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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.1 São Paulo  2008

     

     

    MARIANA IANELLI

     

    ALMÁDENA

    "Vive assim como quiseras ter vivido quando morras."
    Antonio Vieira – Sermão de Quarta-Feira de Cinza, 1672

     

    Almádena, ensina-me a voltar.

    Já varri todos os mortos,
    Não há restos no chão.
    Um quarto branco, uma cadeira,
    O meu tempo é o presente,
    Não tenho do que me queixar.

    Está feito, celebrado.

    Janelas e portas abertas,
    Na mesa a fruta matutina,
    O lírio, o copo d’água.
    Uma casa agradável,
    Fosse isto uma casa.

    Eu me traí, Almádena.

    Agora chove,
    É uma tal plenitude,
    Império absolvido de história.
    Quanta memória vencendo,
    Cobrindo, cavando o rosto,
    Quantos dias, quanto cinzel,
    Quantas horas.

    Está chovendo ainda.
    Eu tenho um rosto sem marcas.

    A lua do amarelo ao sono
    E essa estátua que me olha.
    Uma obra merecida, consumada.

    Eu desapareci, Almádena.

    Nada cumpre dizer
    Tanto quanto dizem esses olhos.
    Eu vivo como quem ama,
    Eu consinto,
    É só o que me cabe.
    Dar e repartir, fazer que não sei,
    No bronze ser o animal que dorme.

    Há uma única lâmpada,
    Há um violino
    E a mão que o desata.
    O vento de quando em quando,
    O terço quadrante e a pedra rolada.

    Há uma chave que nada guarda.

    A terra esplandece,
    Consorte de quem parte.
    Agora amanhece.

    Eu me perdi, Almádena.

     

    Não há rumor nas coisas,
    Elas são o que são,
    Não desejam explicar-se.
    A porcelana, a cambraia, a murta
    E a falta de uma asa.

    Aqui não existe o medo,
    Eu planto e eu desbasto.
    As paredes ardem,
    A erva recende,
    O sol vem do leste,
    Tudo em perfeita ordem.

    Está pronto, terminado.

    Um rasgo, um passo em falso,
    Uma sombra
    Agora é tarde.
    As cartas não chegam
    Nem são enviadas.
    A mesa está limpa.

    Eu me esqueci, Almádena.

    As cores, como elas vibram,
    As auroras.
    O verde das baixas altitudes,
    O vermelho, o azul,
    Como entornam.

    Eu desço e me arrebento,
    Eu despenco, sou forte.
    A natureza é forte.
    Quatro pilares me suportam.

    O céu sobre todas as torres,
    Todas as luzes, exceto uma.
    As nuvens se cruzam,
    Juntam-se e se afastam.
    Há uma brisa lá fora.

    O corpo está servido,
    O corpo está saciado.
    Agora anoitece.

    Protege-me, Almádena.

     

     

    Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. Formada em jornalismo e mestre em literatura e crítica literária, é autora dos livros Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005) e Almádena (2007), todos pela editora Iluminuras. Colabora para os jornais O Globo - Prosa&Verso (RJ) e Rascunho (PR). Site oficial: www.uol.com.br/marianaianelli