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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.1 São Paulo  2008

     

     

    APRESENTAÇÃO

    Laymert Garcia dos Santos

     

     

    Sob o tema Infopolítica procuramos reunir, de modo interdisciplinar, pesquisas e pesquisadores das ciências humanas que se voltam para a questão das implicações mútuas entre tecnologia e política na sociedade contemporânea. Partimos de uma constatação, ou melhor, de uma percepção: de modo geral, toda opção tecnológica parece ser também política, mas na maioria das vezes o político permanece impensado. Assim, as implicações políticas das opções tecnológicas são, com freqüência, obscurecidas por discursos, práticas e decisões que se apresentam fundadas em razões "estritamente técnicas"; como se tais opções fossem feitas em função não do que é político, mas de necessidades "tecno-lógicas". A contrapartida disso, evidentemente, é a inevitável tendência da classe política, da mídia e do senso comum a também pensarem a política dissociada da tecnologia, como se o poder pudesse existir e ser exercido sem levarmos em conta os dispositivos técnicos que viabilizam a sua produção, efetuação e reprodução. Perpetua-se, então, o movimento dentro de um círculo vicioso que, ao isolar a política da tecnologia, impede que se compreenda a própria natureza da dinâmica sócio-técnica contemporânea.

    Ora, o grupo de pesquisa Conhecimento, Tecnologia e Mercado (CTeMe), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tem como premissa que hoje toda opção tecnológica é também política e que toda opção política se "maquina" tecnologicamente. Por isso, os termos híbridos tecnopolítica e infopolítica são invocados por seu valor heurístico, como noções operatórias para designar agenciamentos reais de poder que precisam ser analisados em sua especificidade e singularidade. E se preferimos o termo infopolítica é porque, em nosso entender, ele dá conta melhor da centralidade do conceito de informação que impera em todos as esferas da sociedade, desde que a intensa cibernetização da ciência e da técnica passou a se traduzir na progressiva e crescente digitalização dos mais variados setores da vida social. Para nos darmos conta, basta lembrar do papel da informação digital na reconfiguração do trabalho e do papel da informação genética na reconfiguração da vida – sem falar na reconfiguração da própria linguagem, cada vez mais recheada de vocábulos, conceitos e metáforas informacionais…

    Pareceu ao CTeMe que o termo infopolítica nomeava um campo problemático cujos contornos ainda estão sendo desenhados, mas que precisa ser considerado e mapeado a partir de diferentes perspectivas e recortes. O que se tentou fazer aqui foi explorar algumas das vias de acesso a esse campo, para mostrar a relevância e atualidade do tema. Mas antes de entrarmos na edição deste número da revista, o CTeMe precisa se apresentar.

    Fundado em 2003 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, por iniciativa de Pedro Peixoto Ferreira e Laymert Garcia dos Santos, o CTeMe reuniu doutores e pós-graduandos das ciências humanas a partir de um interesse comum: a idéia de procurar focalizar as inter-relações entre conhecimento, tecnologia e mercado em seu movimento processual, na medida em que a articulação entre esses três termos constituía uma espécie de solo comum que nutria a problemática de pesquisa de cada um dos participantes. A idéia de juntar os termos se justificava porque, em nosso trabalho de reflexão, nada do que pudéssemos pensar a partir de nossas intuições poderia prescindir da sua consideração, tal o grau de comprometimento do valor do conhecimento, da potência da tecnologia e da força do mercado em tudo o que está acontecendo dentro e fora de nós. Ora, como o leitor desta edição poderá constatar, a infopolítica é o fio oculto que "costura" transversalmente a relação entre os artigos porque é a informação, entendida como "diferença que faz a diferença", que faz a articulação tecnopolítica entre conhecimento, tecnologia e mercado.

    A discussão se abre com o artigo de Ruy Sardinha Lopes questionando o determinismo tecnológico que tem embasado o discurso sobre as tecnologias da informação e da comunicação (TICs) em sua relação com a "nova economia". No entender do filósofo, as posturas deterministas, se por um lado decorrem de uma visão equivocada da natureza das tecnologias e de sua relação com a sociedade, por outro tentam tratar como estritamente técnicas questões que são necessariamente políticas. O argumento do texto é desenvolvido em torno do modo como as TICs suscitam mudanças significativas no mundo do trabalho, mas ainda continuam validando o mundo do capital, não autorizando, portanto, expectativas de caráter emancipatório, como parecem crer autores como Toni Negri e Manuel Castells. Nesse sentido, as tecnologias da informação não possuiriam valor intrínseco ex-ante, mas determinam-se e devem ser avaliadas a partir de suas articulações com determinadas instituições e convenções sociais.

    No artigo seguinte, Adriana Espíndola Corrêa e Anderson Marcos dos Santos abordam as relações entre biotecnologia, direito e política, através de uma análise do modo como o sistema de propriedade intelectual vem autorizando e legitimando a apropriação do humano como informação. Na perspectiva dos advogados, o direito tem assumido um papel privilegiado nas tomadas de decisões que contemplam as reivindicações da indústria da biotecnologia ao propiciar a regulação jurídica da apropriação da informação genética humana. O que o torna um instrumento fundamental das definições políticas das opções tecnológicas, conformando a interface Estado-biotecnologia-mercado.

    Também o artigo de Jonatas Ferreira tem como foco a biotecnologia. Mas, agora, trata-se de interrogar de que maneira as recentes inovações biotecnológicas vêm questionando o par vida biológica-vida social. O sociólogo tem insistido que a mecânica não é mais o paradigma dominante mediante o qual se promove a compreensão dos organismos vivos – a cibernética ocupou tal posto, fazendo da informação e do texto as novas metáforas de ordenamento e disseminação do discurso tecnocientífico sobre a vida. No entender do autor, o corpo humano é o palco onde se opera tal mudança epistemológica, que desencadeia a crise do humanismo em virtude do embaralhamento das fronteiras entre natureza e cultura e do conseqüente descarte dos valores que o balizavam. Habermas, Heidegger, Foucault e Agamben são assim evocados para sustentar uma discussão sobre a dimensão política dessa crise, cujo alcance parece ser melhor apreendido pelo conceito foucaultiano de biopoder, em oposição ao conceito de soberania, que até agora embasou a filosofia política clássica.

    No texto de Paula Sibilia, informação digital e informação genética se constituem como os pilares a partir dos quais se constrói o ambicioso projeto de gerir e otimizar a memória humana como se fosse o disco rígido de um computador. Com efeito, o foco da atenção da autora é a informatização da memória – não a memória inscrita nas máquinas, mas a memória humana – através das drogas do esquecimento e dos implantes cerebrais. No centro dessa empreitada se encontram, evidentemente, as pesquisas com inteligência artificial, que buscam a compatibilidade entre a mente humana e os computadores, com o intuito não só de "turbinar" nossa cognição, mas também de abrir a possibilidade de se fazer download de nossa mente, a fim de transferir as memórias para um suporte informático. Paula Sibilia contrapõe ironicamente tal projeto ao "esquecimento feliz" proposto por Nietzsche, bem como à "suspensão da memória" concebida por Bergson como função maior do cérebro, "forma do esquecimento necessário à vida e à ação". O confronto é instigante, pois ilumina o alcance infopolítico da opção por esse desenvolvimento tecnológico: "se essa memória informática triunfa hoje em dia e se torna alvo de tantas pesquisas, é porque ela é politicamente útil no projeto de sociedade em que estamos imersos".

    O artigo de Martha Ramírez-Gálvez sobre reprodução assistida (RA) e consumo de tecnologia é, aparentemente, distante do tema central desta edição, pois só de modo indireto pode ser considerado como uma questão de infopolítica. Entretanto, pareceu-nos importante pedir à antropóloga que o escrevesse para deixar claro de que maneira se coloca a questão das implicações quando está em jogo a solução do problema da infertilidade. Com efeito, o texto todo se desenvolve na consideração de duas opções: reprodução assistida ou adoção. O leitor se vê diante de interesses e lógicas muito diferentes: enquanto na adoção se procura uma família para uma criança, na RA procura-se um filho, à imagem e semelhança de um casal. Mas, além disso, na solução do "problema" despontam questões relativas à inclusão e à exclusão, ao público e ao privado, à ênfase no tecnológico ou no social, à transformação da vida em commodity ou à importância da solidariedade. Nesse sentido, o viés tecnológico da RA e o viés social da adoção evidenciam como diferentes opções têm um sentido sócio-político muito diverso. O "pacote" tecnológico da reprodução assistida emerge, então, em toda a sua complexidade, desenhando já, no horizonte, a tendência a uma eugenia soft.

    Também o artigo de Geraldo Andrello e Pedro P. Ferreira pode suscitar um certo estranhamento e dar lugar à pergunta: o que a patrimonialização de conhecimentos indígenas pode ter a ver com infopolítica? A resposta do CTeMe é: tudo a ver. E foi nesse espírito que o antropólogo e o cientista social escreveram sua análise de um caso de reconhecimento de bens culturais de caráter imaterial, isto é do reconhecimento pelo Iphan da cachoeira de Iauaretê como patrimônio cultural brasileiro em agosto de 2006, em nome dos Tariano, dos Tukano e demais etnias do distrito de Iauaretê, no alto rio Negro, estado do Amazonas. Na expressão dos articulistas: um exemplo de infopolítica indígena e do contato interétnico. O relato do processo de reconhecimento do conhecimento tradicional como patrimônio imaterial é exemplar porque demonstra o que acontece quando a informação a ser transformada num bem não se enquadra nos sistemas de propriedade intelectual, mas sim num sistema de direitos intelectuais coletivos.

     

    Laymert Garcia dos Santos é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e coordena o grupo de pesquisa Conhecimento, Tecnologia e Mercado (CTeMe)