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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.59 n.4 São Paulo  2007

     

    BIOGRAFIAS

    PROBLEMAS COM OS BIOGRAFADOS E COM SUAS FAMÍLIAS

     

     

    Milhares de livros têm sido retirados das prateleiras e jogados num depósito para que seja decidido seu destino e não cheguem às mãos de ávidos leitores: serão armazenados, reciclados ou incinerados. Esta é a cena desenhada pelo recente processo, de grande repercussão na mídia, envolvendo o o historiador Paulo César de Araújo e o cantor Roberto Carlos. Araújo e a Editora Planeta lançaram em novembro de 2006 a biografia Roberto Carlos em detalhes, que não agradou o biografado pois não se insere no selo "autorizada". Em 2007, o cantor entrou com dois processos judiciais, um civil e um criminal, acusando autor e editora de invasão de privacidade, ofensa à honra e uso indevido de imagem. Exigiu, ainda, indenização por danos morais e materiais.

    A questão do público e privado se coloca de imediato nesse embate. Brigas judiciais e processos abertos por biografados ilustres recheiam o noticiário. As obras citadas são biografias não autorizadas que, de algum modo, desagradaram os biografados a ponto de impetrarem mandados judiciais para que fossem tiradas do mercado.

    O que incomodou Roberto Carlos não foi uma possível calúnia contida no livro, mas ver relatados certos acontecimentos de sua vida que, em sua opinião, pertence à sua privacidade.O impasse foi resolvido dia 27 de abril quando um acordo judicial foi fechado no 20ª Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. A editora se comprometeu a recolher os 11 mil exemplares que estavam à venda e entregá-los ao cantor que desistiria do pedido de indenização. O autor não gostou do acordo e irá contestá-lo. "O livro não fala apenas do Roberto, mas conta parte da história da MPB brasileira. Passei 15 anos debruçado sobre ele e quero vê-lo circular novamente", justifica o historiador.

    Este não é o primeiro caso de biografia que chega aos tribunais. Ruy Castro e Fernando Morais, jornalistas e escritores consagrados passaram por situação semelhante. Em maio de 2005, o livro de Morais Na toca dos leões, que conta a história da agência de publicidade W/Brasil, foi apreendido por determinação da justiça goiana. Os acusados foram impedidos de citar o trecho que gerou o processo e de comentar o caso publicamente, sob pena de multa de R$ 5 mil por comentário feito. Tal decisão foi fruto de um processo de calúnia movido pelo deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO) ao ser citado na página 301 do livro, apresentando a "esterilização das mulheres como solução da superpopulação dos estratos inferiores da população, os nordestinos". Em outubro do mesmo ano, porém, a publicação foi novamente liberada.

    Já Castro teve problemas com as filhas do jogador de futebol Garrincha que é biografado em seu livro Estrela solitária – um brasileiro chamado Garrincha. As herdeiras do jogador entraram com um processo de indenização por danos morais e materiais, por violação do direito de imagem, do nome, da intimidade, da vida privada e da honra paterna. Em 2006, A Companhia das Letras foi obrigada a pagar uma indenização de 100 salários mínimos mais 5% sobre o valor total das vendas. A obra, no entanto, pôde continuar a venda.

    OPINIÃO LEGAL Muitos biógrafos se dizem intimidados pelas decisões judiciais que impedem as biografias de relatarem a história do nosso país. Morais diz que vivemos um período de censura de toga. Já para Araújo, a Constituição Brasileira "parece ter sido feita por um Frankenstein". Se de um lado ela permite a liberdade de expressão, do outro garante o direito de imagem de uma pessoa, impossibilitando que se conte sua história.

    No entanto, para o professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Carlos Bianca Bittar, o pedido do cantor Roberto Carlos é consistente. O que ocorre em casos assim é um conflito de direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição. Alguns casos extremos desencadeiam conflitos como esse, no qual "a solução é subjetiva, depende da capacidade de argumentação, de influência e de persuasão de ambas as partes. O poder final de resolução é do juiz", argumenta Bittar.

    Os artigos de 11 à 21 do Código Civil são, segundo Bittar, de caráter absoluto e transpassam a existência da pessoa. No caso de morte, os familiares se tornam partícipes legítimos, responsáveis legais por resguardar a moral e a imagem do ente morto. Isto garante às filhas de Garrincha, por exemplo, o direito de questionar uma biografia que por ventura invada a privacidade do pai.

    O professor destaca, porém, que a questão de invasão à privacidade de uma pessoa é algo relativo. Na prática, analisa-se da seguinte maneira: quanto mais exposição uma pessoa tiver ao grande público, quanto maior e mais próximo for o seu contato com as multidões, menor é o seu direito de questionar essa invasão; o inverso ocorre com a pessoa que tenha uma vida de maior recolhimento e distância das massas.

     

     

    O resultado desses embates judiciais é deixar o mercado editorial receoso com o investimento nesse gênero literário. Especula-se sobre a possibilidade de manuscritos biográficos passarem por censuras prévias dentro das editoras, inclusive com a contratação de advogados para analisarem aspectos legais. Outro tipo de censura cogitada é a do próprio autor, bastante nocivo ao exercício de escrever. De qualquer forma, Bittar adverte que uma decisão judicial tomada isoladamente "não acarreta jurisprudência e não traz prejuízos ao mercado de biografias. Pois cada caso é analisado separadamente". A responsabilidade fica a cargos dos nossos juízos. Neste aspecto, Morais faz uma ressalva sobre questões éticas que envolvem o judiciário brasileiro. "No nosso país, um juiz que hoje dá uma sentença como a do caso Roberto Carlos, no outro dia é preso por corrupção", arremata.

     

    Luiz Paulo Juttel