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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.2 São Paulo  2008

     

    MOSTRA DE CINEMA

    OS CAÇADORES DE FILMES INVISÍVEIS

     

    Rossellini é fundamental. Godard idem. Gláuber, então, nem se fala. Mas hoje, no meio acadêmico, há espaço também para cineastas como Afonso Brazza, Simião Martiniano ou Manoel Loreno. Alguém já ouviu falar deles? Brazza, ou José Afonso dos Santos Filho, trabalhou no cinema da Boca do Lixo e ganhou fama realizando filmes de baixo orçamento em Brasília. Simião tem seu público cativo em Pernambuco e já foi protagonista de um curta documentário Simião Martiniano, o camelô do cinema (1998), de Clara Angélica e Hilton Lacerda. Manoel Loreno, o "Seu Manoelzinho", realiza filmes de gênero imersos na cultura local da cidade de Mantenópolis, no noroeste do Espírito Santo. Exemplos da obra desses diretores serão trazidos a São Paulo, capital, por ocasião da mostra "Nas Bordas do Cinema Brasileiro", de 27 a 30 de maio, nos campi Centro e Vila Olímpia da Universidade Anhembi Morumbi (UAM).

    Gelson Santana, professor do mestrado em comunicação da Universidade Anhembi Morumbi e um dos organizadores da mostra, comenta que a seleção de filmes exibidos abarca todo o território nacional. "O objetivo é mapear essa produção audiovisual 'invisível'. São filmes de apelo local, que trabalham com a geografia, a gestualidade e todo um modo de falar local. O mais interessante é que os realizadores parecem tentar adaptar essa localidade a uma espécie de 'universalidade midiática', geralmente se espelhando em gêneros canônicos do cinema, como o faroeste, o horror, etc. Tudo isso tratado com um olhar absolutamente particular", comenta Santana.

    A UAM serve como quartel-general de um grupo que reúne professores-pesquisadores de cinema de diversas regiões do Brasil, interessados nas mais variadas manifestações audiovisuais brasileiras e latino-americanas, em especial aquelas ignoradas ou rejeitadas pela academia – seja em virtude de seu apelo popular e sucesso comercial, seja em função do amadorismo de determinadas práticas bastante localizadas ou regionais, e completamente baseadas no autodidatismo.

     

     

    Esse grupo nomeia seu objeto de estudo como "cinema de bordas", um termo controverso, que ainda está sendo testado, mas que se caracteriza, sobretudo, pelo seu caráter dêitico, isto é, dependente do contexto. Bernadette Lyra, coordenadora do mestrado em comunicação da UAM e fundadora do grupo de pesquisa, esclarece que essa idéia de "bordas" é emprestada da antropologia, originária de um texto de Jerusa Pires Ferreira relativo à obra do escritor Rubens Luchetti ("Heterônimos e cultura das bordas: Rubens Luchetti", Revista USP, n.4, dez/ jan/fev de 1989-90, pp. 169-174). O grupo de pesquisa já publicou um livro a respeito, Cinema de Bordas (São Paulo: Ed. A Lápis, 2006), organizado por Bernadette e Santana, e outro volume será lançado até o final do ano.

    Bernadette ressalva que esse trabalho ainda está em progresso e longe de terminar: "na medida em que vamos investigando e descobrindo fatos e teorias afins, vamos incorporando esses elementos aos estudos do grupo". Ela explica que "em essência, pensamos em trabalhar um tipo de cinema que foge àquilo que a historiografia oficial considera o 'cinema-instituição', quase sempre pautado no artístico ou autoral. Esse tipo de cinema que estudamos não é propriamente artístico (pelo menos não no sentido mais tradicional do termo), e nem é um cinema autoral no sentido de que tenha um 'dono' ou 'autor' que centralize a criação. No Brasil, esse cinema acaba escapando a historiografias consagradas como aquelas escritas por Alex Viany ou Gláuber Rocha, por exemplo". Rogério Ferraraz, também professor do mestrado em comunicação da UAM e integrante do grupo de pesquisa, acrescenta que, durante muito tempo, o cinema de gênero e, por extensão, o entretenimento, estiveram à margem da historiografia oficial do cinema no Brasil.

    Bernadette Lyra ressalta, porém, que dentro desse vasto universo de filmes alternativos, há também uma série de problemas, de oscilações entre diversas instâncias. Em outras palavras, o "cinema de bordas" seria suficientemente heterogêneo para justificar subcategorias mais específicas, organizadas basicamente em torno de três eixos principais. O primeiro corresponderia a um "cinemão" industrial, mas feito de maneira "popularesca", propositalmente dirigido ao grande público (no Brasil, por exemplo, os filmes d’Os Trapalhões ou da Xuxa). São filmes realizados com tecnologia atual, equipes altamente profissionais e organizadas, tendo por trás grandes empresas como a Globo. A pesquisadora observa que esses filmes também "deslizam", apresentando apontamentos bem populares em sua estética, fazendo apelo a subculturas e chegando até o trash em determinados momentos.

     

     

    A segunda corrente corresponde a uma cinematografia realizada propositalmente na contramão de movimentos instituídos. Entre os exemplos está o cineasta Ivan Cardoso, que com seu "udigrudi" iria contra toda a corrente do Cinema Novo. "Quase sempre são realizadores bem posicionados que entendem e sabem o que estão fazendo e o fazem de propósito, com o objetivo de afrontar um cinema mais autoral ou artístico", comenta Bernadette.

    O terceiro eixo ou corrente em questão diz respeito à obra de realizadores autodidatas que, conforme aponta a pesquisadora, "fazem filmes nas suas comunidades porque querem se aproveitar do que têm à mão" – por exemplo, qualquer tipo de câmera, atores não-profissionais, etc. "Na verdade, esses realizadores fazem filmes sobretudo baseados num déjà-vu, em coisas que já viram por intermédio dos meios audiovisuais; é todo um cinema de reciclagem, um 'lixo cultural' que fora colocado às bordas, sendo agora reaproveitado de maneira caótica, por meio de fragmentos que se montam, e não exatamente de maneira paródica", descreve Bernadette, lembrando da regionalização do audiovisual observável nesse tipo de cinema.

    DIVERSIDADE Bastante heterogêneo por si mesmo, esse terceiro eixo aglutina realizadores das mais diversas regiões do país, provenientes de diferentes faixas etárias e classes sociais. Além do Norte, representado por Rambú III, o rapto do jaraqui dourado (2007), de Manoel Freitas, Júnior Castro e Adilamar Halley, e do noroeste do Espírito Santo, bastante vivo no cinema local de gênero de Manoel Loreno, na região Sul do país são objeto de estudo do grupo as obras de Peter Baierstorff (Palmital-SC), Felipe Guerra (Carlos Barbosa-RS), Leandro Vieira (Rio Grande-RS) e Semi Salomão (Apucarana-PR). No estado de São Paulo, Claudinê Perina Camargo, de Campinas, e Marcos Bertoni, da capital, figuram entre os realizadores estudados. No Distrito Federal, Afonso Brazza desponta como mestre pioneiro no gênero. No Nordeste, Simião Martiniano representa o Recife (PE) com seus filmes de luta, enquanto Pedro Onofre traz o melodrama de Maceió (AL). "Usamos o termo ‘cinema de bordas’ para fugir um pouco a uma espécie de ideologia, à idéia de um cinema marginalizado, porque ele não é isso. Esse cinema circula com muita desenvoltura, ele agrada, provoca riso, e é profundamente mediado pelos meios de comunicação de massa", observa Bernadette.

    Essas três correntes se entremeiam ou interpenetram, sendo delineadas apenas para efeito didático: "o que perpassa todos eles é uma estética de subculturas, de culturas não autorizadas, digamos, de maneira institucional. Nesse sentido, elas se aproximam daquilo que se chama hoje de 'paracinema', uma maneira de se considerar tudo aquilo que fica fora do institucional, ou seja, paralelo ao institucional. A idéia de alteridade sempre norteia essa paracinematografia, que inclui estéticas ou modos variados de expressão, como o trash, a idéia de margens, bordas, fragmentos, periferia, etc. Esse cinema é periférico nesse sentido, mas ele não é um cinema de periferia no sentido daquele realizado por ONGs, voltado para uma comunidade excluída, etc.", explica Bernadette. Nesse tipo de cinema, segundo a pesquisadora, o realizador não está necessariamente preocupado em criticar ou demonstrar domínio e erudição, assim como o espectador, que busca acima de tudo a participação, o entretenimento.

     

    Alfredo Luiz Suppia