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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.2 São Paulo  2008

     

     

    ANIMAIS TRANSGÊNICOS – NOVA FRONTEIRA DO SABER

    Lygia da Veiga Pereira

     

    Animais transgênicos (ou geneticamente modificados) são poderosas ferramentas de pesquisa para a descoberta e o desenvolvimento de novos tratamentos para várias doenças humanas. Além disso, a transgenia em animais de grande porte representa uma importante aplicação biotecnológica no sentido de se produzir em grande escala proteínas de interesse comercial. Neste artigo serão discutidos as bases da tecnologia e seu uso em pesquisas básica e aplicada.

    O QUE É UM ANIMAL TRANSGÊNICO? Uma definição de animal transgênico é aquele com moléculas de DNA recombinante exógenas introduzidas em seu genoma por intervenção humana. A técnica foi desenvolvida no final da década de 1970 em camundongos, o mamífero cujo genoma é, até hoje, o mais facilmente manipulável. Atualmente, a transgenia permite tanto a transferência de DNA exógeno para o animal, através da técnica de microinjeção pronuclear, quanto a alteração de DNA já existente no animal, através da recombinação homóloga em células-tronco embrionárias (células ES – do inglês embryonic stem).

    Como o nome sugere, a microinjeção pronuclear consiste na injeção de uma solução de DNA, contendo o transgene de interesse, no pronúcleo de um óvulo recém-fertilizado. Esta metodologia faz com que várias cópias do transgene injetado se integrem em tandem em um sítio aleatório no genoma e sejam transmitidas de forma mendeliana. O transgene deve conter todos os elementos de um gene (promotor, região codificante, sítio de adição de cauda poli-A), porém, deve ser construído por técnicas de DNA recombinante de forma a responder alguma pergunta biológica. Assim, o transgene pode ser utilizado para super-expressar um gene de interesse em tecidos específicos do camundongo – ao avaliarmos as consequências desta super-expressão, poderemos inferir a função daquele gene. Por outro lado, o transgene pode ser utilizado para estudarmos regiões promotoras, através da construção de um transgene com a região em questão dirigindo a expressão de um gene repórter (lacZ ou GFP, por exemplo). Além disso, a microinjeção pronuclear tem sido utilizada para a geração de modelos animais para várias doenças genéticas dominantes, incluindo osteogenesis imperfecta, através da inserção de um alelo mutado, o transgene, no genoma do camundongo.

    Apesar de ser uma importante ferramenta de pesquisa, esse método apresenta algumas limitações. Por causa do sítio aleatório de integração do transgene, este poderá não estar sob o controle de todos os elementos em cis (no mesmo cromossomo) que controlam a expressão do gene endógeno. Assim, a expressão temporal e espacial do transgene não seguirá o padrão de expressão do gene endógeno. Além disso, no que diz respeito a modelos de doenças genéticas, a introdução de um terceiro alelo, o transgene mutante, cria uma situação artificial no que diz respeito à proporção entre os transcritos normais e mutantes. Enquanto uma pessoa com uma doença genética dominante possui um alelo normal e um mutado, o camundongo transgênico possuirá os dois alelos endógenos normais e diversas cópias do alelo mutante (transgene). Esta proporção pode ser crítica em doenças suscetíveis a efeitos de dosagem gênica.

    MANIPULAÇÃO DO GENOMA DO CAMUNDONGO ATRAVÉS DE CÉLULAS ES Recentemente, a combinação do cultivo de células ES e da recombinação homóloga resultou na criação de um método alternativo e mais preciso para manipular o genoma do camundongo.

    Linhagens de células-tronco embrionárias são células não diferenciadas, derivadas do botão embrionário de blastocistos, que têm como característica principal a pluripotência. Ou seja, quando reintroduzidas em um blastocisto, as células ES possuem capacidade de retomar o desenvolvimento normal, colonizando diferentes tecidos do embrião, incluída a linhagem germinativa. As células ES podem ser modificadas geneticamente em cultura através da recombinação homóloga, processo que promove a substituição do alelo normal de um gene específico pela versão mutada do mesmo, construída no laboratório. Dessa forma, são obtidas linhagens de células ES geneticamente modificadas. Estas são agregadas a mórulas de camundongos in vitro e, assim, incorporadas ao embrião. Os camundongos resultantes serão quimeras formadas de células do embrião recipiente e das células ES recombinantes. Se estas últimas colonizarem a linhagem germinativa dos animais quiméricos, a mutação será então transmitida às novas gerações de camundongos, criando uma linhagem de camundongos "nocaute" (onde aquele gene foi nocauteado).

     

     

    A capacidade de modificar regiões específicas do genoma do camundongo por recombinação homóloga permite a criação em potencial de camundongos com qualquer genótipo desejado. Estes animais são uma ferramenta importante para o estudo de função gênica através da observação das conseqüências fenotípicas da alteração do gene em questão. De fato, com a recente disponibilização da seqüência completa do genoma humano, o grande desafio em pesquisas biomédicas passou da identificação de genes para a determinação da função dos 20 mil a 25 mil genes do nosso genoma. Neste contexto, a possibilidade de se alterar genes específicos no genoma do camundongo permite a investigação de função gênica in vivo.

    COMO ANIMAIS TRANSGÊNICOS CONTRIBUEM PARA NOSSO BEM-ESTAR? Os benefícios do uso de animais transgênicos para o bem-estar do ser humano são amplos, na medida que eles auxiliam pesquisas que geram maior conhecimento de biologia humana. Esses conhecimentos, por sua vez, podem se traduzir em melhora de qualidade de vida humana. Mas os benefícios mais diretos e biotecnológicos do uso de animais transgênicos podem ser divididos em pelo menos três grupos: agricultura, medicina e indústria. Na agricultura, a transgenia permite a criação de animais de grande porte com características comercialmente interessantes, cuja produção por técnicas clássicas de cruzamentos e seleção são extremamente demoradas. Assim, existem vacas transgênicas que produzem mais leite, ou leite com menos lactose ou colesterol, porcos e gado transgênicos com mais carne e ovelhas transgênicas que produzem mais lã. Além disso, há um grande esforço no sentido de se produzir animais resistentes a doenças, como a gripe suína ou a febre aftosa em bovinos. Porém, isso dependerá da identificação de genes responsáveis pela resistência a essas doenças.

    As aplicações médicas são várias e incluem o polêmico xenotransplante, ou seja, o transplante de órgãos animais para o ser humano. Estima-se que, a cada ano, são necessários 5 mil órgãos para transplantes nos Estado Unidos, e essa demanda não é atendida por doadores. A transgenia vem sendo utilizada para a criação de porcos imuno-compatíveis com o ser humano – através da técnica de nocaute, foi produzida uma linhagem de porcos que não expressa uma proteína imunogênica em seres humanos, e, atualmente, está sendo testado o transplante de corações desses animais para macacos. No entanto, é importante ressaltar que, se por um lado o xenotransplante resolveria a questão da disponibilidade de órgãos para transplantes, ele cria uma outra questão séria de biossegurança, criando o risco de transmissão de patógenos suínos para o ser humano. Além disso, a transgenia em animais de grande porte vem sendo utilizada para a produção de fármacos. Produtos como insulina, hormônio de crescimento e fator de coagulação podem ser obtidos do leite de vacas, cabras ou ovelhas transgênicas.

    Finalmente, a aplicação da transgenia na indústria, de forma equivalente à na medicina, visa à criação de bio-reatores, animais transgênicos de grande porte produzindo uma proteína de interesse comercial em algum tecido de fácil purificação. Um exemplo é a cabra transgênica que produz em seu leite uma proteína da teia de aranha. A purificação em grande escala desses polímeros a partir do leite permite a criação de um material leve e flexível com enorme resistência, que poderá ser usado em aplicações militares (coletes e uniformes a prova de bala) e médicas (fio de sutura), entre outras.

    NOBEL DE MEDICINA E FISIOLOGIA DE 2007 O Prêmio Nobel de medicina de 2007 foi dado aos três cientistas que em conjunto criaram a técnica de produzir camundongos nocaute: Oliver Smith, Martin Evans e Mario Capecchi. O primeiro camundongo nocaute foi anunciado em 1989, um modelo animal para a doença de Lesh-Nyham, doença neurológica rara que, entre outros sintomas, gera crises de auto-flagelação nas crianças afetadas. Desde então, essa técnica foi incorporada por inúmeros grupos de pesquisa no mundo inteiro, que a utilizam para gerar animais mutantes que auxiliem em suas pesquisas. Hoje, existem camundongos nocaute para mais de 500 doenças como câncer, diabetes e doenças neurodegenerativas, que são utilizados para se entender melhor cada uma dessas doenças, desenvolver e testar novas terapias. Além disso, um esforço internacional em andamento pretende mutar cada um dos 20 mil genes do genoma do camundongo, criando uma coleção de animais nocaute, cada um com um gene diferente alterado. Esses animais mutantes nos ajudarão a entender melhor a biologia do camundongo e, logo, a do ser humano também.

    Em 1994, com o financiamento da Fapesp e do CNPq, montei na USP um laboratório para criar camundongos nocaute. Além da verba, tive o privilégio de conseguir reunir uma equipe extremamente competente e dedicada. Em 1999, estabelecemos as primeiras linhagens de células-tronco embrionárias de camundongo no país, e, em 2001, os primeiros camundongos nocaute completamente made in Brazil – modelos animais para a síndrome de Marfan, doença que pode levar à morte por ruptura da aorta. Em modelos como os nossos foi desenvolvida uma nova terapia para essa síndrome que agora está sendo testada em pacientes, ilustrando a importância desses animais para a saúde humana.

    Por que demoramos 12 anos para estabelecer essas técnicas no Brasil, e estamos correndo atrás de outros 7 anos de atraso das pesquisas com células-tronco embrionárias humanas? Não sei, talvez por falta de uma política de metas mais claras de desenvolvimento científico que incentive o estabelecimento de novas linhas de pesquisa no país. Sei que o que não falta no Brasil são pesquisadores competentes e entusiasmados. Precisamos que o governo se entusiasme também com a ciência brasileira, e que esse entusiasmo se reflita em financiamento consistente à pesquisa, e na legalização do uso de animais em experimentação – sem eles a nossa capacidade de fazer ciência ficará absolutamente limitada.

     

    Lygia da Veiga Pereira é professora associada e chefe do Laboratório de Genética Molecular do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP. Email: lpereira@usp.br