ainda, algumas imagens que eu já tinha rodado para o Serra em Super-16; uma câmera mini-DV em algumas cenas; material de arquivo em vídeo; e recuperei imagens de Caparaó, de época, encontradas nas sobras da Tupi do acervo da Cinemateca Brasileira.

    Como foi o relacionamento com os personagens?
    Em geral, as pessoas colaboraram muito, abrindo seu coração, dividindo as suas lembranças, pois queriam contar bem essa história. O caso mais complicado foi o do major Zezinho, ex-funcionário do serviço secreto da PM, que, inicialmente, se negou a gravar. Mudou de idéia, mas o depoimento foi meio tenso.

    E como foi colher o depoimento dos delatores?
    Eles não têm essa consciência, na verdade. Para o regime eles viraram heróis, a comunidade local era conservadora. No fundo, eles têm orgulho de tudo isso.

    Em Caparaó se percebe um ou outro momento de encenação...
    Fui reticente no início, porque acho que sempre fica ruim. Mas os dois relatos sobre a prisão dos guerrilheiros eram tão diferentes que percebi ser um bom momento para dar uma "tensão" no filme. Resolvi, então, filmar como se um repórter documental estivesse ali. Fizemos sem luz, em condições precárias, mas com a produção de arte em cima de detalhes precisos, orientada pelo Amadeu Felipe, o líder da guerrilha.

    E a foto do cartaz de Caparaó, qual a história dela?
    Essa foto está no arquivo de O Estado de S. Paulo, no acervo do jornal Última Hora, que cobriu muito bem o evento na época. Ela tem o valor simbólico de ter salvo a vida dos guerrilheiros. Acredita-se que, graças à divulgação dessa foto e dos RGs dos prisioneiros, por iniciativa do coronel Amaral, da PM mineira, o exército decidiu não matar os revolucionários, apesar de ter assassinado um deles – curiosamente, o único civil.

     

    Por Alfredo Luiz Suppia