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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.1 São Paulo  2008

     

     

     

    FONOAUDIOLOGIA

    Afásicos: preconceito e falta de informação sobre o distúrbio

     

    Dizer uma coisa no lugar da outra, não se lembrar o nome de um objeto e ter que identificá-lo por sua forma ou sua função, ficar com uma palavra "na ponta da língua", sem conseguir lembrar dela ou, enfim, perder o "fio da meada" bem no meio de uma história. Situações como essas são bastante corriqueiras para qualquer um, mas em pessoas acometidas por uma doença chamada afasia, desconhecida por grande parte da população, a falta de um diagnóstico acaba impondo barreiras para um tratamento mais eficiente.

    A constatação desse desconhecimento motivou o grupo de pesquisa do Projeto Integrado em Neurolingüística (PIN), da Unicamp, a organizar o livro Neurolingüística discursiva: teorização e prática clínica, a ser lançado neste primeiro semestre pela editora da universidade. "A idéia é retirar esse trabalho, que o grupo, realiza do ambiente exclusivo de teses e dissertações e colocá-lo em um veículo a que mais pessoas tenham acesso", explica Maria Irma Hadler Coudry, professora livre-docente do Departamento de Lingüística da Unicamp, coordenadora do grupo de pesquisa e uma das fundadoras do Centro de Convivência de Afásicos (CCA), vinculado ao Instituto de Estudos da Linguagem da universidade.

    A publicação reúne algumas pesquisas importantes que servem de reflexão não apenas sobre afasia, mas também sobre a relação do cérebro, da linguagem, e do corpo. "O trabalho traz uma nova visão sobre esse problema, apontando uma maneira de lidar com a afasia e com as pessoas afásicas diferente da tradicional", diz a docente.

    NEUROLINGUÍSTICA O sujeito está ausente da clínica tradicional. Essa nova visão neurolinguística o traz de volta, enfatizando o sujeito, e não sua patologia. "O objetivo é colocar em pauta a discussão sobre linguagem e patologia na mídia e na ciência", acrescenta. Esse é o primeiro livro do grupo, que tem pesquisadores em lingüística, letras e fonoaudiologia.

    Afasia é um distúrbio de linguagem causado por uma lesão cerebral. A pesquisadora explica que essas lesões vão afetar o domínio da linguagem no cérebro, na forma como ela é usada – isto é, o indivíduo ainda possui a linguagem, mas tem dificuldades em acessá-la e articulá-la. "A afasia quebra o fluxo da fala. Tudo o que a pessoa quer dizer, ela não consegue", afirma. Conforme a extensão e localização da lesão cerebral, o paciente pode apresentar a perda total ou parcial da capacidade de articulação das palavras. Então, tarefas simples como preencher um cheque, falar ao telefone, escrever uma lista de compras ou até mesmo contar uma história que acabou de presenciar se tornam extremamente difíceis.

    Devido ao pouco conhecimento da doença, não é possível saber o número exato das pessoas acometidas por ela. "As pessoas não sabem o que é afasia portanto muitos nem sabem que são portadores", explica Tatiana Melo Gomes, lingüista e pesquisadora do PIN. "Se você pegar o número de pessoas que sofreram um derrame ou um traumatismo craniano, que são as maiores causas da afasia, dá pra ter uma idéia de quantas pessoas são afásicas, pois a maioria fica com essa sequela", continua a pesquisadora.

    Com o desconhecimento, surge uma das faces mais tristes da doença: o preconceito. "As pessoas não têm paciência, não param para ouvir, não tentam entender. Se o sujeito vai a um restaurante, por exemplo, é visto como bêbado ou drogado", declara Ana Paula Villa Labigalini, fonoaudióloga e também pesquisadora do PIN. "Sem saber o que é afasia, muita gente fala que a pessoa, depois que sofreu um derrame ou um traumatismo, ficou bobo ou louco. Não entendem que a pessoa ficou afásica e precisa de atendimento adequado", termina.

     

     

    Conhecer a natureza e a heterogeneidade da afasia pode ajudar no acompanhamento clínico dessas pessoas e na sua convivência social, especialmente, junto aos seus familiares", explica a fonoaudióloga Fernanda Maria Pereira Freire, pesquisadora do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied) da Unicamp. Fernanda ressalta que "é muito importante conhecer o funcionamento da linguagem para saber como interagir com essas pessoas de modo que elas possam, de fato, reconstruir a linguagem e, conseqüentemente, suas relações afetivas e sociais". Sem o conhecimento sobre o funcionamento da linguagem, muitas vezes afásicos não são encaminhados para o tratamento adequado. "O que acontece é que muitos médicos acabam ‘desenganando’ o paciente, como se depois do derrame ou do traumatismo não houvesse mais nada a se fazer. É isso: teve o derrame e acabou. A impressão é que sua vida também acabou", acrescenta Ana Paula.

    Mesmo pessoas com conhecimento da doença e recebendo tratamento adequado encontram muitas dificuldades para retomar sua vida normal. Muitos tentam voltar ao trabalhar, mas não conseguem vaga ou se manter no emprego. Como a afasia ainda não é enquadrada como uma necessidade especial, a maioria dos afásicos se vê forçada a se aposentar por invalidez. Por outro lado, os que precisam realmente de aposentadoria enfrentam barreiras: os critérios de avaliação para a aposentadoria por invalidez deixam de fora muitos dos sintomas da doença, e o afásico corre o risco de não ser enquadrado no benefício.

    RECUPERAÇÃO Mesmo com tantas dificuldades, afásicos que recebem um tratamento adequado conseguem vitórias significativas. É o caso de Rodrigo, que participa do CCA há três anos e recentemente conseguiu voltar ao trabalho. O paciente sofreu um grave traumatismo crânio-encefálico que resultou em afasia. A lesão acarretou uma mudança drástica em sua vida (antes ele pretendia cursar engenharia, fazia cursinho pré-vestibular, praticava esportes e tinha uma vida social intensa): ele teve que abrir mão de muitos sonhos e acabou entrando em depressão. Mas não desistiu. Com o acompanhamento no CCA, conseguiu superar muitas dificuldades que tinha em sua linguagem, voltou ao cursinho e conseguiu um emprego. "Ele estava muito deprimido no começo. Essa depressão era causada pela falta de rotina, de convívio social", explica Tatiana Melo, que acompanha Rodrigo no CCA. "Tanto o cursinho como o trabalho o ajudaram a melhorar muito, pois são atividades que o colocam em constante contato com as práticas discursivas, com a escrita e com a leitura". A pesquisadora ressalta que o fator social é muito importante, e que poder voltar a uma vida ativa é essencial tanto para a linguagem quanto para o psicológico/emocional do afásico.

    Existem vários tipos da doença e de pacientes. Há afásicos que enfrentam a afasia e afásicos que não a enfrentam", ressalta Maria Irma Coudry. Para a professora, manter-se ativo é fator fundamental. Não existe cura no sentido clássico de erradicação da enfermidade, mas há diversos meios de se melhorar a qualidade de vida dos afásicos.

    Se não se chega a recuperar totalmente a linguagem no padrão anterior à lesão, pode-se chegar muito próximo, por meio da terapia em que se trabalhe as dificuldades e se estimule a convivência entre pessoas com e sem problemas de afasia.

     

    Chris Bueno