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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.2 São Paulo  2008

     

     

    CONSERVAÇÃO, ÉTICA E LEGISLAÇÃO BRASILEIRA: UMA PROPOSTA INTEGRADA EM DEFESA DOS ANIMAIS NÃO-HUMANOS

    Eleonora Trajano e Luis Fábio Silveira

     

    Dentre as várias e profundas transformações sociais observadas durante o século passado, destaca-se o surgimento, como movimento social organizado, do ativismo pró-bem-estar dos animais não-humanos. Tipicamente, em estados democráticos, movimentos sociais que englobam massas críticas importantes (pela quantidade – de eleitores – e/ou pela influência política) levam à criação de legislações específicas e que impõem determinados comportamentos e atitudes, defendidos por esses grupos, à sociedade como um todo.

    Note-se que a maioria das leis corresponde a regras de sobrevivência da própria sociedade (como aquelas que tornam crimes os atos de matar e roubar outros humanos), ou de proteção e/ou melhoria de vida para determinados setores (direitos trabalhistas, previdência social). Entretanto, certas leis não têm como alvo os benefícios diretos e imediatos de indivíduos ou grupos, mas defendem posturas filosóficas (mesmo que não explicitadas dessa forma) organizadoras das sociedades. Assim, não é de se estranhar que mudanças nas relações entre humanos e não-humanos resultem em novas legislações ou mesmo no aperfeiçoamento das antigas.

    As grandes mudanças sociais são frequentemente patrocinadas por movimentos populares fortes e carregadas com uma alta dose de sentimentos. Isto é natural e esperado, já que as emoções são o mais poderoso drive para animais com sistema nervoso complexo (caso dos vertebrados em geral). No entanto, a consolidação de novas organizações sociais estáveis passa, necessariamente, por uma racionalização do processo, que confere coerência interna e externa. Nos comportamentos guiados basicamente por emoções, como é o caso dos movimentos religiosos, todos e ninguém têm razão, uma vez que esses sentimentos são subjetivos e, portanto, não estão sujeitos a testes ou hierarquizações de valores. De fato, quando se tenta atribuir valores a percepções subjetivas é que surgem os preconceitos, o racismo, a intolerância, as perseguições, enfim, a injustiça. Já a racionalização busca, no mundo não-subjetivo, as evidências que embasarão atitudes, propostas e decisões, estando igualmente aberta tanto às evidências a favor como àquelas contrárias às idéias defendidas.

    Em suas manifestações contrárias à experimentação animal, os movimentos ditos de defesa dos animais procuram mostrar para a sociedade uma imagem completamente equivocada, a de que cientistas são indivíduos frios e insensíveis ao sofrimento dos demais organismos. O ataque aos cientistas que trabalham com experimentação animal apresenta ainda desdobramentos mais perniciosos e intelectualmente desonestos ao tentar comparar ou mesmo igualar esses profissionais aos portadores de uma psicopatologia conhecida como sadismo. O diferencial da comunidade científica em relação ao conjunto da sociedade é, na realidade, a prevalência da visão racional, que norteia sua curiosidade, também acima da média. Tal curiosidade só é satisfeita através de respostas racionais, baseadas em evidências legítimas e que podem ser independentemente verificadas. Esses atributos de personalidade, entretanto, não possuem relação direta com a estrutura emocional individual. Neste aspecto, a comunidade científica é uma amostra da sociedade na qual ela se insere, potencialmente abrangendo a igual diversidade de relações emocionais com os elementos do mundo que a todos cerca, na mesma proporção que, na sociedade em geral, há desde indivíduos com forte relação afetiva com determinados animais não-humanos até aqueles emocionalmente indiferentes, passando por toda a gradação possível de sentimentos. Ou seja, cientistas não são intrinsecamente pessoas frias, egoístas e insensíveis, mas diferem de boa parte da sociedade pelo fato de nortearem suas decisões finais pela racionalidade, evitando manter o compromisso com o erro e com o contraditório.

    É notório o excesso de leis vigentes no nosso país, fruto da nossa cultura cartorial e estatizante. Esse excesso de leis é ainda multiplicado por uma série de outros instrumentos como portarias e instruções normativas que, muitas vezes, não obedecem sequer a uma coerência interna, criando um verdadeiro "Frankenstein" jurídico, com normas que se contradizem em todos os níveis da Federação. Frequentemente, as leis são propostas e aprovadas sob uma carga emocional forte, como forma de resposta a pressões de grupos com os mais diversos interesses, não havendo uma cuidadosa verificação da sua integração com a legislação vigente. Em alguns casos (como o que se verifica atualmente no caso da experimentação animal), os legisladores não se dão ao trabalho de consultar especialistas das áreas envolvidas para que a visão antropomórfica e emocional de um determinado grupo de pressão seja cotejada com a realidade e com as necessidades de se produzir o conhecimento científico vital para o desenvolvimento de uma determinada área do conhecimento. O resultado é de insegurança para os pesquisadores, criando um clima que tangencia o terrorismo e que pode manter-nos ainda mais ignorantes cientificamente, graças a uma profusão e confusão de conceitos importantes para esta discussão.

     

     

    CONSERVAÇÃO VERSUS ÉTICA DO BEM-ESTAR: UMA QUESTÃO DE DEFINIÇÕES Leis brasileiras a respeito dos direitos dos animais frequentemente mesclam, de forma indiscriminada, elementos pertencentes a dois domínios distintos, o da conservação e o da ética do bem-estar animal. O domínio da conservação é o do ecossistema e sua menor escala são as populações. Já o bem-estar é uma propriedade psico-fisiológica do indivíduo, que se caracteriza por um contínuo e que tem, em uma extremidade, o estado de bem-estar completo e, no outro, o do sofrimento (não apenas a dor física, como também o desconforto psicológico, o medo, o tédio). Um dos maiores problemas dessas leis, que inclusive criam conflitos que comprometem sua aplicabilidade, é a falta de definições claras ou a presença de definições mal embasadas ou incoerentes. Um ponto ilustrativo, e que, no caso em discussão, tem precedência sobre todos os demais aspectos, é a própria definição de "animais".

    Cientificamente, animais (Animalia) são organismos heterotróficos multicelulares, melhor referidos como metazoários, abrangendo seres tão diversificados como os cnidários, as planárias, os nematóides, o imenso grupo dos artrópodes, os equinodermos e os vertebrados, onde nos incluímos. Esta é uma definição absolutamente consensual. É legítimo e plenamente aceitável circunscrever a aplicação da legislação a subgrupos dentro dos Animalia, desde que estes sejam claramente definidos e caracterizados. Por exemplo, reconhecendo as dificuldades técnico-científicas em se avaliar o bem-estar para invertebrados (incluindo cordados não-vertebrados), a Comissão de Ética em Experimentação Animal do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo restringiu seu campo de ação aos vertebrados, um grupo consensualmente bem definido do ponto de vista taxonômico. O nome da Comissão de Ética reflete essa preocupação: Comissão de Ética em Uso de Animais Vertebrados (destaque nosso) em Experimentação (CEA) do IB-USP. Algumas leis fazem menção ao subgrupo dos Animalia a que se aplicariam, como o Decreto Estadual paulista nº 52.220, de 04/10/2007, que cria o "Cadastro Estadual de atividades que utilizam animais da fauna silvestre nativa ou exótica, seus produtos e subprodutos (Cadfauna)", e que, em seu artigo 3º, define que "(…) animais da fauna silvestre nativa, são todos os animais terrestres pertencentes às espécies nativas, migratórias…". Infelizmente, a leitura criteriosa e completa dessas leis revela que a definição adotada não permeia o conjunto de seus artigos, tornando-as parcialmente inaplicáveis. No caso do Cadfauna, é difícil conceber a viabilidade de um cadastro com informações atualizadas quanto à quantidade de animais, por espécie, e animais reproduzidos em cativeiro, por espécie (Artigo 8º), de invertebrados terrestres mantidos em criadouros (Artigo 3º) – note-se que, em suas definições, o decreto não restringe sua aplicação aos vertebrados.

    Nosso marco legal nesta discussão inicia-se com a Lei Federal nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967, que dispõe sobre a proteção à fauna, e estipula, em seu Artigo 1º (que, ao nosso conhecimento, nunca foi revogado), que "os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha". Note-se que, nos seus diversos artigos, são mencionados "anfíbios e répteis" (Art. 18), "lepidópteros e outros insetos" (Art. 19) e "espécimes da fauna ictiológica" (peixes) (Art. 27, em redação dada pela Lei nº 7.653, de 12/02/1988), além dos evidentes, e sempre implícitos, mamíferos e aves, o que leva à conclusão de que tal lei aplica-se à totalidade dos Animalia. Note-se que uma lei federal têm precedência hierárquica sobre leis estaduais, decretos, resoluções e instruções normativas, e não pode ser contradita. No entanto, tal Lei não faz referência a protocolos de procedimentos éticos, tratando o assunto em sua generalidade.

    Na ausência de restrições taxonômicas, a Lei Estadual (SP) nº 11.977, de 25 de agosto de 2005, que instituiu o Código de Proteção aos Animais do Estado, legisla sobre todos os metazoários. Além de sua aplicabilidade para invertebrados ser altamente questionável, a lei trata os animais silvestres vivendo na natureza exclusivamente no âmbito da conservação, remetendo para o domínio da ética, no Capítulo III, animais domésticos, explicitamente cães e gatos (Seção I), animais de tração (bovinos e eqüinos) (Seção II), de criação para consumo (Seções IV e V), de atividades de diversão e cultura (Seção VI) e aqueles que venham a ser transportados (Seção III), e, no Capítulo IV, os ditos animais da experimentação animal. Não há procedimentos éticos previstos para todos os demais animais que vivem no estado de São Paulo. Pior: todos os organismos aquáticos, incluindo peixes, tartarugas, jacarés e muitos anuros, ficam a descoberto tanto no âmbito da ética como no da conservação, uma vez que a pesca, definida como "todo ato tendente a capturar ou extrair elementos animais ou vegetais que tenham na água seu normal ou mais freqüente meio de vida" só é proibida "em épocas e locais do estado interditados pelo órgão competente" (algo bastante vago).

    NO DOMÍNIO DA CONSERVAÇÃO: PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO ECOLÓGICA Em seu Capítulo I, Artigo 1º, Parágrafo Único, a Lei Estadual nº 11.977 traz as seguintes definições:

    Consideram-se animais:

    1. silvestres, aqueles encontrados livres na natureza, pertencentes às espécies nativas, migratórias, aquáticas ou terrestres, que tenham o ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras ou em cativeiro sob a competente autorização federal;

    2. exóticos, aqueles não originários da fauna brasileira;

    3. domésticos, aqueles do convívio do ser humano, e que não repelem o jugo humano;

    4. domesticados, aqueles de populações ou espécies advindas da seleção artificial imposta pelo homem, a qual alterou características presentes nas espécies silvestres;

    5. em criadouros, aqueles nascidos, reproduzidos e mantidos em condições de manejo controladas pelo homem, e, ainda, os removidos do ambiente e que não possam ser reintroduzidos, por razões de sobrevivência, em seu habitat de origem;

    6. finantrópicos [sic], aqueles que aproveitam as condições oferecidas pelas atividades humanas para estabelecerem-se em habitats urbanos ou rurais.

    Na falta de uma hierarquia explícita, forçoso é admitir que as categorias do sistema acima tem mesmo nível hierárquico, e cada animal deveria entrar em uma, e apenas uma, categoria. Exemplificando com o pombo doméstico (Columba livia), animal que pode ser classificado como exótico, doméstico, sinantrópico ou de criadouro demonstra a redundância da classificação.

    Essa classificação peca pela falta de clareza e de embasamento biológico, com noções contrárias não apenas ao bom senso como também a definições bem estabelecidas na literatura científica. É o caso do uso dos termos "domesticados", para o quê se assemelha mais ao que é mais propriamente traduzido por "domésticos" (do inglês, domestic animals; do francês animaux domestiques e não domestiques), e "domésticos", com uma definição totalmente obscura e sem significado biológico. Por outro lado, a primeira parte da categoria acima denominada "animais de criadouro" é a que mais se aproxima da definição de "doméstico" mais aceita internacionalmente, enquanto a segunda é também obscura.

    Dado o acima exposto, propomos abaixo uma nova classificação, basicamente hierárquica e embasada cientificamente. A principal noção que fundamenta esta classificação é a de que ser silvestre, introduzido, sinantrópico, ou estar em criadouros, não constitui uma propriedade biológica da espécie e sim uma condição a que estão sujeitos alguns indivíduos ou suas populações. Evidentemente, o que é introduzido no Brasil é (ou foi em algum momento) silvestre em outro lugar, do mesmo modo do que é doméstico veio de linhagens que são (ou foram) silvestres. Ou seja, a inclusão nas diferentes categorias é dependente de contexto e se aplica a populações ou conjuntos de indivíduos, e não necessariamente a espécies em seu todo.

    Desta forma, consideramos:

    A. Animais não-domésticos: animais de espécies com populações silvestres em alguma parte de sua distribuição (ou que extinguiram na natureza há poucas gerações, e. g. ararinha-azul, Cyanopsitta spixii, e mutum-de-alagoas, Pauxi mitu) e que não sofreram qualquer processo de seleção em cativeiro.

    A.I. Não confinados: sem restrição à liberdade de movimentos, deslocamentos e escolha de parceiros reprodutivos:

    A.I.1. Em estado silvestre: populações encontradas livres na natureza, que não dependem dos humanos para sua sobrevivência e cuja dinâmica (taxas de reprodução, crescimento, sobrevivência etc.) não está correlacionada aos recursos (alimento, abrigo etc.) providos diretamente por humanos. Incluem populações:

    A.I.1.1. Nativas: ocorrem naturalmente em território brasileiro, sem intervenção humana, passando parte ou todo o seu ciclo de vida neste território.

    A.I.1.2. Introduzidas: introduzidas deliberada ou acidentalmente no território brasileiro e que colonizaram os habitats adequados para a sua sobrevivência, encontrando-se atualmente em estado silvestre (e. g. javali, Sus scrofa, e lebre, Lepus europaeus, ambos com origem no Velho Mundo) [equivaleria ao que frequentemente se encontra referido como exóticos na legislação].

    A.I.2. Em estado não-silvestre: populações cujo tamanho e dinâmica estão fortemente correlacionados a recursos proporcionados pelos humanos, vivendo em sua proximidade:

    A.I.2.1.Nativas: originárias de um estoque nativo (ver acima). Como exemplos podem-se citar o vampiro-comum, Desmodus rotundus, o urubu-preto, Coragyps atratus, o quero-quero, Vanellus chilensis, a avoante, Zenaida auriculata e a asa-branca, Patagioenas picazuro.

    A.I.2.2. Introduzidas: originárias de um estoque introduzido no Brasil (ver acima). Exemplos: a lagartixa-de-paredes, Hemidactylus mabuya, os ratos-de-esgoto, Rattus rattus, R. norvegicus, o camundongo, Mus musculus, o bico-de-lacre, Estrilda astrild, e o pardal, Passer domesticus.

    A.II. Confinados: aqueles com restrição de liberdade e de comportamento. Estes animais, uma vez retirados do seu ambiente natural, passam a ser ecologicamente neutros. É importante ressaltar que esta neutralidade ecológica deixa de existir quando da reintrodução de indivíduos em seu ambiente natural, obedecendo a determinados critérios (1).

    Os animais alocados nesta categoria podem ser originários da fauna nativa (e. g. capivaras, papagaios, jacarés, rãs Leptodactylus spp.) ou não (e. g. javalis, rãs-touro, trutas, leões, elefantes, avestruzes). Nesta categoria são incluídos os animais mantidos em criadouros para fins de produção animal e animais de companhia. Animais em zoológicos, colecionadores de fauna viva ou criadouros voltados para a conservação ex situ também se enquadram nesta categoria, bem como aqueles presentes nos santuários, que abrigam idealmente os indivíduos que não podem ou não devem ser reintegrados à natureza. Animais não-domésticos mantidos em laboratórios e residências também são alocados aqui.

    B. Animais domésticos: são aqueles resultantes do processo de domesticação, ou seja, animais de linhagens reproduzidas em cativeiro por centenas de gerações, com controle total de sua reprodução, organização do território e fontes de alimento (2). Frequentemente, incluem fenótipos não encontrados nas linhagens silvestres aparentadas, resultado de seleção praticada pelos humanos; tais fenótipos podem substituir totalmente os fenótipos silvestres originais, resultando em raças voltadas a um determinado propósito (ornamental, companhia, produção, velocidade). São, por definição, introduzidos em todas as regiões zoogeográficas e estão ou em confinamento ou em estado não-silvestre (e. g. gatos e cachorros vira-latas, nas cidades). Eventualmente podem formar populações em habitats onde não dependem mais dos recursos providos por humanos, enquadrandose aí na categoria de ferais (e. g. búfalos na região do rio Guaporé, cavalos nas savanas de Roraima, porcos-monteiros no Pantanal).

    No sistema proposto acima, a referência a qualquer animal silvestre abrange os indivíduos (e populações, por extensão) não-domésticos, confinados ou não. De acordo com definições como a apresentada na Lei Estadual (SP) nº 11.977, estão incluídos entre os animais sinantrópicos aqueles que, aproveitando-se das condições oferecidas pelas atividades humanas, estabelecem-se em habitats rurais (além dos urbanos). Neste caso, a categoria "sinantrópicos" equivaleria aos nossos animais em estado não-silvestre tanto nativos quanto introduzidos. Julgamos mais significativo utilizar, como critério de classificação, a dinâmica da população e não apenas onde ela se encontra. Desta forma, como explicitado acima, sinantrópicos são animais em estado não-silvestre. Nessa mesma lei existem outras duas categorias, a dos animais domésticos e a dos domesticados, mas a falta de clareza nas definições dificulta a aplicação inequívoca dessa classificação. Estas definições, inclusive, sugerem noções que são contrárias ao uso comum dos termos. Cães e gatos são domésticos, ao passo que um exemplar com morfologia e comportamento indistinguível dos de indivíduos de populações não-domésticas, nativas (e. g. sagüis e outros macacos) ou não (e. g. leões em circos) podem ser referidos como domesticados na medida que se adaptam a uma situação de manejo. Em nossa opinião, a distinção entre esses termos não é muito clara e objetiva.

    Por definição, animais em estado não-silvestre caracterizam-se por um desvio nos parâmetros populacionais em relação ao observado no estado silvestre, que seria considerado como original. As conseqüências desse desvio para as outras espécies e para o ecossistema, como um todo, podem variar de acordo com a situação e o papel ecológico da espécie, e a determinação desse impacto depende de estudos científicos. Frequentemente, porém não necessariamente, a presença de espécies em estado não-silvestre em um dado ecossistema modifica o equilíbrio ecológico existente, levando a um novo estado de equilíbrio, caracterizado por uma diminuição da diversidade alfa (riqueza de espécies) e beta (riqueza + abundância relativa de cada espécie). É o que acontece, por exemplo, em áreas rurais onde a presença de animais domésticos, fonte de alimento para os hematófagos, provocou um aumento nas populações do vampiro comum, que passa a ser altamente dominante (3).

    Ser animal de laboratório, ou de experimentação científica não é uma propriedade taxonômica, e sim um estado de um conjunto de indivíduos, definido pelo confinamento, aliado aos procedimentos a que os mesmos são submetidos, ditados pelos objetivos do confinamento. Qualquer organismo que tenha sido, seja ou venha a ser utilizado para estudo científico com o indivíduo vivo enquadra-se na categoria, ou seja, todos os metazoários são, de fato ou potencialmente, animais de laboratório. Entre os organismos de laboratório de fato, ou seja, os que têm sido efetivamente utilizados em experimentação, incluem-se tanto animais domésticos (e. g. linhagens de roedores e coelhos), como não-domésticos capturados na natureza, nativos ou introduzidos.

    Evidentemente, esses animais não têm a senciência (4) – percepção subjetiva, ou consciência de sensações e sentimentos – da sua destinação após a captura ou de que são de laboratório e de que serão utilizados em experimentos. Até onde nosso conhecimento alcança e as evidências indicam, podemos dizer que a senciência desses animais, que está na base do bem-estar, centra-se nas condições de manutenção (espaço, temperatura, suprimento de água e comida, convívio social quando este faz parte da biologia da espécie, etc) e no estado provocado pelos procedimentos experimentais (dor, desconforto, estresse pela manipulação etc), incluindo eutanásia.

    Note-se que isto se aplica igualmente, e na mesma medida, a animais de companhia ou estimação (pets), domésticos ou não, que estão sujeitos a proprietários desinformados (é emblemático o número de tartarugas-verdes, ou tigres-d'água, Trachemys scripta, animais carnívoros que sofrem com uma dieta exclusivamente vegetariana provida por seus bem-intencionados donos) ou insensíveis, o que parece ser muito comum. A diferença fundamental é que, nesse caso, não há qualquer ganho, presente ou futuro, seja para a espécie a que pertence o pet ou outras, seja para o meio ambiente, a ciência ou mesmo para a humanidade, já que, para os animais, o estado de sofrimento é o mesmo, não importando se ele está um uma gaiola de biotério ou exposto na vitrine de uma Pet Shop em um shopping aberto até as 22 horas, durante todos os dias da semana.

    ANIMAIS "NOCIVOS" A Instrução Normativa 141 do Ibama, de 19 de dezembro de 2006, regulamenta o controle e o manejo da fauna sinantrópica nociva. Define-se fauna sinantrópica nociva como "fauna sintrópica que interage de forma negativa com a população humana, causando-lhe transtornos significativos de ordem econômica ou ambiental, ou que represente riscos à saúde pública". Segundo o artigo 1º dessa IN, a declaração de nocividade é feita pelo órgão federal ou estadual do Meio Ambiente, Saúde ou Agricultura, a partir de protocolos definidos pelos respectivos ministérios. Não há qualquer menção a protocolos de procedimentos para o referido manejo e controle, mas há uma clara brecha para uso de métodos eticamente inaceitáveis, como se vê no "Artigo 6º – Os venenos [destaque nosso] e outros compostos químicos utilizados no manejo ambiental e controle de fauna devem ter registro específico junto aos órgãos competentes, (…)".

    São incluídas entre as "espécies passíveis de controle por órgãos do governo", artrópodes nocivos, tais como abelhas, animais domésticos ou de produção, quando estes se encontram em situação de abandono ou alçados, e. g. Canis familiaris e Felis catus (sic), roedores sinantrópicos comensais (e. g. Rattus rattus, Rattus norvegicus, Mus musculus), quirópteros em áreas urbanas e peri-urbanas e quirópteros da espécie Desmodus rotundus em áreas endêmicas ou de risco para a raiva. Note-se que, no âmbito dessa IN, animais abandonados, como cães e gatos, são nocivos! Mais ainda, morcegos insetívoros e nectarívoros que vivem ou se alimentam próximos a áreas urbanas são igualmente nocivos e passivos de manejo, a despeito do seu importante papel na polinização e no controle de insetos. Não é preciso se aprofundar muito no tema para se perceber a perversidade dessa norma legal, que se baseia no conceito, ética e biologicamente inaceitável, de nocividade. Pior, a referida IN valida e reforça uma visão antropocêntrica retrógrada e eticamente insustentável, indo na contramão do avanço tão bem vindo e necessário nas relações entre humanos e não-humanos e na própria visão que temos do mundo em que vivemos e do qual dependemos.

     

     

    Note-se que os procedimentos de controle que vêm sendo utilizados no âmbito da IN 141 por órgãos oficiais (como secretarias de Agricultura, que usam varfarina para exterminar morcegos vampiros) são proibidos pela Lei Federal nº 5.197 que, em seu Art. 1º, diz: "A utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha de espécimes da fauna silvestre são proibidas. A) com (…) venenos [destaque nosso], incêndio ou armadilhas que maltratem a caça;".

    É fundamental esclarecer que não defendemos aqui uma posição contrária ao controle em si, e sim ao modo como essa questão vem sendo tratada. O controle é justificável, desde que amparado em estudos científicos adequados, quando visando à restauração de níveis anteriores de diversidade (domínio da conservação), à restrição de doenças (domínio da chamada saúde pública) e mesmo, em casos muito bem estudados, à diminuição de incômodos, perdas econômicas, arquitetônicas, artísticas e de outros campos dos interesses humanos.

    O que aqui ressaltamos é, em primeiro lugar, que se deve banir o uso do termo "nocivo" de quaisquer políticas, discussões e documentos técnicos, inclusive como política obrigatória de educação ambiental. Em segundo, porém não menos importante, defendemos a inserção desses controles no domínio da ética, sujeitando-se e condicionando-os a procedimentos aceitáveis do ponto de vista do bem-estar animal e iguais aos que se postula para animais de experimentação, incluindo aí comitês formados por técnicos com habilitação e competência para determinar, sugerir ou aprovar os métodos de controle de populações animais.

    NO DOMÍNIO DA ÉTICA: PRINCÍPIO DA ISONOMIA (EQUITABILIDADE), OU TODOS OS ANIMAIS TÊM IGUAL DIREITO AO BEM-ESTAR O australiano Peter Singer, filósofo e professor de bioética em Princeton (EUA), e, sem dúvida alguma, defensor dos chamados direitos dos animais, afirma em seu livro Writtings on an ethical life (5): "Dor é ruim, e níveis similares de dor são igualmente ruins, não importa de quem [destaque nosso] seja essa dor. Por ‘dor’ eu aqui incluiria sofrimento e augústia de todos os tipos. Isso não quer dizer que a dor é a única coisa ruim, ou que infligir dor seja sempre errado. Às vezes é necessário infligir dor a si mesmo ou a outros (…). Mas se justifica quando isso leva a menos sofrimento no futuro; a dor é em si mesma algo ruim. Opostamente, o prazer e a alegria são bons, não importa de quem seja o prazer e a alegria, embora fazer algo para obter prazer e alegria possa ser errado, por exemplo, se causar danos a outros" (tradução dos autores). Esta é a primeira de quatro proposições gerais, que são extensivamente discutidas e justificadas ao longo da obra.

    Justificativas muito bem embasadas para o uso de animais de laboratório vêm sendo divulgadas, como é o caso do excelente artigo de Fabrício Marques (6). De fato, os melhores argumentos podem ser sumarizados na seguinte frase: "às vezes é necessário infligir dor a si mesmo ou a outros (…), mas se justifica quando isso leva a menos sofrimento no futuro". Não é nosso propósito desenvolver esse tema aqui, pois julgamos que o mesmo já vem sendo suficientemente bem exposto. Queremos apenas trazer à tona um importante argumento, que não tem sido suficientemente lembrado: a experimentação animal resulta em benefícios em termos de diminuição do sofrimento a longo prazo, beneficiando um incontável número de indivíduos, não apenas humanos como também outros animais, já que a medicina veterinária precisa e se beneficia da experimentação (obviamente) animal.

    Por outro lado, cabe-nos tratar de assunto correlato, este sim negligenciado, de forma até incompreensível dado o calor e o envolvimento dos movimentos ditos em defesa dos animais. Do ponto de vista ético, não vemos como discordar da assertiva de que "sofrimento é ruim, e níveis similares de sofrimentos são igualmente ruins, não importa de quem seja esse sofrimento". Não é trivial estabelecer quais seriam os níveis similares de sofrimento para diferentes grupos animais, e somente a ciência tem métodos adequados para tal (ver abaixo).

    Com raras e honrosas exceções, os defensores dos animais ignoram totalmente uma imensa parcela dos animais propriamente ditos, que estão sujeitos a um tratamento indubitavelmente mais cruel que o que se alega ser despendido aos animais de experimentação. Incluem-se aqui todos os animais taxados de "nocivos", aos quais se aplica a IN 141 do Ibama, acima referida. Surpreendentemente, não se vê qualquer manifestação organizada, minimamente equivalente aos protestos relativos ao uso de animais na ciência, contra essa Instrução Normativa, que afeta um número muito maior de indivíduos e de forma muito mais cruel.

    Do ponto de vista ético, todos os animais têm igual direito ao bem-estar, independentemente da categoria ecológica em que se encontram, uma vez que tais categorias referem-se a estados das populações, de natureza distinta da do bem-estar, que é individual. Ou seja, um indivíduo de uma população em estado não-silvestre, que causa transtornos aos humanos (como um rato de esgoto), sofre tanto quanto um indivíduo de uma linhagem laboratorial (rato albino) da mesma espécie.

    Animais de experimentação não têm nem menos nem mais direitos que os demais. No que diz respeito à eutanásia em si, devem ser aplicados princípios gerais para quaisquer animais que se justifique suprimir, seja para fins de aquisição de conhecimento científico (incluindo a coleta científica para museus, universidades e centros de pesquisa), alimentação (abate de confinados e caça/pesca/ de não-confinados) ou controle populacional para fins sanitários ou outros. No que diz respeito às condições de manutenção, aplicamse os princípios gerais para animais confinados. Portanto, no âmbito da proteção aos direitos dos animais não-humanos, não tem sentido tratar animais de laboratório como uma classe separada para fins de bem-estar.

    Voltando a P. Singer, prazer e felicidade são bons, não importa de quem são esse prazer e felicidade, embora fazer algo para obter prazer ou felicidade possa ser errado na medida que traz sofrimento para outros. Em linhas gerais, esta é a justificativa para a interdição não somente de atividades culturais e de lazer que envolvam mamíferos e aves, como circos, festas de boiadeiros e lutas de cães e galos, que já contam com a ferrenha oposição de movimentos em defesa dos animais, como também daquelas envolvendo outros animais, a destacar a pesca esportiva, que surpreendentemente não encontra qualquer oposição popular. É escandaloso o fato da Lei Federal nº 5.197, de proteção à fauna, não só não coibir como apoiar a caça e pesca esportivas: "Art. 6º O Poder Público estimulará: a) a formação e o funcionamento de clubes e sociedades amadorísticas de caça e de tiro ao vôo objetivando alcançar o espírito associativista para a prática desse esporte [destaque nosso]. No caso da pesca, enquanto pesquisadores devem submeter-se a procedimentos demorados e restritivos quanto ao número de espécimes a serem coletados, no processo para obter licença para a captura de peixes visando à realização de estudos, basta ao turista pagar uma taxa para o Estado a fim de realizar essa captura (Arts. 20 a 24), porém sem fins sociais minimamente justificáveis.

    PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO/PREVENÇÃO, OU IN DUBIO, PRO REU Somente a ciência pode estabelecer, com um mínimo de acuidade e confiabilidade, quais seriam níveis similares de sofrimento para seres com organizações biológicas distintas. Os humanos são incapazes de avaliar níveis de bem-estar em organismos cujas manifestações externas de sofrimento são estranhas a nós. Tomemos os peixes como exemplo: estes animais não são biologicamente capazes de emitir sons vocais ou mostrar expressões faciais, têm "sangue frio", não tremem quando assustados, não piscam. Consequentemente, não é possível identificar, nos peixes, os sinais mais claros de sofrimento como em humanos. No entanto, estudos científicos trazem evidências convincentes de que peixes efetivamente sofrem. Mamíferos em evidente estresse apresentam, inicialmente, níveis aumentados de cortisol no sangue; os peixes, quando submetidos a condições teoricamente estressantes, também apresentam uma elevação nos níveis de cortisol e outras alterações bioquímicas e comportamentais análogas às de outros vertebrados (4). Peixes estressados geralmente empalidecem, mas como não existe mudança fisiológica de cor em mamíferos, não percebemos tal empalidecimento como sinal de sofrimento em peixes, a menos que tenhamos o conhecimento científico de tal fenômeno. Por outro lado, estresse não é a única causa de empalidecimento em peixes, de modo que este só pode ser tomado como evidência de sofrimento quando associado às condições a que o animal está exposto.

    O freezing (congelamento) é uma reação comum a ataques em vertebrados, por predadores, por exemplo. Assim, um animal quieto, que intuitivamente percebemos como calmo, pode estar simplesmente paralisado de medo. Ou muito fraco, ou doente. Para animais territoriais, compartilhar um determinado espaço com indivíduos da mesma espécie pode significar estresse, para os sociais, é bem-estar. A biologia comparada vem demonstrando amplamente que cada caso é um caso e mesmo espécies aparentadas podem diferir significativamente em certos aspectos de sua biologia. Portanto, generalizações são complicadas e o ideal é reunir o maior número possível de evidências, investigando cientificamente o maior número possível de táxons.

    O cuidado com as generalizações pode ser também expresso através da aplicação do princípio da precaução. Este princípio, cuja noção é muito antiga e já se apresentava sob diferentes nomes (e. g. princípio da responsabilidade), foi formalmente proposto apenas a partir da década de 1980. Sua argumentação baseia-se na noção de que quando uma determinada atividade representa alguma ameaça ou risco de dano ao meio ambiente (ou à saúde humana), medidas de precaução devem ser tomadas, mesmo quando relações de causa e efeito ainda não foram completamente estabelecidas pela comunidade científica. Esse princípio é reconhecido internacionalmente e já foi incorporado na Constituição Brasileira, no seu artigo 225, que trata de estudos prévios de avaliação de impacto ambiental. Esses estudos devem, idealmente, prever as conseqüências de determinadas intervenções, além de avaliar e propor eventuais medidas de mitigação. De maneira análoga, a manutenção e o manejo de animais cuja biologia ainda não é muito bem conhecida deve levar em conta esse princípio para se garantir condições mínimas de bem-estar.

    CONCLUSÕES Urge uma extensa revisão das legislações pertinentes aos animais não-humanos, visando à integração das leis em um corpo jurídico robustamente embasado, coerente e inequívoco, assim como a definição de protocolos claros, viáveis (inclusive economicamente) e eticamente aceitáveis de procedimentos com animais em geral, incluindo não apenas os ditos de laboratório, mas também aqueles sujeitos a controle, exploração econômica e lazer, dentro de princípios gerais de bem-estar estabelecidos com base em estudos científicos.

    É igualmente necessária uma profunda mudança na cultura da relação com os animais, racional, coerente e desvinculada de visões antropocêntricas. Isto pode ser implementado no âmbito da educação ambiental, dentro do objetivo de descartar, entre outros, a noção de que animais podem ser nocivos, feios, intrinsecamente perigosos, ou mesmo objetos para nosso prazer em atividades como a caça e pesca esportivas.

    A defesa, manejo e conservação dos animais dependem fundamentalmente de decisões racionais, bem embasadas e despidas de qualquer viés emocional, e o respeito às diferentes formas de vida que compartilham esse tempo e espaços com o ser humano devem nortear essa relação. Dentro de sua grande diversidade de formas, os animais são, cada qual dentro de seu nível de organização, seres maravilhosos, complexos, sensíveis e, pelo menos entre os vertebrados, sencientes do bem-estar em todas suas manifestações.

     

    Eleonora Trajano é professora titular do Departamento de Zoologia e coordenadora da Comissão de Ética em Uso de Animais Vertebrados em Experimentação, Instituto de Biociências da USP.
    Luis Fábio Silveira é professor do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da USP e curador associado da Coleção de Aves do Museu de Zoologia da USP.

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Wanjtal, A. e Silveira, L. F. "A soltura de aves contribui para a sua conservação?" Atualidades Ornitológicas, Ivaiporã, PR, n.98, p.7. 2000.

    2. Clutton-Brock, J. A natural history of domesticated animals. Cambridge University Press, Cambridge, p.238, 1999.

    3. Trajano, E. "Ecologia de populações de morcegos cavernícolas em uma região cárstica do sudeste do Brasil". Revista Brasileira de Zoologia, v.2, n.5, p. 255-320. 1985.

    4. Galhardo, L. & Oliveira, R. "Bem-estar animal: um conceito legítimo para peixes?" Revista de Etologia, v.8, n. 1, p. 51-61. 2006.

    5. Singer, P. Writtings on an ethical life. HarperCollins Publs., New York, p. 361, 2000.

    6. Marques, F. "Sem eles não há avanço". Pesquisa Fapesp, n. 144, p. 25-31. 2008.