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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.1 São Paulo  2008

     

    ENTREVISTA

    CURADORIA PRIVADA DE ACERVO PÚBLICO

     

    O recente roubo de importantes obras no Museu de Arte de São Paulo(Masp), evidenciando a falta de planejamento e de segurança da instituição que guarda um dos mais importante acervos do país, colocou em destaque a insuficiência de um método de gestão que confia o patrimônio público nas mãos de grupos de particulares sem contemplar a contrapartida de uma contribuição financeira nem um real projeto de curadoria. Nesta entrevista com o historiador da arte Luciano Migliaccio, professor da FAU-USP e colaborador da pós-graduação em história da arte e da cultura do IFCH-Unicamp, realizada antes dos acontecimentos mencionados, esse debate já estava presente.

    Alguns museus brasileiros dispõem de acervos invejáveis e comparáveis a seus companheiros internacionais. Porém, com a crise das últimas décadas - de falta de recursos para a administração, custeio e manutenção dos acervos - uma nova política de revigoramento dos museus foi posta em andamento. É possível até estabelecer um marco: a exposição de Rodin na Pinacoteca do Estado, em 2001. Um importante acervo foi trazido e longas filas de espera foram a marca de que, enfim, uma exposição de arte ganhava dimensão de grande interesse popular. Estava estabelecido um modelo que vários museus e institutos culturais, em franca expansão naquele momento com o fermento da lei Rouanet, agarrariam como tábua de salvação. Da mesma forma que os investimentos de tal ordem auxiliaram um impulso efetivo na configuração das atividades desses centros artísticos, o desvirtuamento de suas missões começou a acelerar. O conceito de curadoria se expandiu a um nível que, começou a provocar distorções no foco e no tipo de atividade que cada instituição poderia abrigar.

     

     

    O empenho dos dirigentes dessas instituições parece ter se fixado na máxima de trazer recursos para suas instalações para conseguirem sair das dificuldades infindáveis de ordem financeira em que se encontram . Justificável e até louvável! Porém, essa abertura indiscriminada do perfil das mostras em troca do sucesso de público é perigosa. Já se viram museus esconderem o próprio acervo nos depósitos para hospedar eventos importados. Por outro lado, há o perigo que os grupos privados que gerenciam algumas instituições se sirvam do nome delas para pedir patrocínios para projetos de interesse de alguns membros, deixando as mesmas afundarem em dívidas, sem nenhuma transparência na gestão de um patrimônio público. Na entrevista, Migliaccio pontua a necessidade de restrições a esse tipo de política, danosa a longo prazo.

    Que modelo de museu é bom ao país?
    O que temos hoje é a ocupação do espaço público por iniciativas privadas, freqüentemente alheias às origens e natureza dos museus, deixando acervos maravilhosos escondidos, não trabalhados e confundindo o público quanto à qualidade das exposições. O movimento de transformar os museus estaduais em fundações sem fins lucrativos, onde o Estado retira sua responsabilidade em relação à gestão dos acervos – o que acaba ocorrendo quando se limita a financiar mediante projetos, sem um critério científico da qualidade dos mesmos – é uma situação de risco.

    Mas não seria uma saída para a penúria em que se encontram alguns museus?
    Ao contrário: a manutenção pode tornar-se precária, uma vez que esse modelo, de sucesso nos Estados Unidos onde existe uma tradição do patronato, não tem o respaldo da mesma vocação firmada no Brasil. Até agora vimos, em muitos casos, os particulares entrarem nos espaços públicos para angariar recursos para seus próprios fins. Já vimos instituições virarem devedoras de membros da própria diretoria, que deveriam supostamente financiá-las. Uma primeira medida seria a presença de conselhos científicos, capazes de criar programas culturais para os museus a partir da natureza dos seus acervos, e de negociar de forma aberta com os financiadores. A maioria dos museus brasileiros não tem historiadores trabalhando em seu acervo e acaba empurrado para reforçar o vínculo com a Lei Rouanet que leva a seguinte equação: só vai entrar financiamento para exposição com grande apelo popular que garanta sucesso de bilheteria. O museu vira uma máquina de agradar públicos, deixa de estar atento a dialogar com seus acervos e promover o conhecimento e a cultura, esta, sim, a sua verdadeira natureza.

    Como o senhor analisa o uso da Lei Rouanet na área?
    Há grande interesse de instituições particulares em promover eventos com esse perfil, sem curadoria e com baixo aproveitamento do acervo do museu. Trata-se de uma colonização dos projetos privados, impostos muitas vezes por produtoras internacionais, sobre o patrimônio público. Há vários exemplos: as infames exposições sobre Leonardo da Vinci e sobre o corpo humano no Parque Ibirapuera (muito caras para o público e para os patrocinadores, diga-se de passagem); a mostra sobre Darwin no Masp, no ano passado. Tratou-se de propostas de produtoras, algumas totalmente improvisadas na área, que vieram prontas para atender projetos educacionais. O que pode ser bastante louvável, mas o produto final foi lamentável, nos piores casos, e, nos melhores, fora de lugar.

    Qual o modelo de museu se forma no Brasil a partir dessa perspectiva?
    A tradição filantrópica estadunidense não rebate da mesma forma, se transportada diretamente para o Brasil onde, o que acaba ocorrendo em muitos casos é que a iniciativa privada lucra muito com esses projetos expositivos ou de infra-estrutura para os museus, mas pouco fica retido para as instituições que os abrigam. Como exemplo, podemos pensar, além da mostra do Darwin, nas exposições sobre Leonardo da Vinci e sobre o corpo humano, todas em São Paulo e só para ficar nas mais recentes. Todas tiveram qualidade duvidosa mas representaram grandes lucros principalmente para os promotores, empresas privadas internacionais especializadas nesses "pacotes" culturais. No caso da exposição do corpo humano, por exemplo, ela foi recusada em muito lugares no exterior onde se apresentava como exposição de arte; aqui veio embalada no selo de exposição científica. Sem vínculo com uma curadoria de arte, o que ocorre é uma colonização cultural da pior espécie.

    Como surge esse movimento de patrocínio de mostras internacionais com forte apelo popular e ampla campanha de marketing?
    No final da década de 1990 se percebeu que a exposição apresentada como evento era uma receita com potencial muito grande de atração de público. No caso pioneiro até então no Brasil, a de Rodin na Pinacoteca de São Paulo, o curador Emanoel Araújo soube estabelecer uma relação vantajosa de troca e foi muito bem-sucedido, garantindo recursos para a revitalização da instituição que dirigia, assim como garantiu uma curadoria competente do evento. Quando a mostra da obra do impressionista Monet impulsionou as visitas ao Masp anos depois, dentro do mesmo modelo, a fórmula, contudo, não se repetiu: o museu não recebeu nada, o grande evento não serviu para revigorar sua produção contemporânea e a exposição de seu acervo. Ele acabou virando palco para uma seqüência de mostras, poucas boas ou muito boas, algumas sofríveis, outras francamente pífias, sempre anunciadas como grandes eventos de massa, retirando a essência, a razão de existir do museu desde a sua concepção formulada por Pietro e Lina Bo Bardi.

    O argumento para defender essa posição – "abrir o museu para camadas populares" – será que se sustenta?
    Em minha opinião, seria mais importante estabelecer um conjunto de ações consistentes e constantes com o público, o que se constituiria, aí sim, numa verdadeira ação educativa. Foi este o perfil concebido para o Masp, mas o modelo que se está implantando leva ao esvaziamento. Os museus têm uma dependência do público das escolas de mais de 50%, portanto priorizar uma atuação nesse sentido é questão de sobrevivência. Alguns, incluso o Masp, tem se dotado de excelentes serviços educativos, mas o museu não é uma sucursal da escola. Deve ser visto como centro de elaboração cultural e de identidade para toda a comunidade, facilitando o acesso dos cidadãos ao melhor da cultura estética, científica, tecnológica que se produz no mundo.

    Como controlar e estabelecer um padrão de qualidade para todas essas propostas que já chegam prontas às nossas instituições?
    Com uma verdadeira curadoria, instância que analise o nível e a utilidade cultural das exposições dentro de uma linha coerente com a instituição, e não extemporânea a ela. É preciso criar uma formação ampla na área da história da arte e da gestão dos bens culturais. É preciso criar uma carreira de historiador da arte, que ainda inexiste no Brasil; formar esse profissional responsável pela manutenção e curadoria do acervo. A ação dos historiadores como grupo tende a se concentrar na área acadêmica. Existe o museólogo, muitas vezes oriundo de uma formação técnica, que cuida da questão de gestão operacional mas não é curador - esse papel é do historiador da arte.

    A situação é igual em todo Brasil?
    No Rio de Janeiro, outro centro cultural importante, não é diferente. Ali existe um conjunto de museus federais, com funcionários que ganham uma miséria, são altruístas em manter o trabalho apesar da baixa remuneração, do pouco apoio que recebem e das greves que acabam ocorrendo. A última durou mais de dois meses, e pouco ou nada saiu na imprensa: os museus não são prioridades da política nacional. Os recursos obtidos sempre são destinados a projetos e não chegam para melhorar a condição de seus profissionais. A evidência é uma posição tendente à terceirização.

     

    Wanda Jorge