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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.1 São Paulo  2008

     

     

    HISTÓRIA

    MEMÓRIA DO CARNAVAL PAULISTANO EM LIVRO

     

    Farto em fotos e depoimentos, o livro Carnaval em branco e negro reúne a memória do carnaval paulistano no século XX e mostra como a folia constrói e é construída pela cidade. "A fotografia é a prova da verdade". A máxima do sambista "seo" Zezinho, fundador do cordão Camisa Verde e hoje falecido, foi ouvida pela pesquisadora Olga Rodrigues de Moraes von Simson quando colhia depoimentos para construir um panorama histórico do carnaval paulistano para sua tese de doutorado. Esse material, publicado quase quinze anos depois, em 2007, serviu para compor uma história muito fragmentada, quase que restrita às lembranças dos velhos patriarcas do samba paulista.

    A publicação apresenta um estudo rico em detalhes sobre o carnaval paulistano entre 1914 e 1988, em que a vida da cidade, a formação de seus bairros e o seu crescimento são refletidos e se refletem na folia. Inclui, também, um álbum com quase cem fotografias, grande parte proveniente do acervo pessoal dos que foram ouvidos pela autora. Inicialmente Olga não pretendia trabalhar com fotos, mas como se mostraram importantes para ativar a lembrança dos sambistas e dos fundadores de escolas de samba e, a partir da frase ouvida de "seo" Zezinho, ela reconsiderou a decisão inicial e passou a pedir que todos trouxessem fotografias. A pesquisadora se viu com um acervo muito rico, que se tornou parte fundamental do trabalho. Um álbum de fotos nas páginas finais do livro permite ao leitor consultar as referências contidas no texto. O trabalho de restauração das fotos foi realizado com o Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo.

     

     

    HISTÓRIA ORAL O projeto de Olga, também diretora do Centro de Memória da Universidade Estadual da Campinas (Unicamp), foi feito com a metodologia conhecida como história oral, que busca recolher o fato histórico por meio de informações obtidas nas entrevistas. Para ela, essa era a única forma de construir a memória do carnaval paulistano, pois quase não existiam publicações sobre ele. O resultado final mostra a evolução de uma festa popular atrelada ao panorama socioeconômico da cidade.

    Em textos e fotos, o livro mostra o carnaval "branco" do início do século, que seguia os moldes dos bailes de máscaras venezianos. Ele acontecia principalmente nos bairros do Brás, Lapa e Água Branca, organizado pelos comerciantes imigrantes que ali residiam e imprimiam um cunho muito familiar às festas. "Este carnaval morreu após a Segunda Guerra. Os bairros cresceram, as pessoas se mudaram e as comunidades se desfizeram", conta Olga.

    Paralelamente à esse, havia o carnaval "negro", com cunho de "afirmação étnica", considera a pesquisadora. Ele ocorria quase que escondido, nos bairros então periféricos da cidade, como Barra Funda e Bexiga, criado por associações de amigos/vizinhos, formando pequenos desfiles, conhecidos como cordões, onde se misturava elementos do carnaval dos "brancos" com as influências da umbanda e tradições da população negra.

    Por não contar com muitos recursos, o carnaval "negro" enfatizava a dança e a música, deixando o aspecto visual (característica do "branco") um pouco em segundo plano. Essa característica mais criativa do carnaval popular é um dos pontos ressaltados pelo livro. Com o passar do tempo, os grupos perceberam que o carnaval era uma oportunidade de afirmar-se na sociedade urbana.

     

     

    A COR DO CARNAVAL O livro mostra a evolução desse cenário e como os cordões passaram de, relegados a segundo plano, a figura central do carnaval oficial de São Paulo. Como socióloga, Olga considera o carnaval paulista interessante. "Por não ter sido valorizado pelo turismo, ele foi muito isolado e se conservou negro, mantido pelas comunidades originais até o fim da década de 1980".

    Segundo ela, os patriarcas do carnaval tinham consciência dessa função de afirmação social. Dionízio Barbosa, fundador do primeiro cordão em 1914, chamado "Grupo Carnavalesco da Barra Funda", contou em sua entrevista: "Eu plantei para eles colherem, eu fui um ‘palhaço de rua’, mas hoje meus filhos, netos e sobrinhos estão todos encaminhados: uns no banco, outros na prefeitura, outros nos escritórios".

    Da reflexão do sambista, que entrevistou meses antes de sua morte, Olga conclui que "ele tinha consciência de que o carnaval foi importante na afirmação dos negros naquela cidade tão discriminadora". Além da criatividade, contribuiu para que o carnaval negro se firmasse como predominante justamente sua vertente étnica, o que os sociólogos chamam de resistência inteligente.

    Os negros perceberam que podiam usar o espaço da cultura para se opor à dominação branca e buscar espaço na sociedade brasileira. Assim como as escolas de samba atuais, os cordões organizavam as atividades de lazer para a comunidade durante o ano, que serviam para gerar recursos para os desfiles e, também, de espaço para celebrar a cultura negra. Se confundindo com a própria identidade do brasileiro, o livro mostra que o ritmo e a festa do carnaval surgem e evoluem juntamente com o cotidiano e a sociedade tupiniquim.

     

    Luciano Valente