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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.1 São Paulo  2008

     

     

     

    RESENHA

    Prever o futuro como guia para colonizá-lo

     

    Computadores quânticos e moleculares, implantes de memória, escaneamento do cérebro, nano robôs, auto-replicação de máquinas, fusão entre corpo e máquina. A lista de temas tratados por Ray Kurzweil em A era das máquinas espirituais bem pode ser entendida como uma seqüência de temas de ficção científica. Mas não para esse autor que parte do ângulo de alguém conectado à produção de tecnologia de ponta e imerso nas pesquisas de inteligência artificial para olhar o mundo e calcular tendências para o futuro.

    Kurzweil (1948) é uma espécie de Craig Venter da inteligência artificial e da computação, mas esse cientista-empreendedor ganhou notoriedade pela sua genialidade, destacada por figuras como Bill Gates, e pelas suas pesquisas e invenções, que começaram cedo (aos 17 anos) com a construção, para um projeto do colégio, de um computador programado para analisar padrões nas músicas de vários compositores famosos, que podia, a partir desses padrões, compor novas melodias originais no mesmo estilo. Desde então, focalizando em especial a área de reconhecimento de padrões, suas invenções não pararam. Elas vão da primeira máquina de leitura para cegos, em 1976, passam pelo primeiro sintetizador musical, em 1984, e continuam numa série de outros equipamentos que são sempre os primeiros de alguma lista, e na maioria das vezes estão ligados a alguma patente e a uma nova empresa de propriedade de Kurzweil.

    Os livros, lançados desde a década de 1990, também têm colaborado para dar visibilidade a Kurzweil – como The age of intelligent machines (1990), The 10% solution for a healthy life (1994), The age of spiritual machines: when computers exceed human intelligence (1999), Fantastic voyage: live long enough to live forever (2004), The singularity is near: when humans transcend biology (2005) – e vêm provocando polêmica, dentro de um debate mais amplo acerca da tecnologia. Não se pode desconsiderar, ainda, o fato de algumas de suas previsões terem se concretizado, como foi o caso do boom da internet.

    Apenas dois de seus livros têm tradução no Brasil. A medicina da imortalidade, publicado aqui em 2006, e o recém-lançado A era das máquinas espirituais, escrito em 1999.

    Esse livro de Kurzweil reúne em 509 páginas mais do que alguns leitores admiram ou rechaçam. Aliás, essa é a divisão de opinião de algumas pessoas que conhecem as previsões desse cientista-empreendedor-visionário: os oriundos das ciências humanas – que não estão familiarizados com os temas e produções da tecnologia – riem de Kurzweil e ridicularizam suas "profecias"; os das ciências "duras", sorriem e afirmam que não é nada impossível que as previsões de Kurzweil se realizem. Em ambos os casos, os leitores apegam-se às novidades que a tecnologia pode oferecer sem focalizar alguns elementos do livro que o fazem ir além de admiração ou desprezo.

    No livro, o autor conecta a evolução das máquinas com a humana, e argumenta que as tecnologias criadas pelo homem, e em especial a tecnologia computacional, estão sendo potencializadas de forma cada vez mais acelerada. O autor afirma que apesar dos computadores mais avançados de hoje serem cerca de um milhão de vezes mais simples que o cérebro humano, essa disparidade não fará parte do século XXI. "Os computadores atingirão a capacidade de memória e velocidade de computação do cérebro humano por volta de 2020". Ele alia a esse universo a produção mais ampla de nanomáquinas, implantes de memória, computadores moleculares e quânticos, e o desenvolvimento de redes neurais para conectar homens e máquinas, transformá-los e afirmar que enfim, no processo evolutivo, há um futuro pós-biológico e uma outra espécie, composta de matéria orgânica e inorgânica.

     

     

    Em 2000, o artigo da revista Wired intitulado "Por que o futuro não precisa de nós" trouxe um pouco do impacto disso que emerge com Kurzweil. O autor é outra dessas figuras que circulam em meio à produção de tecnologia de ponta: Bill Joy, um dos inventores do sistema Unix e do programa Java, fundador da Sun Microsystems e um dos coordenadores do comitê sobre tecnologia que informava e assessorava o ex-presidente norte-americano Bill Clinton.

    Joy relata em seu artigo o encontro com Kurzweil durante uma conferência que ocorreu no outono de 1998, e a "tomada de consciência" que isso provocou. O artigo desdobra os riscos do desenvolvimento irrefletido da tecnologia, aborda a aceitação instantânea de produtos tecnológicos em nosso cotidiano, a necessidade de regulação disso e de atenção para interesses envolvidos. O texto da Wired recebeu uma resposta incorporada a um amplo relatório da National Science Foundation, em 2001, para informar o presidente Bush sobre as implicações sociais da nanociência e da nanotecnologia.

    Publicado também pela Wired, com o título sugestivo "Ideas to feed your business: re-engineering the future", John Seely Brown e Paul Duguid procuram desmerecer o momento catártico de Joy, comparando-o ao escritor de ficção científica H. G. Wells e acusando-o de incorrer em algo perto de um determinismo tecnológico que desconsidera a existência social. Discussões pontuais à parte, vale observar o que Kurzweil tem a capacidade de fazer vir à tona. Acima de tudo porque ele fala a partir de um lugar que pode ter a "pretensão" de desenhar, pautar e criar (mais do que prever) o futuro.

    O essencial de A era das máquinas é, portanto, notar como um modo de pensamento – profundamente imbricado na atualidade – opera. Um modus operandi que não é restrito (para aqueles que ainda conseguem ver esferas ou campos separados) à ciência e a tecnologia, mas que se relaciona com o modo de produção, com o capitalismo atual, com a política. O interessante da obra de Kurzweil é nos fazer pensar, por exemplo, na frase da página 60: "Através do Projeto Genoma Humano, estamos no processo de escrever o código de 6 bilhões de bits para o código genético humano, e estamos capturando o código de milhares de outras espécies. Mas a engenharia reversa para obtenção do código de genoma – compreender como ele funciona – é um processo lento e laborioso que estamos apenas iniciando. Enquanto fazemos isso, entretanto, estamos aprendendo a base do processamento de informação da doença, do amadurecimento, do envelhecimento, e estamos ganhando meios de corrigir e refinar a invenção inacabada da evolução".

    Este livro permite pensar na aceleração como parte de uma lógica de funcionamento que desde já está transformando o humano. O próprio autor já indica que a definição do que é humano e do que somos será a principal questão política e filosófica do século XXI. Kurzweil pode errar em suas previsões, mas o que seu livro espelha não é uma imagem solitária ou uma voz no meio do vazio. O que vem à tona é uma série de projetistas como Irving John Good, Marvin Minsky, Vernor Vinge, Hans Moravec, e até Craig Venter, todas as suas empresas, patentes, financiamentos, debates, disputas e apostas no futuro a ser colonizado.

     

    Marta Kanashiro