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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.1 São Paulo  2008

     

     

    BIOTECNOLOGIA, DIREITO E POLÍTICA: A PROPRIEDADE INTELECTUAL E A APROPRIAÇÃO DO HUMANO COMO INFORMAÇÃO

    Adriana Espíndola Corrêa
    Anderson Marcos dos Santos

     

    A utilização de elementos biológicos humanos pela indústria da biotecnologia e a vinculação da tecnociência à dinâmica de mercado têm suscitado preocupações no que se refere às suas variadas repercussões no desenvolvimento social, no meio ambiente e, até mesmo, no futuro da natureza humana. Repercussões de alcance mundial e com conseqüências agravadas para os países periféricos, entre eles o Brasil, pois dependentes tecnologicamente e com grande parte da população em situação de exclusão social, econômica e tecnológica.

    Não obstante essas repercussões, as decisões em relação aos rumos da biotecnologia e do mercado vêm sendo tomadas, majoritariamente, no sentido de permitirem as práticas da indústria da biotecnologia. Tais decisões, legitimadas por discursos políticos e científicos, de cunho humanista liberal, de desenvolvimento humano e bem-estar social, constituem escolhas políticas e ocultam práticas e resultados que permitem a instrumentalização do corpo humano pela ciência e pelo mercado.

    Dentre os instrumentos utilizados para sustentar essas decisões políticas, o direito assume um papel privilegiado, por três motivos distintos, mas necessariamente interligados. Primeiro, pelo seu vigor, uma vez que ele funciona como instância de decisão, permitindo ou proibindo as práticas de pesquisa, apropriação e comercialização de elementos biológicos humanos. No Brasil, tal afirmação pode ser verificada no plano normativo-jurídico com a leitura do art. 5º da Lei 11.105, de 24 de março de 2005, chamada Lei de Biossegurança, que estabelece, em seu caput, permissão para o acesso a recursos biológicos humanos (células-tronco embrionárias), e do art. 15 da Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, Lei de Transplantes, que determina a vedação para a comercialização de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano.

    Segundo, por sua ambigüidade pois, para dirimir conflitos, o direito recorre a categorias jurídicas fundadas em um individualismo humanista, construído sob o discurso da proteção da dignidade humana, mas que é utilizado, nas decisões legislativas e judiciais, justamente para seu oposto. Exemplo disso é, entre outros, o emprego do consentimento livre e esclarecido necessário para o sujeito permitir o acesso aos seus elementos biológicos e informações genéticas, afirmando sua liberdade, ao mesmo tempo em que pode transformar partes de seu corpo em objeto de relações jurídicas e comerciais.

    Terceiro, por sua opacidade que permite, por um lado, ser instrumento de políticas públicas na esfera institucional estatal, ao definir estratégias para a atuação do Estado em áreas relacionadas à biotecnologia, como saúde e desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Por outro, poder atuar como elemento de despolitização, na medida em que impede as discussões sobre os efeitos políticos concretos da biotecnologia ao transferir o poder regulatório para o mercado, aliado ao discurso tecnocientífico.

    O centro normativo mais importante, que de melhor forma apresenta as características acima descritas e, por isso, funciona como o principal instrumento para veicular as decisões políticas a respeito da biotecnologia, é o sistema jurídico de propriedade intelectual.

    Além disso, esse sistema opera dentro de uma nova configuração da relação entre direito, Estado e mercado, devida à internacionalização e financeirização do capital e a perda do "espaço-tempo privilegiado estatal nacional" (1). O direito perde seus contornos nacionais e passa a ter de adaptar-se a um comando vindo de um outro campo de decisão política, para além das determinações e interesses internos dos Estados nacionais.

    A tutela jurídica das invenções aplicáveis na indústria, sob essa nova orientação, é definida, primordialmente, a partir de fora das fronteiras estatais. A propriedade intelectual desprende-se do controle dos Estados e é remetida para um foro internacional de regulação e decisão, a Organização Mundial do Comércio (OMC).

    O principal instrumento de normatização da propriedade intelectual deixa de ser a lei nacional e passa a ser o acordo ADPIC/Trips (Acordo sobre Aspectos dos direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – Trade-Related Aspects on Intellectual Property Rights, assinado em 1995). Nesse contexto, e tendo em vista a própria natureza da OMC, o resultado é uma discussão sobre essa propriedade intelectual não mais feita dentro dos países, nem entre eles, mas sim, por agentes de mercado, que passam a atuar como principais operadores do direito nas decisões jurídicas sobre a biotecnologia.

    SISTEMA DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E INFORMAÇÃO GENÉTICA HUMANA A regulação jurídica da apropriação da informação genética humana constitui exemplo privilegiado das específicas relações existentes entre biotecnologia, sistema de propriedade intelectual e mercado nas sociedades contemporâneas.

    A importância conferida aos dados genéticos humanos pode ser mais bem compreendida, se pensarmos no papel fundamental desempenhado pela informação em nossas sociedades. Nas últimas décadas, de forma cada vez mais intensa, a informação transforma-se em uma chave explicativa central. Impulsionada pelo desenvolvimento das tecnologias de informação, espraia-se para todos os campos do conhecimento e da produção (2). E, na biologia, altera profundamente a compreensão dos seres vivos, em especial dos seres humanos. A vida humana passa, em grande parte, a ser identificada com as informações contidas no corpo, sejam elas biométricas ou genéticas. A biologia transforma-se em uma ciência da informação; informação, é claro, digitalizada, capaz de ser processada.

    Genoma, genes, programa ou código genético e informação genética, dentre outros, passam a ser conceitos centrais para a definição do humano (3). O corpo orgânico compreendido como um arquivo de dados, sobretudo genéticos, figura como uma representação fundamental para a ciência. Por sua vez, a dissociação entre informações genéticas e corpo humano, viabilizada pela técnica, confere aquelas valores técnico-científico, político e econômico.

    Transformadas em objetos técnico-científicos e econômicos, tornam-se também objetos de apropriação jurídica, por meio, sobretudo, do sistema de propriedade intelectual. Para tal, foi preciso que o discurso jurídico operasse uma mutação do sentido das categorias jurídicas da propriedade intelectual e uma profunda alteração na função do sistema.

    A propriedade intelectual foi construída na modernidade como um sistema que abrange, por um lado, o direito do autor, no qual se prevê a proteção para as criações literárias, artísticas, fotográficas, cinematográficas; por outro, a propriedade industrial, que compreende as patentes de invenção e de modelos de utilidade, os registros de desenho industrial, de marca; e, a repressão às falsas indicações geográficas e à concorrência desleal. Além disso, atualmente, inclui os direitos de proteção sui generis dos softwares, de topografias de circuitos integrados e cultivares.

    Sua função, em tese, seria a de assegurar o progresso tecnológico e de proteger o autor ou inventor. Seu principal papel, segundo os defensores do sistema, consistiria em funcionar como um mecanismo a serviço do Estado na regulação da articulação entre desenvolvimento tecnológico e mercado, com objetivo de obter o melhor efeito possível para a sociedade. O sistema funcionaria também para garantir, ao mesmo tempo, a recompensa ao autor e ao inventor e permitir o acesso do público à informação (4).

    Esse modelo tradicional da propriedade intelectual, no entanto, não se adequa às necessidades da indústria biotecnológica, em especial na área da genética. Para esse setor da tecnociência e do mercado, a apropriação da própria informação é fundamental, enquanto o modelo tradicional apenas se refere a invenção e a criatividade.

    Nesse sentido, dois exemplos são de destacar: a propriedade intelectual relativa a bancos e base de dados, inclusive dados genéticos, e o patenteamento de seqüência de genes. Em ambos os casos, verificam-se profundas alterações semânticas e funcionais no direito de propriedade intelectual tal qual havia sido concebido anteriormente.

    A diretiva nº 96/9/CE do Parlamento Europeu estendeu a proteção dos direitos autorais ou do copyright às bases de dados. Essa diretiva atribui ao organizador de uma base de dados direitos de autor desde que se possa reconhecer alguma originalidade na seleção e organização das informações. Ao lado disso, confere um direito sui generis ao "autor" da base de dados, impedindo o acesso e reprodução da totalidade ou de uma parte substancial, quando a coleta, a verificação e apresentação do conteúdo impliquem um alto investimento do ponto de vista qualitativo ou quantitativo.

    Aqui não se trata apenas de proteger a criação do autor quanto à organização da base de dados, mas sim de proteger seu conteúdo, ou seja, regular o acesso à informação que ela contém. A subversão do princípio tradicional do direito do autor é evidente, pois garantir a exploração econômica de uma obra intelectual, jamais havia significado impedir e controlar o acesso ao seu conteúdo.

    Do mesmo modo, as transformações semânticas dos conceitos de descoberta e invenção, bem como de utility ou de aplicabilidade industrial (5), necessárias para permitir o patenteamento de genes ou de seqüência de genes indicam a tendência de mutação da própria função da patente, voltada atualmente cada vez mais para a apropriação da informação pura. A remodelação do conceito de descoberta passa pela distinção entre dados genéticos em seu estado natural e dados genéticos em seu estado informacional, cuja obtenção depende da intervenção técnica.

    A inadequação das categorias do sistema de patentes, por sua vez, ocorre porque uma leitura rígida das disposições legais não permitiria a apropriação dos elementos naturais. Com efeito, a patente de invenção é concedida para aquele que apresentar uma invenção que preencha três requisitos fundamentas: atividade inventiva, novidade e aplicação industrial, conforme o art. 27, item 1, do Acordo ADPIC/Trips, e no Brasil, do art. 8º da Lei nº 9.279/96.

    Existe uma diferença fundamental entre invenção e descoberta que aos poucos vem sendo, deliberadamente, flexibilizada com a finalidade de adaptar essa categoria do direito de patente às necessidades da indústria biotecnológica (6).

    Uma determinada adaptação das categorias conceituais do sistema de patentes não é nova e faz parte da própria natureza do sistema. Em verdade, não é necessário criar um direito específico ad hoc para substituir o direito de patentes a cada nova tecnologia (7). De fato, se o fundamento da proteção jurídica das invenções é a inovação tecnológica, o que é expressamente colocado no Acordo ADPIC/Trips, não faria sentido que para cada nova tecnologia fosse criado um novo instituto jurídico para sua proteção.

    Não é disso que se trata. Ocorre que as entidades administrativas dos países signatários do Acordo ADPIC/Trips, responsáveis pela concessão do direito de patente vêm, há algum tempo, adotando interpretações que alimentam a nebulosidade da distinção entre descoberta e invenção.

    Com o risco de simplificar demasiadamente um debate tão complexo no âmbito da doutrina jurídica, podemos dizer que o isolamento, o seqüenciamento, a clonagem de um gene ou de uma seqüência de genes passam ser considerados suficientes para preencher o requisito do caráter inventivo. Por sua vez, a aplicabilidade industrial ou utility resumem-se à identificação da função do gene ou seqüência genética.

    Ressalte-se que o discurso jurídico não é transparente quanto ao estatuto jurídico da informação. Ela não aparece como um objeto diretamente apropriável, visto que sua apropriação é intermediada pelos instrumentos jurídicos de proteção da propriedade intelectual. Os exemplos das profundas alterações sofridas no direito de propriedade intelectual em relação às bases de dados e às patentes mostram, entretanto, como a questão central é a apropriação da informação em si.

    A questão nos interessa mesmo levando-se em conta a lacuna legislativa existente no Brasil. De fato, não há regulamentação específica relativa à propriedade intelectual das bases de dados, que estão submetidas à regra geral da propriedade intelectual (direitos do autor, direitos conexos e proteção dos softwares). No que concerne às patentes, não se admite no direito brasileiro o patenteamento de genes. Contudo, está em trâmite no Congresso Nacional, um projeto de lei que permite o patenteamento de genes ou seqüência de genes, de modo bastante similar ao tratamento internacional conferido à matéria. Não obstante, como já mencionamos, a perda de eficácia real das legislações nacionais em razão de nossa adesão ao acordo Trips já é suficiente para justificar a importância da análise dessa questão para sociedade brasileira.

    OS EFEITOS DA APROPRIAÇÃO DA INFORMAÇÃO A possibilidade da apreensão da informação como propriedade intelectual acarreta um efeito importante para a lógica do capital: permite a ele se lançar sobre o futuro colonizando territórios virtuais. Isso se dá porque a informação não é um produto criado a partir de uma invenção, no sentido tradicional usado pelo sistema de propriedade intelectual. Ela funciona como matéria-prima para a inovação. Por isso, sua apropriação acarreta a criação de um "pedágio" para as futuras pesquisas e inovações, já que obriga os futuros pesquisadores a pagarem royalties para utilizarem a seqüência genética patenteada.

    Em relação ao patenteamento de seqüência de genes humanos, Kyle Jensen, pós-graduando do Departamento de Engenharia Química do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e Fiona Murray, professora assistente da Sloan School of Management, a escola de administração do instituto, em artigo publicado pela revista Science, no mês de outubro de 2005, apontam alguns dados interessantes. Eles utilizaram métodos de bioinformática para compararem seqüências de genes codificadores de proteínas patenteadas nos Estados Unidos e constataram que as patentes concedidas pedem a propriedade de 4.382 dos 23.688 genes da base de dados do NCBI (Centro Nacional de Informação em Biotecnologia), ou seja, já alcançou 20 % do total.

    Com isso, ocorre uma projeção da apropriação de potências de futuro. O que é problemático para o sistema jurídico de propriedade intelectual, pois resulta em sua aplicação sem nenhuma atividade inventiva. É uma apropriação sobre um espaço ilimitado e móvel, com possibilidades de expansão sem limites.

    O desdobramento último desses acontecimentos é impulsionar uma corrida para territórios de informações ainda não realizáveis, uma corrida para o futuro, como se tudo aquilo que já pudesse se atualizar não tivesse mais potência para ser diferencial concorrencial.

    Os organismos, os indivíduos, as coisas corpóreas, nessa corrida, podem ser materialmente descartados a partir do momento em que seus componentes virtuais são apropriados. A informação passa a ser o diferencial pela ação livre que ela permite ao capital colonizar. Nas palavras de Gregory Bateson a informação é "a diferença que faz a diferença". (3)

    O que ocorre é uma antecipação do futuro sem limites, sem cercas. O direito de propriedade intelectual tenta aprisionar uma potência que a informação tem para futuras inovações ainda não realizáveis, para além do atual.

    A DESPOLITIZAÇÃO DA TECNOLOGIA E OS LIMITES DO DISCURSO TÉCNICO DO DIREITO A transformação da informação genética em objeto de apropriação jurídica pelo sistema de propriedade intelectual e o papel central dessa operação para o mercado e para o desenvolvimento tecnológico coloca o direito como instrumento fundamental das definições políticas das opções tecnológicas, pois na conformação das relações entre Estado, biotecnologia e mercado: é, principalmente, pela decisão do direito que se permite a apropriação.

    Manipulando a ambigüidade do direito, conciliam-se exigências do humanismo jurídico com o avanço da tecnociência e do mercado sobre o humano. Atendidos os postulados do consentimento livre e esclarecido e da gratuidade em relação ao doador original, as informações genéticas humanas não encontram sérios obstáculos jurídicos à apropriação privada.

    Não obstante isso, o debate científico, político e jurídico, de forma a contornar os efeitos políticos reais da biotecnologia, continuam a procurar respostas partindo das questões sobre os limites éticos da ciência na tentativa de conciliar autonomia e precaução. Para além disso, tudo se resumiria a uma decisão técnica, tanto jurídica quanto científica.

    A discussão assim colocada deixa em segundo plano a forma pela qual o direito vem sendo utilizado como instrumento, com eficácia própria, para servir à tecnociência e ao mercado. Em outros termos, as decisões técnicas jurídicas encobrem a eficácia política das opções tecnológicas. Para politizar as tecnologias é necessário pensar politicamente o direito.

     

    Adriana Espíndola Corrêa é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR, pesquisadora do grupo Biotec (Direito, Sociedade e Tecnologia).
    Anderson Marcos dos Santos é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp, pesquisador do grupo Cteme (Conhecimento, Tecnologia e Mercado).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Santos, Boaventura de Sousa. "Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo". In: Oliveira, Francisco; Paoli, Maria Célia. Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global. Petrópolis: Vozes; Brasília: NEDIC, 1999. p. 83-112.

    2. Martins, Hermínio. "The metaphysics of information: the power and the glory of machinehood". In Res-Publica: Revista Lusófona de Ciência Política e Relações Internacionais, 2005, I, 165-192.

    3. Santos. Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias : o impacto sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo : Editora 34. 2003.

    4. Edelman, Bernard. La personne en danger. Paris: PUF, 1999.

    4. Edelman, Bernard. "L’homme dépossédé. Entre la science et le profit". In La génétique, science humaine. Paris: Belin, 2004. pp.215-234.

    5. Calvert, Jane. "Genomic patenting and the utility requirement". In: News Genomics and Society. London, Vol. 23, Nº. 3, p. 301-312. December 2004.

    6. Franceschi, Magali. Droit e marchandisation de la connaissance sur les gènes humains. Paris: CNRS Éditions. 2004. 247p.

    7. Prata. Juan Luis Iglesias. La protección jurídica de los descubrimentos genéticos y el proyecto genoma humano. Madrid: Editorial Civitas, 1995.