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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.59 n.4 São Paulo  2007

     

     

     

    SAÚDE

    Ontem, contra-indicados; hoje, saudáveis

     

    O vinho é o mais notável de todos os remédios; onde falta o vinho, os remédios se fazem necessários". A citação está no Talmud, livro sagrado dos judeus, e confirma as propriedades benéficas da bebida, cujo uso terapêutico tem registro de 2000 a.C., encontrado no Egito, relatando seu uso em ungüentos para tratamento de doenças dermatológicas. Para o chocolate, a boa recomendação vem da Associação Americana do Coração: os flavonóides, mesmo antioxidante encontrado no vinho tinto e também no principal ingrediente do chocolate, o cacau melhora a circulação, num efeito que baixa a pressão sanguínea, reduzindo o risco de surgirem doenças do coração. Falta resgatar mais um vilão: a cannabis sativa, nome científico da maconha, com efeitos benéficos reconhecidos por estudos realizados há 50 anos, pela então Escola Paulista de Medicina (hoje Unifesp), como antiepilético e para diminuir a náusea e os vômitos provocados pela quimioterapia.

    Numa reversão de expectativa, qualquer paciente pode receber de seu médico uma das sugestões acima para amenizar algum mal. Porém, é senso comum que excesso de álcool, de qualquer espécie, leva a problemas físicos e sociais. Comer muito chocolate pode resultar no aumento do colesterol ruim, além do peso a mais na balança. Assim como o consumo da maconha tem conseqüências reconhecidamente danosas ao usuário. De alguns anos para cá, entretanto, a ciência tem revelado o lado bom de substâncias em geral demonizadas pela sociedade. O chocolate, banido em dietas com restrição de açúcar e gorduras, faz bem para o coração, assim como o consumo moderado de vinho confere vida mais longa e pode ser um aliado dos hipertensos. Substâncias derivadas da maconha são a base de medicamentos para várias doenças. Eliane Said Dutra, nutricionista da Universidade de Brasília (UnB) considera que, no caso dos alimentos, é natural atribuir-lhes papéis ou funções. "Isso vem de costumes, de falta de investigação consistente ou divulgação inadequada, entre outras possibilidades. Ao longo da história, mitos são confirmados ou rechaçados, em função de interesses e intenções que os transformam em objeto de pesquisa, ou não", diz ela. A ciência possui muitas verdades provisórias, mas que, freqüentemente, são encaradas como soluções definitivas, afirma.

     

     

    Na opinião do médico e enófilo Sérgio de Paula Santos, sempre se soube dos efeitos terapêuticos do consumo moderado do vinho como fator preventivo de várias doenças, mas se reluta em recomendá-lo para evitar o risco do abuso do álcool. "Porém, isso está mudando e já é comum clínicos aconselharem pacientes idosos a tomarem uma taça de vinho durante as refeições", diz. Paula Santos cita algumas de suas propriedades, largamente estudadas: como aperitivo, aumenta a salivação e prepara a atividade estomacal; seu efeito tranqüilizante favorece a perda de peso nas pessoas obesas; por ser tomado durante as refeições, de maneira lenta, os níveis de álcool no sangue não atinge proporções intoxicantes ao fígado, como acontece com os destilados.

    Uma pesquisa de longa duração da Universidade de Oulu, na Finlândia, concluiu que o consumo moderado de vinho pode fazer com que as pessoas vivam mais. Publicado no Journals of Gerontoly, o estudo acompanhou por 30 anos homens nascidos entre 1919 e 1934, para determinar a relação entre consumo de álcool, qualidade de vida e longevidade. Segundo um dos pesquisadores, Timo Strandberg, a taxa de mortalidade foi 34% menor nos homens que preferiram o vinho ao invés da cerveja ou outras bebidas alcoólicas.

    DOCE TRATAMENTO Talvez o mais difícil nessa história seja estabelecer o limite entre moderação e excesso. "O papel da mídia é buscar a informação científica na melhor fonte, de forma a atender demandas sociais, traduzindo-a para a população, com conteúdo correto e sem sensacionalismo", defende Eliane Dutra. Divulgação cuidadosa é o que requer, por exemplo, o estudo de um grupo de cientistas do Departamento de Pesquisas em Reumatologia e Inflamações da Universidade de Gotemburgo, na Suécia. Eles conseguiram diminuir o risco de desenvolver artrite reumatóide em camundongos, dando a eles pequenas doses de álcool. A ingestão de água com 10% de etanol estimulou a produção de testosterona levando a uma série de eventos antiinflamatórios. "O desenvolvimento de artrite erosiva foi quase totalmente anulado", escreveram os autores na revista Proceedings of the National Academy os Sciences (Pnas).

    Com relação à pesquisa da Associação Americana do Coração que aponta os benefícios dos flavonóides, a nutricionista alerta que é o grau de participação das amêndoas do cacau na composição do chocolate que determina o benefício de seu consumo. "Os melhores exemplos são o cacau em pó e o chocolate meio-amargo de boa procedência". A maioria das pessoas come chocolate ao leite, que não possui uma grande concentração de flavonóides. Ela explica que estudos epidemiológicos associam a ingestão de flavonóides com a redução de risco cardiovascular e de certos tipos de câncer, em função de sua capacidade de: reduzir o estresse oxidativo, inibir a oxidação de lipoproteínas de baixa densidade assim como a agregação plaquetária; agir com vaso dilatador; atuar como agente imunomodulador e antiinflamatório em diferentes fases do processo tumoral. Os níveis de flavonóides contidos no cacau são maiores do que em alimentos reconhecidos como fonte dessa substância – frutas, vegetais e alguns tipos de chá.

    MACONHA COMO REMÉDIO? O uso terapêutico de substâncias proibidas é uma das grandes polêmicas no meio científico. O primeiro trabalho sobre efeito terapêutico da maconha usava uma de suas substâncias ativas como antiepilético. Doentes que não melhoravam usando medicamentos disponíveis usaram o canabidiol (CBD), que não tem efeito alucinógeno no cérebro, e tiveram sensível melhora no quadro das convulsões. "Um dos pacientes tinha ataques pelo menos uma vez por semana, implicando em baixa qualidade de vida e restrição ao trabalho", conta Elisaldo Carlili, farmacologista da Unifesp e pioneiro nas pesquisas sobre usos terapêuticos da maconha, na então Escola Paulista de Medicina. "Usando o canabidiol, ele ficou seis meses sem ter uma crise", diz. Ele explica que mesmo que existam medicamentos muito eficientes no mercado, na medicina nada é 100% eficiente. "Sempre haverá pacientes refratários a algum remédio; em tais casos, como com os anti-nauseantes feitos a partir da cannabis sativa, justifica-se o uso de medicamentos derivados da maconha", afirma.

    Carlili informa haver mais de uma dezena de estudos comprovando que substâncias existentes na maconha podem aliviar a dor neuropática, que atinge uma ou mais partes do corpo e está associada a doenças que afetam os nervos periféricos, a medula espinhal ou o cérebro. Já existem dois medicamentos para este tipo de dor: um deles é o Sativex, feito na Inglaterra, à base de dois extratos da maconha com teor mais elevado de canabidiol; e o Delta9 com THC, outro princípio ativo da planta.

     

    Patrícia Mariuzzo