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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.2 São Paulo  2008

     

     

     

     

    HISTÓRIA DA CIÊNCIA

    Fundos para conter conflitos do pós-guerra na colônia japonesa beneficiaram física

     

    Este ano, o Brasil comemora os cem anos da chegada dos primeiros imigrantes japoneses para trabalhar nas lavouras de café do estado de São Paulo. Mas, de 1908 até hoje, não é só na agricultura que as relações entre os dois países têm sido frutíferas. Os resultados da Colaboração Brasil-Japão (CBJ) na área de raios cósmicos atestam a prosperidade do intercâmbio nipo-brasileiro noutro ramo da ciência: a física das partículas elementares. Quem vê o êxito do presente talvez não imagine o passado dramático que está por trás dele. Esta área da física beneficiou-se de recursos arrecadados no Brasil para conter conflitos internos surgidos na colônia japonesa no pós-guerra. Capítulos da história da física se cruzam com capítulos das histórias mundial, do Brasil e do Japão. Capítulos que desafiaram não só a lei da física, de que "similares se repelem", mas a hipotética "lei social" que, diferente daquela, pressupõe que "os semelhantes se aproximam". Como toda regra tem exceção, toda lei é passível de ser derrubada.

    SIMILARES SE TRAEM Um dos episódios trágicos e específicos da história da imigração, ainda hoje tabu para a comunidade nipônica, resultou no assassinato de pelo menos 23 japoneses pelos próprios japoneses. Trata-se da divisão da colônia em dois grupos, nos anos 1930-40: os katigumi acreditavam na vitória do Japão na Segunda Guerra Mundial e eram a maioria da colônia, que lutava pela sobrevivência, estava desiludida e pretendia voltar para o Japão; já os makegumi, considerados "derrotistas" ou "esclarecidos", eram uma minoria de cerca de 20%, que sabia da derrota. Alguns katigumis fanáticos cometeram atentados contra makegumis, que consideravam traidores.

    Numa tentativa de pôr fim definitivamente a esse conflito interno, um grupo de makegumis resolveu arrecadar fundos para trazer ao Brasil o professor Hideki Yukawa – primeiro cidadão japonês a ganhar um Prêmio Nobel, o de física, em 1949 –, para que desse o testemunho sobre a derrota do Japão. Num livro que conta a história da CBJ, o físico japonês Yoichi Fujimoto transcreveu a carta-convite feita à Yukawa, datada de 17 de agosto de 1952. O documento era assinado, dentre outros, por Shigueo Watanabe, atualmente professor titular aposentado do Instituto de Física da USP, e pelo engenheiro Ayami Tsukamoto que, segundo Watanabe, teria liderado a iniciativa.

    Yukawa, porém, não pôde viajar ao Brasil naquela época. Então, os intelectuais nipo-brasileiros que haviam arrecadado e remetido ao Japão, através do jornal Mainichi Press, o montante de cerca de um milhão de ienes (hoje o equivalente a cerca de R$ 60 mil), para financiar sua viagem, resolveram doá-lo à Universidade de Quioto, que passava por sérias dificuldades no pós-guerra, conta Edison Shibuya, do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "A pesquisa usando radiação cósmica se deve à escassez de recursos. No Japão, nessa época, era a forma de fazer pesquisa de vanguarda utilizando poucos recursos", explica ele.

    Fujimoto relata que foi com parte desse dinheiro que pôde comprar uma peça para transformar seu microscópio monocular em binocular. De acordo com ele, outros cientistas também puderam preparar trabalhos para a conferência internacional sobre física teórica ocorrida em Quioto, em 1953. Além disso, o dinheiro enviado estimulou a formação de um grupo de pesquisas experimentais pioneiras com emulsão nuclear. O grupo, formado por Yukawa, Sin-Itiro Tomonaga e Masatoshi Koshiba – vencedores do Nobel de física em 1949, 1965 e 2002, respectivamente –, além de, entre outros, Mituo Taketani e Fujimoto, seis anos mais tarde, propôs ao cientista brasileiro César Lattes a colaboração entre físicos teóricos e experimentais de ambos os países. "Assim, o gesto da colônia japonesa, convidando o professor Yukawa para auxiliar nos problemas enfrentados no Brasil, contribuiu diretamente para a constituição da Colaboração Brasil-Japão de Raios Cósmicos e, indiretamente, para a consolidação da chamada física das partículas elementares", comemora Shibuya.

    Em 1958, quando das comemorações do cinqüentenário da imigração japonesa, os professores Taketani e Yukawa vieram ao Brasil e fizeram questão de visitar o vilarejo de Mizuho, localizado em São Bernardo do Campo (SP). "O lugar foi memorável, pois o movimento para dar suporte à física japonesa foi iniciado por um pequeno círculo de jovens desse vilarejo", lembra Fujimoto, e continua: "foi um grande evento para a colônia japonesa, dando forte apoio tanto para a colônia quanto para a física japonesa. Ao mesmo tempo, foi o início da amizade entre físicos de ambos os países". Também em 1958, o professor Taketani foi convidado a ser diretor científico do Instituto de Física Teórica em São Paulo. "Ele aceitou o convite e quis aproveitar a oportunidade para expressar sua gratidão aos emigrantes japoneses pelo valoroso apoio", comenta Fujimoto. "O professor Taketani", conta Edison Shibuya, "toda vez que eu ia ao Japão, fazia questão de me encontrar, para mostrar a gratidão deles à colônia japonesa no Brasil, que eu estava representando. Segundo a ótica deles, eles só sobreviveram a esse período do pós-guerra graças à contribuição vinda do Brasil, que tinha o propósito de acabar com o conflito [entre katigumis e makegumis], ou seja, de trazer a paz", finaliza.

    SIMILARES SE ATRAEM Data de 16 de abril de 1959 a carta que Yukawa enviou a César Lattes, propondo-lhe a formação da CBJ. Mas a afinidade científica que uniu os pesquisadores decorre de encontros anteriores: o brasileiro foi um dos que, em 1947, observou empiricamente a partícula atômica méson-pi, cuja existência já tinha sido proposta teoricamente cerca de uma década antes por Yukawa, fato que propiciou a conquista do Nobel pelo pesquisador japonês.

    Embora o átomo seja neutro, é composto por partículas que têm carga elétrica: prótons positivos e elétrons negativos. Intrigava os pesquisadores o fato dos prótons, apesar de todos positivos, ficarem unidos no núcleo atômico, quando deviam se repelir, já que pelas leis da física "os opostos se atraem e os similares se repelem". "Alguma coisa tem que segurá-los; tem que ter uma cola. E esta cola é o méson, que é liberado com uma 'pancada'", explica Shibuya, um dos sucessores de Lattes na CBJ. Os raios cósmicos, partículas de altas energias que chegam de todas as regiões do céu, são responsáveis pelo choque que libera a energia que une as partículas positivas.

    A CBJ deu novo ímpeto às pesquisas sobre raios cósmicos e à física das partículas elementares. Em 1962, foi feito o primeiro experimento da colaboração, no Monte Chacaltaya, na Bolívia. Os experimentos de colisão e liberação de mésons tiveram continuidade próspera com a CBJ. Uma de suas principais descobertas é chamada "centauro", fenômeno de produção de multipartículas com características não encontradas na produção de multipartículas em acelerados sintéticos. Fruto da CBJ, pesquisas recentes sobre o centauro aguardam confirmação do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern), em Genebra, Suíça.

     

    Carolina Raquel Justo