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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.2 São Paulo  2008

     

     

    LEGALIZAÇÃO DO USO DE ANIMAIS DE LABORATÓRIO: PRESENTE, PASSADO E FUTURO

    Renato Sérgio Balão Cordeiro

     

    Uma das primeiras iniciativas para regulamentar atividades de pesquisa com animais de laboratório no Brasil surgiu no governo provisório (1930 a 1934) de Getúlio Vargas, em 10 de julho de 1934 com o Decreto nº. 24.645, que afirmava, no seu primeiro artigo, que "todos os animais existentes no país são tutelados pelo Estado".

    O decreto considerava como maus tratos aos animais "praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal"; "manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz"; "golpear, ferir ou mutilar voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em benefício exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interesse da ciência"; "não dar morte rápida, livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo ou não"; "ministrar ensino a animais com maus tratos físicos".

    De forma abrangente o decreto tentava regulamentar o transporte, a caça, o trabalho, a contenção e exposições de animais de grande porte em vários tipos de atividades.

    Em 1941, também em outro governo Vargas – no Estado Novo – foi publicado o Decreto Lei 3.688, que tratava das leis das contravenções penais. No Capítulo VII – "Das Contravenções Relativas à Polícia de Costumes", o sub-item "Crueldade contra animais", no seu artigo 64, especificava "Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo:

    Pena – prisão simples, de 10 (dez) dias a 1 (um) mês, ou multa [ênfase do autor].

    § 1º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza, em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo".

    Trinta e oito anos depois, em 8 de maio de 1979, foi publicada a Lei 6.638 que estabelecia "normas para a prática didático-científico da vivissecção de animais". Princípios fundamentais para a utilização de animais em pesquisas científicas foram ratificadas nesta Lei, tais como:

    Art. 1º – Fica permitida, em todo o território nacional, a vivissecção de animais, nos termos desta Lei;

    Art. 2º – Os biotérios e os centros de experiências e demonstrações com animais vivos deverão ser registrados em Órgão competente e por ele autorizados a funcionar;

    Art. 3º – A vivissecção não será permitida: sem o emprego de anestesia; em centros de pesquisas e estudos não registrados em órgão competente; sem a supervisão de técnico especializado;

    Art. 4º – O animal só poderá ser submetido às intervenções recomendadas nos protocolos das experiências que constituem a pesquisa ou os programas de aprendizado cirúrgico quando, durante ou após a vivissecção, receber cuidados especiais.

    Lamentavelmente, a Lei 6.638/79 não teve nenhuma eficácia prática, pois não foi regulamentada pelo poder executivo após sua aprovação no Congresso Nacional, e caiu no esquecimento.

    É realmente surpreendente que uma nação que está formando 10 mil doutores por ano, que chegou a 15ª colocação no ranking internacional de publicações científicas, e cujo presidente da República tenha acabado de lançar o ambicioso Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional, que prevê investimentos de R$ 41 bilhões até 2010, ainda não possua uma legislação federal, que regulamente as atividades de pesquisa com animais de laboratório, imprescindíveis para a ciência e tecnologia, o desenvolvimento tecnológico e a inovação no país.

    É importante ressaltar que, em virtude dessa lacuna na legislação federal, instituições de pesquisa e universidades de importantes cidades brasileiras, tais como o Rio de Janeiro e Florianópolis, estejam sendo alvo de projetos de Lei (PL) de parlamentares das Câmaras Municipais visando impedir a pesquisa científica com animais de laboratório. No Rio de Janeiro, cidade que concentra uma expressiva parcela das instituições de pesquisa e universidades no Brasil, em 2006, após intensas pressões da comunidade científica brasileira, o prefeito da cidade vetou o projeto de Lei 325/2005 que proibia a vivissecção, assim como o uso de animais em práticas experimentais que provoquem sofrimento físico e psicológico, sendo estas com finalidades pedagógicas, industriais, comerciais, ou de pesquisa científica.

     

     

    Em 2007, um segundo projeto contra a experimentação animal foi aprovado na Câmara dos Vereadores e novamente vetado pelo prefeito da cidade após pressões da comunidade de C&T. Lamentavelmente a Câmara derrubou o veto, sendo promulgada a Lei 4.731 de 4 de janeiro de 2008, que não se aplica a instituições de ensino e pesquisa, mas causa constrangimentos a pesquisa com animais nas indústrias. No nosso entender, a principal prejudicada é a indústria farmacêutica, fundamental para o desenvolvimento tecnológico e inovação no país.

    DESTACAMOS A SEGUIR DOIS ARTIGOS DA REFERIDA LEI:

    Art.1º – Fica estabelecida multa para maus-tratos e crueldade contra animais e sanções administrativas a serem aplicadas a quem as praticar, sejam essas pessoas físicas ou jurídicas, munícipes ou estabelecimentos comerciais, industriais ou laboratórios.

    Art.2º – Define-se como maus-tratos, e crueldade contra animais ações diretas ou indiretas capazes de provocar privação das necessidades básicas, sofrimento físico, medo, stress, angústia, patologias ou morte.

    Surpreendentemente, em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina e importante núcleo científico no país, no último dia 07 de dezembro, foi aprovada a Lei 7.486, que poderá criar alguns constrangimentos às investigações com animais e saúde humana nas universidades e institutos de pesquisa da capital de Santa Catarina. A Lei 7.486, "(…) dispõe sobre a proibição de vivissecção assim como o uso de animais em práticas experimentais que a eles provoquem sofrimento físico ou psicológico, sendo estas com finalidades pedagógicas, industriais, comerciais ou de pesquisa científica e dá outras providências".

    Como citado acima, toda essa situação está sendo criada porque não existe uma lei federal que regulamente a pesquisa com animais no Brasil. Neste momento, está tramitando na Câmara dos Deputados, em Brasília, o Projeto de Lei (PL) nº 1.153, de autoria do falecido deputado federal e ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Sérgio Arouca, que estabelece critérios para a criação e utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa científica no Brasil. O referido projeto já tramitou pelas Comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) (relator Hélio de Oliveira Santos), Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias (relator deputado Fernando Gabeira) e Constituição e Justiça e Cidadania (relator deputado Sérgio Miranda).

    Encontra-se apensado ao projeto 1.153, o PL 3.964/97 do poder executivo, que aperfeiçoou o Projeto Arouca, através de amplo debate na comunidade científica brasileira, liderado pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Federação das Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (Cobea), várias sociedades científicas, e pelos Ministérios da Ciência e Tecnologia, da Saúde, do Meio Ambiente, da Educação e da Agricultura.

    Os projetos criam o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que terá como competência "expedir e fazer cumprir normas relativas à utilização humanitária de animais com finalidade de ensino e pesquisa científica", assim como, credenciar(á) instituições brasileiras "para a criação ou utilização de animais em ensino e pesquisa científica". Farão parte do Conselho representantes de sociedades e instituições científicas, da SBPC, da ABC, de universidades e das sociedades protetoras de animais, entre outros.

    O projeto 1.153 está há treze anos na Câmara, já havendo requerimento de sua inclusão na ordem do dia para votação definitiva em plenário desde 13 de novembro de 2007.

    É importante ressaltar que, embora o deputado Fernando Gabeira, no seu parecer na Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, deixe claro sua tendência pelo Projeto Arouca e seu apenso, "votamos pela aprovação do PL 1.153/95, do PL 3.964/97 e do substitutivo apresentado pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, na forma do substitutivo que apresentamos em anexo", o ilustre deputado, no artigo 18 desse substitutivo, diz que "o Concea é presidido pelo Ministro de Estado do Meio Ambiente (…)". No seu parecer, o deputado também esclarece: "(…) temos ressalvas, nas propostas em análise, em relação à estrutura definitiva para o controle do uso de animais nas atividades de ensino e pesquisa. O Concea – proposto no PL 3.964/97 e no substitutivo da CCTCI – deve funcionar, unicamente, como órgão colegiado normativo, não como órgão executivo. A função executiva, incluindo o credenciamento de instituições e a fiscalização quanto ao cumprimento da lei, deve ficar a cargo de um órgão com essas características, a nosso ver, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)".

    Acreditamos que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o Ibama possuem atribuições e missões diversas e muito bem definidas, e que o Concea estará melhor localizado no âmbito do MCT (artigo nº. 7 do PL 3.964/97), e as funções executivas do Conselho sendo exercidas por uma das Secretarias do MCT.

    Por outro lado, é importante ressaltar que o MMA, no PL 1.153/95 e seu apenso PL 3.964/97, terá assento cativo na composição do referido Conselho, assim como representantes dos Ministérios da Saúde, Educação, Agricultura e Ciência e Tecnologia.

    Vale ressaltar, que o deputado federal Ricardo Tripoli, de São Paulo, apresentou na Câmara dos Deputados, no ano passado, em seu primeiro mandato, o Projeto de Lei 215/2007 – "Código Federal de Bem-Estar Animal", que "estabelece normas para as atividades de controle populacional e de zoonoses, experimentação científica e criação", que poderá trazer contribuições ao debate envolvendo o controle populacional, e de zoonoses, manejo, comercialização, e criação animal no país.

    Finalizamos, acreditando que o Congresso Nacional aprovará o Projeto 1.153/95 e seu apenso PL 3.964/97, pois os parlamentares têm consciência da importância da ciência e tecnologia para a saúde humana. Se hoje a expectativa de vida do brasileiro está se aproximando dos 72 anos, eu não teria dúvidas em afirmar que um dos fatores fundamentais para chegarmos a esse ponto foi a utilização de animais em descobertas fundamentais da ciência biomédica.

     

    Renato Sérgio Balão Cordeiro é pesquisador titular do Instituto Oswaldo Cruz da Fiocruz e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, é pesquisador 1-A do CNPq.