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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.1 São Paulo  2008

     

     

    DROGAS DO ESQUECIMENTO E IMPLANTES CEREBRAIS: A INFORMATIZAÇÃO DA MEMÓRIA

    Paula Sibilia

     

    "Experiências em laboratório conseguiram apagar más lembranças". "Drogas que alteram a memória podem reescrever seu passado". "Chip cerebral: um implante otimiza o funcionamento da memória". "Revelada a base bioquímica da droga do esquecimento". Manchetes desse tipo vêm sendo apregoadas nos últimos meses, comentando estudos publicados em revistas prestigiosas do âmbito científico. O tema desperta grande interesse no público global, não apenas devido às possibilidades inauditas que tais desenvolvimentos prometem, mas também porque evocam assuntos já tratados na ficção-científica. Administrar a memória humana como se fosse o disco rígido de um computador: eis o fabuloso sonho que tais anúncios estimulam, semeando tanto fascínio como espanto – até pouco tempo atrás, uma tal ambição não teria ultrapassado a mera especulação filosófica ou artística.

    Mas já não se trata de um delírio de alquimistas desvairados: diversas equipes científicas estão pesquisando seriamente, em laboratórios universitários e corporativos espalhados pelo planeta. Todos eles, aliás, travam uma disputa tácita entre si e uma corrida contra o tempo, a fim de patentearem tamanha panacéia. Até os críticos mais acérrimos desses projetos não duvidam que "drogas do esquecimento" e "implantes de memória" logo estarão disponíveis no mercado. Daqui a cinco ou dez anos, prognosticam os cientistas, inclusive aqueles que prefeririam convocar um amplo debate ético prévio aos lançamentos comerciais. "Não há dúvida que a tecnologia para apagar lembranças logo existirá", admite Eric Kandel, que obteve o prêmio Nobel por suas pesquisas sobre a memória realizadas na Universidade de Columbia. Contudo, sua posição é crítica: "acredito que essas drogas irão nos converter em piores pessoas", disse em 2006, porque inibirão as reflexões sobre as conseqüências de nossas ações, esfaceladas no nevoeiro do esquecimento(1). Já o neurologista Martín Cammarota, envolvido em um desses projetos, alude à "possibilidade certa que teremos no futuro – acho que em 20 ou 25 anos – de modificar seletivamente as nossas lembranças". O pesquisador prevê um sucesso garantido: "se existir um jeito de apagar memórias particulares, a indústria farmacêutica não deixaria de faturar em cima; venderia mais do que Prozac e Viagra juntos"(2).

    A memória e o esquecimento são assuntos bastante debatidos neste início do século XXI, tanto nas artes como nos discursos científicos, das humanidades às ciências biológicas. Preocupam especialmente suas "falhas": os desvios e anomalias no ato de lembrar, pois é assim que costuma ser compreendido cientificamente o esquecimento. Busca-se descobrir técnicas para administrar a memória e otimizar suas capacidades. Assim, por exemplo, o jornal New Scientist reportou que estariam prestes a serem criadas uma série de drogas "capazes de apagar más lembranças", com base em pesquisas realizadas nos últimos anos que teriam demonstrado a "fluidez" da memória: nossas recordações seriam plásticas e, portanto, potencialmente moldáveis – ou seja, tecnicamente manipuláveis.

    O psiquiatra Roger Pitman e sua equipe da Universidade de Harvard descobriram que o cérebro lida de maneira diferente com as lembranças dos eventos traumáticos ou carregados de emoções, utilizando mecanismos e recursos distintos daqueles ativados nas recordações comuns. Essas lembranças mais fortes "podem se tornar flexíveis se forem recuperadas sob condições emotivas"; portanto, uma vez descobertos esses mecanismos cerebrais diferenciados, seria possível utilizar drogas capazes de "bloquear ou apagar" tais lembranças no nível molecular. Pois bem, tal droga já existe: denomina-se propranolol e é um betabloqueante que inibe os efeitos biológicos na formação dessas "lembranças fortes". Segundo Pitman, trata-se de "uma das descobertas mais excitantes da história da psicologia", embora certas polêmicas também se ascendam, pois se essa droga for realmente eficaz seria possível "retocar e ajustar nossas lembranças, removendo vestígios de culpa, vergonha ou pena"(3).

    Diante desse complexo dilema, há quem defenda que "os indivíduos deveriam ter o direito de administrar suas próprias lembranças", citando acidentes ou estupros, ou mesmo a participação em guerras ou no holocausto. Vivências cujos traços seria preferível "extirpar da memória" ou, pelo menos, torná-los mais leves e toleráveis diminuindo o valor de sua "carga emocional". No entanto, essa droga também poderia ser usada para "apagar" lembranças não desejadas, embora tampouco consideradas patológicas; tais como episódios humilhantes ou desagradáveis da própria história vital, porém tidos como normais. Essa hipótese foi dramatizada no filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, no qual os personagens contratam os serviços de uma empresa especializada em realizar esse tipo de operações de apagamento de lembranças a fim de aliviar o sofrimento de seus clientes, causado por amores frustrados e outras desgraças mais ou menos cotidianas. Passando da ficção para a realidade, segundo o cientista responsável pelas pesquisas recentemente divulgadas, qualquer lembrança emocionalmente forte, "desde ganhar na loteria até a morte de um ente querido" poderá ser apaziguada através do mesmo processo – e logo mais, caberia deduzir, também pelo mesmo preço. "As lembranças emotivas estão excessivamente fixadas", explica Pitman, "e o propranolol é capaz de reduzi-las para que atinjam o nível de uma lembrança ordinária, não carregada emocionalmente".

    Assim, aqueles que sofrem de estresse pós-traumático, por exemplo, deveriam ingerir a nova droga quando relembram do episódio problemático (quando vivenciam um flashback), pois esse seria o momento em que tais recordações se tornam manipuláveis. O que ocorreria, porém, se nesse instante o sujeito sob tratamento lembrasse de um outro evento que não deseja "apagar", mas também aparece "carregado emocionalmente"? Pitman admite que o risco existe: essa reminiscência poderia "se esvaecer entre as demais lembranças ordinárias". E o que aconteceria se fosse possível apagar a lembrança de um crime, de modo que seu autor esquecesse de tê-lo cometido? Cabe perguntar, ainda, se será possível eliminar recordações alheias, e toda uma série de questões igualmente complicadas.

    Um grupo de pesquisadores sediados no Brasil também apresentou suas descobertas rumo à criação de um medicamento capaz de "apagar lembranças seletivamente". Liderados por Iván Izquierdo, do Centro de Memória da PUC-RS, a equipe descobriu que uma recordação só persiste no tempo se algumas horas depois de ter se configurado, o cérebro sintetizar uma proteína que interveio em sua formação. É a ação desta proteína, denominada BDNF, no momento desse flashback tendente a consolidar a lembrança, que poderia ser controlada quimicamente para que a recordação se torne esquecível. Também nesse caso, o alvo que justifica as pesquisas e os desenvolvimentos farmacológicos é a cura do TEPT, ou transtorno do estresse pós-traumático. Mas a droga permitiria alterar qualquer tipo de lembrança, seja considerada patológica ou não, tanto visando a "apagá-la" como a "fixá-la".

    Embora esse produto ainda não esteja disponível comercialmente, o filme Brilho eterno… mostra que existe uma "demanda reprimida" para uma tal solução técnica. E não se trata do único filme recente a tocar no assunto: enquanto o mal de Alzheimer se espalha como um dos fantasmas mais temíveis que assombram o final de nossas vidas cada vez mais longas – embora ainda sujeitas à mecânica fatal do envelhecimento e da morte – abundam filmes como Amnésia, Os esquecidos, Total recall, O homem sem passado, Spider ou Iris, que também tematizam a perda da memória. Junto com esse apavorante esquecimento, quase sempre se esfacela a "identidade" do sujeito: perde-se aquilo que se é. Como diz o cientista Martín Cammarota, integrante do mencionado Centro de Memória da PUC-RS, "nós somos o que lembramos que somos"; portanto, se a droga que a sua equipe está desenvolvendo de fato funcionar, poderíamos deixar mesmo de ser aquilo que supostamente tínhamos sido mas já não lembramos (4).

    Contudo, se antes dissemos que quase sempre a perda da memória tematizada no cinema implica uma dissolução do sujeito nas trevas do nada, é porque há exceções, e estas são muito significativas. Talvez exprimam um desejo de evitar esse desconforto de "perder-se" junto com a própria memória – tão etérea, tão frágil, tão ameaçada na vertigem contemporânea. Essa exceção é constituída pelos filmes de ficção-científica. Ou melhor, por todos aqueles nos quais intervêm máquinas informáticas: computadores e outros dispositivos do gênero – é o caso de Brilho eterno, mas também de Johnny Mnemonic, O vingador do futuro, Estranhos prazeres, O pagamento, Matrix e Minority report. Os aparelhos digitais poderão nos salvar, ao que parece, dessa perda fatal. E talvez a tecnologia consiga ainda mais: dotar-nos de novas memórias, belas lembranças customizadas e encomendadas à medida para cada um de nós, e inclusive aplacar aquelas recordações indesejáveis que teimosamente guardamos por aí.

    Mas esses sonhos não afloram apenas no cinema: as metáforas computacionais para aludir ao funcionamento da memória brotam por toda parte, tanto nas pesquisas neurocientíficas como nas conversas cotidianas. Quando Cammarota explica o ato de lembrar, por exemplo, várias imagens desse tipo ornam seu relato. No momento em que uma lembrança antiga vem à tona para assistir na compreensão do presente, diz o cientista que "o cérebro a reabre para modificá-la e depois guardá-la de novo". É justamente nesse mecanismo tão equiparável ao gesto cotidiano com que abrimos e fechamos arquivos em nossos computadores, que uma eventual "droga do esquecimento" poderia fazer efeito, pois esse processo requer a produção de uma série de proteínas cuja composição poderia ser alterada artificialmente (5). Já o psicólogo Alain Brunet, da Universidade McGill, diz que nesse momento em que a lembrança é reorganizada e arquivada novamente, ela se torna vulnerável a alterações: "durante esse processo, algum tipo de interferência ocorre, e a lembrança se degrada" (6). Cammarota ainda acrescenta que a prolongada "falta de uso" de uma recordação aumenta suas chances de ser esquecida – talvez em algum velho disquete mofado, poderíamos adicionar, que se tornou obsoleto na troca do drive.

    Metáforas bem mais audazes pontilham os discursos de cientistas como Hans Moravec, Marvin Minsky, Kevin Warwick y Ray Kurzweil, que defendem abertamente a compatibilidade entre a mente humana e os aparelhos informáticos, na procura de métodos para "turbinar" nossa cognição. As pesquisas desenvolvidas sob a direção de Hans Moravec, por exemplo, visam a descobrir um método eficaz para "fazer download" das informações supostamente contidas dentro do cérebro humano, a fim de transferir as memórias para um suporte informático. "Dentro de quarenta anos, todos os traços da vida mental de uma dada pessoa poderão ser inteiramente simulados por programas de computador", comenta o sociólogo português Hermínio Martins em seus ensaios de filosofia da técnica, aludindo a projetos como o de Moravec, "conseqüentemente, se poderia continuar a existir como uma mente sem o cérebro que antes suportava a vida mental" (7). Sob essa perspectiva, nossa essência seria constituída por esse "software cerebral" que contém também as nossas lembranças, e que seria tão editável, reproduzível e transferível como a informação administrada pelos computadores.

    Os filmes antes mencionados recriam essa tão sonhada compatibilidade entre os dispositivos informáticos e os circuitos mentais, ambos partilhando a mesma lógica digital. Em muitas dessas ficções, as lembranças transitam como fluxos de dados entre os cérebros dos personagens e as máquinas. Os roteiros costumam recorrer a capacetes conectados a computadores, equipados com programas capazes de escanear o conteúdo do cérebro, de modo semelhante a como fazem as tomografias por emissão de positrones (PET) e os aparelhos de ressonância magnética (MRI), utilizados nas pesquisas dos neurocientistas e nos consultórios médicos. Graças à conexão com esses dispositivos, pode-se não apenas decifrar a informação inscrita no cérebro humano, mas também editá-la, apagando e inserindo novos dados.

    Para além de sua veracidade ou viabilidade, tanto essas ficções como essas realidades parecem sucumbir à sedução de uma memória totalmente sob controle, que possa ser programada e otimizada. Isso só é possível se a memória for informatizada, permitindo a digitalização dos "conteúdos mentais" e o processamento desses dados com a ajuda de computadores, e ultrapassando assim as "limitações" do organismo humano. À luz desses sonhos tecnocientíficos, adquire novos matizes o "esquecimento feliz" proposto por Nietzsche para combater a hipertrofia da memória e a febre historicista que vigoravam nos remotos finais do século XIX (8). Nesse contexto, o homem não era capaz de "aprender o esquecimento": por se fixar sempre ao passado, "por mais rápido que ele corra, a corrente a que está agrilhoado sempre o acompanhará" (9). Hoje em dia, porém, esses grilhões que nos prendem ao passado individual (para não mencionar o coletivo), talvez estejam se afrouxando – com a ajuda das soluções prometidas pela tecnociência. Será que nos libertaremos do fardo da lembrança e aprenderemos, enfim, o esquecimento feliz?

    Tanto nos filmes como nas pesquisas neurocientíficas aqui citadas, alude-se a uma memória gravada no cérebro humano cujos "conteúdos" podem ser recortados, editados, deletados, copiados e retocados digitalmente. Nada mais distante das visões de pensadores do século XIX, como Bergson e Nietzsche, que apresentam outras maneiras de digerir a memória do tempo vivido e criar o presente. Sob a perspectiva de Henri Bergson, a função do cérebro não consiste em "arquivar lembranças" mas em "suspender a memória", uma suspensão interessada que é uma forma do esquecimento necessário à vida e à ação (10). Mas suspender não equivale a deletar, de modo algum, pois tudo permanece na virtualidade do espírito e tudo pode, sempre, retornar. Eis uma maneira de "processar" as próprias vivências, bem diferente do modo com que os nossos computadores e a internet processam informações, uma modalidade mais próxima dos metabolismos orgânicos ao gosto nietszchiano. Essa suspensão bergsoniana teria o objetivo de filtrar as próprias percepções e lembranças, a fim de nos proteger do afluxo avassalador que paralisava Funes, por exemplo, aquele memorioso personagem do conto de Borges que não conseguia esquecer de nada. Assim compreendido, "o cérebro não serve para guardar ou ‘arquivar’ lembranças mas, ao contrário, para suspendê-las, para evitar que nos açodem, impedindo-nos de agir no mundo" (11).

    As propostas atuais de otimizar tecnicamente uma memória informatizada contrastam com esses olhares filosóficos, segundo os quais seria tão impossível como indesejável desenvolver uma memória editável do puro instante, ou mesmo uma memória total capaz de fundir duração e instante. "Duas ou três vezes tinha reconstruído um dia inteiro", relata Borges a respeito de Irineo Funes, "nunca duvidara, mas cada reconstrução lhe demandara um dia inteiro" (12). Pois apesar de sua prodigiosa memória e sua aguda percepção, esse personagem era incapaz de pensar: no abarrotado mundo de Funes "não havia senão detalhes quase imediatos", enfileirados um após o outro e todos igualmente importantes.

    Para poder pensar, agir e viver, é preciso "exercer a mais alta atividade do espírito", nietzchianamente falando: esquecer. Ou, mais bergsonianamente: suspender. Ou, como diria Borges: esquecer diferenças, generalizar, abstrair. Mas a definição desse esquecimento que esses autores sugerem é bem mais complexa do que o simples "apagamento de lembranças" procurado pela nossa tecnociência digitalizante. Neste caso, esquecer significa ruminar e digerir; filtrar, escolher, selecionar, decidir e suspender; enfim, agir e criar. Nada mais distante de apagar, editar ou copiar, eliminando algumas cenas e retocando outras com a ajuda de programas como o PhotoShop ou a tecla Delete.

    Entretanto, se essa memória informática triunfa hoje em dia e se torna alvo de tantas pesquisas, é porque ela é politicamente útil no projeto de sociedade em que estamos imersos. Essa memória não é apenas compatível com nossas máquinas, ela também é compatível com nosso mundo. Assim como os seqüenciadores de DNA são capazes de ler a informação que codifica os genomas dos seres vivos, os PET-Scan e os aparelhos de ressonância magnética também lêem o conteúdo de nossos cérebros. As novas "ciências da vida" criaram e demandam essa compatibilidade entre nossos corpos e tais aparelhos. As máquinas que se conectam a nossos organismos são capazes de decifrar a informação neles inscrita, dados que definem a "identidade" de cada sujeito: nossa essência individual, aquilo que nos faz ser o que somos.

    Por isso, essa informação revelada nos pixels das imagens do cérebro ou no código genético é comparável com a velha alma, ou com a mente e o psiquismo. Mas é manipulável por meio de técnicas bem diferentes das que serviam para interpelar aquelas entidades mais antigas – tais como a psicanálise, a introspecção, as artes ou o catálogo completo das ciências humanas e sociais. Os dispositivos que servem para acessar e decifrar a nova informação vital são variados, porém todos respondem ao horizonte digital e eletrônico que orienta esses novos saberes, irmanados por uma vontade de digitalização da vida: de tudo transformar em informação.

    E as novas técnicas são – ou almejam ser – bem mais eficazes que aqueles métodos analógicos que procuraram interpretar a mente e esculpir a alma ao longo da era industrial. Pois aquela velha substância imaterial, a alma, que de algum modo era compatível com os antigos saberes e dispositivos analógicos, não era apenas rígida, opaca e resistente à penetração técnica, mas além disso era misteriosa por definição: escondia teimosamente seus segredos, que jamais se revelariam por inteiro. Já a informação inscrita em nossas células é bem mais acessível: seus enigmas estão sendo decifrados. E, por serem compatíveis com nossos artefatos digitais, o grande sonho da tecnociência é que todos esses códigos e sinais logo serão transparentes: totalmente decifráveis e, portanto, maleáveis.

    Mas, por que tamanha vontade de controlar a própria memória? É sob o custo de simplificar demais a complexidade da condição humana que se torna possível manipulá-la tecnicamente, reduzindo a memória às suas bases neurais e tratando-a como um mero dispositivo gerenciador de informações. Nesse projeto puramente técnico, busca-se a eficácia – e, não raro, ela costuma ser encontrada. Mas, por que desejamos editar nossas lembranças, apagando algumas e implantando outras? Para sermos felizes. Eis a resposta: para melhorar nossa "qualidade de vida". Essa promessa é sublinhada no filme Brilho eterno…, onde basta confessar a própria infelicidade para merecer a operação que deleta as lembranças indesejadas. O serviço vendido pela empresa Lacuna é justamente esse: soluções para a "infelicidade" mais trivial que possa afetar o prezado cliente. Em um plano menos fictício, uma pesquisa recente conseguiu que um grupo de voluntários "suprimisse com sucesso uma lembrança". No entanto, o próprio neurocientista que liderou a experiência no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, John Gabrieli, admitiu que os resultados ainda são modestos, porém a descoberta seria legítima se conseguisse "tornar um paciente 20% mais feliz" (13).

    Esse consenso e essa insistência em torno desse ideal de felicidade podem evocar, com perturbadora exatidão, o ambíguo bem-estar que imperava no romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, célebre retrato de uma sociedade geneticamente administrada. Com os processos biológicos sob controle e sem imprevistos de nenhum tipo, nesse "mundo feliz" todas as angústias, tristezas e dúvidas podiam ser eliminadas graças aos eficazes produtos da indústria farmacêutica. Hoje convertida em objeto de uma disciplina científica com fins práticos, a felicidade tornou-se uma commodity muito bem cotada: todo o mundo quer e está disposto a comprá-la, mesmo tendo que recorrer ao crediário. Em 1932, a epígrafe do livro de Huxley profetizava: "As utopias são realizáveis. A vida avança rumo às utopias. Pode ser que um novo século comece…" (14). O mencionado Eric Kandel, neurocientista laureado com o Prêmio Nobel no emblemático ano 2000 por suas pesquisas sobre a memória, afirmou que "assim como o século XX foi da genética, o século XXI será das neurociências" (15). Ao que parece, o mais novo admirável mundo novo está só começando.

     

    Paula Sibilia é professora adjunta do Departamento de Estudos Culturais e Mídia, do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS-UFF). É autora do livro O Homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais.

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Vince, G. "Memory-altering drugs may rewrite your past". Londres, New Scientist, n. 2528, 03/12/2005.

    2. Garcia, R. "Estudo revela base química de ‘droga do esquecimento’". Folha de S. Paulo, São Paulo, 18/01/2007.

    3. Vince, G.; op. cit.

    4. Garcia, R.; op. cit.

    5. Garcia, R. op.cit.

    6. Singer, E. "Erasing memories", Technology Review, MIT, 13 Jul 2007.

    7. Martins, H. Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social. Lisboa: Edições Século XXI, 1996; p. 195.

    8. Nietzsche, F. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

    9. Franco Ferraz, M.C. "Memória, esquecimento e corpo em Nietzsche". In: Nove variações sobre temas nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002; p. 59.

    10. Bergson, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

    11. Franco Ferraz, M.C. "Tecnologias, memória e esquecimento: da modernidade à contemporaneidade". Compós 2005. UFF, Niterói, 2005.

    12. Borges, J.L. "Funes, el memorioso". In: Obras completas, v. 1. 2.ed. Buenos Aires: Emecé, 1999. p. 485-490.

    13. Singer, E.; op. cit.

    14. Huxley, A. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 2001.

    15. Ehrenberg, A. "Le sujet cerebral". Esprit, n. 309, Nov 2004, p. 130-155.