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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.2 São Paulo  2008

     

     

     

     

    PRESERVAÇÃO CULTURAL

    Arca dos tesouros gastronômicos ameaçados de extinção

     

    De acordo com uma fundação italiana ligada à biodiversidade alimentar, a Europa perdeu 75% de sua diversidade de alimentos desde 1900 e o continente americano perdeu mais de 90% nesse mesmo período. Para defender a herança da biodiversidade agrícola e das tradições gastronômicas ainda existentes no mundo, surgiu a idéia da Arca do Gosto, um recipiente metafórico de duplo sentido: por um lado, lembra a embarcação de Noé, ao se propor a salvar os gostos ameaçados pelo dilúvio representado pela padronização industrial, pelas leis de higiene, pelas regulações de distribuição em larga escala e pelos danos ambientais; e por outro, simboliza os antigos baús que guardam tesouros esquecidos.

    O projeto dessa Arca surgiu no primeiro Salão do Gosto, em 1996, na cidade italiana de Turim. O evento, que acontece a cada dois anos, reúne mais de 150 mil pessoas, entre chefes de cozinha, especialistas em vinhos e pequenos produtores de alimentos de todo o mundo. Esse é um dos encontros organizados pelo movimento Slow Food, que surgiu na Itália em 1989 e já se espalhou por dezenas de países, incluindo o Brasil. O nome do movimento faz parecer que se trata de uma mera contraposição à pressa da alimentação nos fast food, que se espalharam por todas as grandes cidades do mundo globalizado, mas seus projetos envolvem desde preocupações ambientais até a compensação do trabalho dos produtores de alimentos. E, no caso da Arca do Gosto, o tesouro gastronômico mundial.

    A Arca é um catálogo que identifica, localiza, descreve e divulga sabores de produtos previamente definidos por uma comissão científica. Já são 750 produtos de todo o mundo catalogados, incluindo 11 do Brasil, todos disponíveis no site da Slow Food Foundation for Biodiversity (www.slowfoodfoundation.org), criada em 2003 para dar suporte aos projetos do movimento em defesa da biodiversidade agrícola e das tradições gastronômicas. Além das qualidades gastronômicas, como cheiro, sabor e textura, os critérios para selecionar os produtos para a Arca incluem a sua ligação à memória e identidade de um grupo, a sua produção por pequenos grupos familiares ou sua transformação artesanal de pequeno porte, e o seu risco real ou potencial de extinção.

    No Brasil, a comissão científica da Arca do Gosto é formada por agrônomos, nutricionistas, chefes de cozinha, entre outros profissionais ligados à área. Entre os produtos brasileiros que esses especialistas elegeram para compor a Arca e que já foram catalogados estão o pirarucu e o babaçu. O primeiro é afetado pela desestabilização do balanço do ecossistema de lagos da bacia hidrográfica amazônica causada pelo processo de urbanização acelerado, que diminuiu os estoques naturais deste, que é um dos maiores peixes de escamas do mundo. E o segundo, pela apropriação ilegal da terra por grandes empresas e pelo aumento de cultivo de soja em grandes monoculturas industriais, que ameaçam a produção do coco de babaçu. Mas a catalogação, por si só, não pode reverter essa situação.

     

     

    "Não podemos superestimar o papel da Arca do Gosto. Os problemas são extremamente complexos e seria necessário a mobilização de toda a sociedade civil e dos governantes para resolvê-los", diz a cientista de alimentos Roberta Marins de Sá, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, presidente da comissão brasileira da Arca do Gosto e coordenadora dos projetos do Slow Food no Brasil. No caso do babaçu, ela conta que há um trabalho histórico de valorização do produto e das comunidades, envolvendo milhares de mulheres quebradeiras de coco de babaçu na luta pelos direitos de acesso aos recursos naturais, conservação e uso sustentável dos babaçuais e pela Lei do Babaçu Livre. Trata-se do PL 231/2007, proposto pelo deputado Domingos Dutra (PT-MA) – que é filho de uma quebradeira de coco do Maranhão –, que proíbe a derrubada da palmeira de babaçu em seis estados e cria regras para a exploração da espécie. O PL foi aprovado pela Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados em agosto do ano passado, mas ainda precisa passar pelo plenário da Câmara e do Senado e ser sancionado pelo presidente Lula.

    "O Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu e a Associação em Áreas de Assentamento no estado do Maranhão são os maiores responsáveis pelos avanços já obtidos nessa área", afirma Roberta. "A Arca se soma a muitas outras ações, principalmente as que já estão sendo desenvolvidas pelas comunidades envolvidas com o produto, e o seu objetivo principal é divulgar que esses produtos existem, que têm valores gastronômicos, culturais, sociais e ambientais envolvidos com a sua produção e consumo e que estão sendo negligenciados em detrimento de um suposto progresso e desenvolvimento", completa.

     

    Rodrigo Cunha