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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.59 no.4 São Paulo  2007

     

     

     

     

    NATIVIDADE

    Paisagem e patrimônio do antigo norte de Goiás, após vinte anos de tombamento

     

    Em outubro completaram-se vinte anos do tombamento do município goiano de Natividade pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A cidade do século XVIII, no sudeste do Tocantins, preserva quase íntegra sua arquitetura colonial singela, que se destaca pelo apelo vernacular.

    O processo de tombamento, na década de 1980, prometia ser um modelo de como a preservação de interesse arquitetônico e histórico poderia estar integrada à preservação da paisagem natural, ao indicar a proteção da Serra de Natividade, fator de origem da cidade. Seu vínculo com o núcleo histórico é evidente: lá estão os vestígios das primeiras atividades de extração de ouro como ruínas de diques, canais e de abrigos residenciais.

    Hoje, vinte anos depois do reconhecimento de seu valor arquitetônico, urbanístico e paisagístico, seria apropriado refletirmos sobre como podemos nos re-apropriar e renovar essa paisagem.

    A SERRA DE NATIVIDADE A proteção da vertente ocidental da Serra acenava como uma revigorante expressão do conceito de patrimônio, que prometia integrar a paisagem construída à paisagem natural. Entretanto, por questões que fogem ao interesse preservacionista, foi excluída, o que foi sem dúvida uma perda para a cidade e para a compreensão do processo histórico e de ocupação do interior do Brasil.

    Uma revisão crítica do perímetro de tombamento é imprescindível: além da importância na composição da paisagem, e do valor histórico e arquitetônico relacionado às ruínas, a Serra tem um valor agregado como recurso natural (é a principal fonte de água que abastece a cidade), argumentos que são suficientes para seu tombamento.

    PATRIMÔNIO IMATERIAL A discussão sobre a re-apropriação da paisagem de Natividade, porém, não se esgota na revisão de seu tombamento. A cidade reúne uma diversidade de referências culturais como celebrações, ofícios e saberes, elementos de uma identidade social e cultural.

    A tradicional ourivesaria de Natividade subsistiu por quase três séculos, provavelmente em função da mineração nas fazendas ao redor da cidade, que ainda prossegue. Até duas décadas atrás, de acordo com alguns mestres de ofício, ainda era utilizada uma técnica de fundição arcaica, a partir de moldes de barro e óleo vegetal *.

    A milenar filigrana, de produção semelhante à de Portugal e Espanha, se torna singular e local ao incorporar símbolos da cultura popular, como as jóias com a pomba do Divino, e, atualmente, é objeto de estudo para ser registrada como patrimônio imaterial.

    No calendário religioso, a Festa do Divino é a mais intensa e importante das celebrações: movimenta toda a comunidade em sua expectativa, produção e fruição. A pomba do Divino Espírito Santo é um símbolo recorrente nas festas e nos ofícios: está nas bandeiras, uniformes dos foliões, pratos e copos da festa, nas jóias e sob a forma de doces.

    A produção artesanal de bolos – que remetem às tradicionais receitas coloniais da cultura caipira (como o bolo de arroz na folha de bananeira) e doces, a produção de licores e cachaças, as técnicas de cestaria e de baús de couro e a construção com adobe também perduram, ainda que precariamente.

    Ofícios e celebrações, que congregados ao conjunto arquitetônico e à Serra de Natividade – onipresente como um olho que tudo vê – convertem a cidade em uma autêntica experiência cultural.

    PAISAGEM CULTURAL De acordo com essas características podemos considerar como adequado o conceito de "Paisagem Cultural" para a cidade, usado quando há uma condição local ou regional em que as celebrações, ofícios e saberes se relacionam com a paisagem natural e se constróem como um sistema, de forma a constituir uma experiência singular.

    "Sua característica fundamental é a ocorrência em uma fração territorial, do convívio singular entre a natureza, os espaços construídos e ocupados, os modos de produção e as atividades sociais e culturais. (...) Para que a paisagem cultural se configure, esses fatores devem guardar uma relação complementar entre si, capaz de estabelecer uma identidade que não possa ser conferida por qualquer um deles isoladamente (...)", como lembra Luis Fernando de Almeida, em artigo do jornal O Globo.

    Em consonância com a recomendação da Unesco sobre a conservação integrada das áreas de paisagem cultural, a promoção de um modelo de desenvolvimento sustentável é uma excepcional alternativa às rígidas relações sociais e políticas que caracterizam Natividade – assim como as demais comunidades onde pecuária e latifúndio predominam na paisagem econômica regional.

    O resgate das técnicas de produção artesanal integrado à arquitetura e ao calendário das celebrações possibilitaria redesenhar o austero destino rural de Natividade sob uma nova perspectiva, com qualidade de vida e cidadania para a comunidade, que finalmente, poderia se apropriar de modo simbólico e pragmático de sua herança cultural.

    Vinte anos depois, ampliar o significado da preservação de Natividade e promover seu desenvolvimento sustentável é reafirmar a importância histórica e cultural que levou à sua inscrição nos Livros de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Histórico e de Belas Artes em 16 de outubro de 1987.

     

    Raquel da Costa Nery é arquiteta
    e urbanista do Instituto do
    Patrimônio Histórico e Artístico
    Nacional (Iphan) desde 2006

     

     

    NOTA

    * A fundição do ouro no Brasil foi inserida através dos escravos provenientes da atual região de Angola, Moçambique, além dos grupos Minas – Yorubanos, Gegê, entre outros. Estes grupos foram selecionados em razão de sua experiência e domínio das técnicas de metalurgia e mineração na África – uma mão-de-obra especializada para atender às novas necessidades e modos de produção da Colônia. Ozanam, Luiz. "As jóias dos negros: usuários e artífices nas Minas Gerais do século XVIII." Revista da Fadom, Divinópolis-MG, n 13, p. 1-5, 2003.
    Disponível em: www.fadom.br/interna.asp?var_cdsessao=000040&var_cdsubnivel=2&var_tipomenu=Vcontexts/brasilrevistas.htm.
    Acesso em 28 julho de 2007.