SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.60 número2 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.2 São Paulo  2008

     

    LITERATURA

    REGIONAL, UNIVERSAL: 100 ANOS DE GUIMARÃES ROSA

     

    Ao se revisitar a obra de Guimarães Rosa, no ano em que o escritor completaria cem anos, percebe-se a força e atualidade de seus livros. O que faz uma obra de arte ser considerada bela, eterna e sobreviver ao tempo é uma questão com muitas respostas. As hipóteses passam pelas grandes revoluções técnicas como o sfumato de Leonardo da Vinci, a grandeza e a beleza estética de Dante Alighieri ou a espiritualidade de Johann Sebastian Bach.

    Suzi Sperber, professora de literatura da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acredita que a atemporalidade da obra de Guimarães Rosa se deve "à extraordinária beleza do texto e forma como ele trabalha com as palavras". Segundo ela, a obra dele nos obriga a abordá-la com a emoção e não com a razão. "Ele quer a derrota da razão. O leitor não é obrigado a ter conhecimentos literários para ser envolvido pelo texto", afirma.

     

     

    Os contos e romances do autor, na primeira impressão, parecem inacessíveis, mas ao mesmo tempo envolvem o leitor, principalmente através da linguagem poética e uma construção estética consciente do som e ritmo da palavra. Sua linguagem é um "terreno movediço e de limites imprecisos entre a prosa e a poesia", define Cláudia Soares, outra especialista em Guimarães Rosa e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo ela, Rosa produziu uma mistura, partindo de uma dicção de fundo regionalista, acrescentando elementos provenientes de seu amplo conhecimento da língua portuguesa e das outras que conhecia – como arcaísmos, estrangeirismos e neologismos.

    Grande sertão: veredas, a obra mais aclamada do autor, é uma auto-narrativa de um jagunço aposentado, que conta a sua história a um viajante, um "doutor", que passa um tempo hospedado em sua fazenda. O registro dessa conversa, no qual só ouvimos a voz do jagunço, reflete e interroga o doutor sobre os acontecimentos vividos, o sentido da existência, paixões e as lutas entre Deus e o Diabo. Cláudia define o livro como sendo "a estória de um homem em sua 'travessia', pela existência, tratando sobre questões que todos temos que enfrentar em nossas próprias travessias".

     

     

    Um ponto em comum em vários textos de Rosa é o encontro de conceitos e pessoas, numa primeira análise, antagônicas como, por exemplo, o jagunço e o doutor. "Rosa promoveu definitivamente o encontro entre o mundo do doutor e o do sertanejo, entre a cidade e sertão, entre cultura rústica, de base oral, e cultura letrada. Assim, ele emprestou ao sertão significados simbólicos e alargou os seus limites para além das fronteiras geográficas. O sertão se tornou o mundo", reflete Cláudia.

    Estudando Rosa é possível perceber que ele era sensível tanto à cultura popular do sertão, como à chamada erudita. Suzi Speber conta que passou um longo período na casa do autor logo após a sua morte. Na biblioteca, a pesquisadora teve acesso aos seus livros e observou suas anotações, grifos e até mesmo trechos que ele escrevia a partir do que lia. "Rosa era muito eclético, lia filosofia japonesa, européia e do oriente chinês. Ele também se interessava por livros de cunho espiritualista e até literatura espiritualista de terceira categoria", conta a pesquisadora.

    CULTURA POPULAR Publicado em 1956, Grande sertão: veredas foi escrito quatro anos depois de uma famosa viagem do autor pelo interior de Minas Gerais, acompanhando a condução de uma boiada. Rosa anotou exaustivamente dados concretos da realidade física e da cultura sertaneja, e esses registros – suas famosas cadernetas de viagem, que atualmente se encontram no Instituto de Estudos Brasileiros da USP – foram utilizados como matéria-prima que o escritor trabalhou esteticamente para compor os livros. As anotações incluíam dados sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja, usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias, enfim, tudo que lhe despertasse algum interesse.

    BUSCA POR SIGNIFICADOS A união desses dois universos, do homem que falava sete idiomas e possuía uma vasta cultura, com o apreciador da cultura popular, é, talvez, o traço mais característico de Rosa. Suzi afirma que pôde perceber, nas anotações a que teve acesso, que o autor gostava de conversar com as pessoas mais humildes. "As pessoas que não tiveram instrução, procuram palavras para exprimir aquilo que experienciam, criam novas palavras, imagens, ou transformam outras que conhecem, mas não sabem o que significa. Essas pessoas humildes abriram o caminho para que Rosa partisse nessa busca por novas palavras e imagens", conclui.

    O texto coloca esses dois mundos, o popular e o erudito, em condição de igualdade e comunhão. Suzi lembra, como exemplo, o conto "São Marcos", do livro Sagarana, em que a trama envolve um doutor que trabalhava numa cidade pequena que tinha um curandeiro. E esse médico caçoava do segundo, até um dia em que ele perde a visão. O feiticeiro consegue devolver-lhe a visão, mas quando o doutor abre os olhos, ele vê nas mãos de seu curador um boneco com uma agulha espetada nos olhos. E daquele dia em diante, ele decide compactuar com o curandeiro. Cláudia Soares conclui que "neste ‘doutor’ que viaja pelo sertão, Rosa, que era médico e atendeu em cidades do interior, se reproduz".

    Já para Suzi Sperber, "há muitas camadas de sentido, complexas, diferentes e de origens muito diferentes, que são perceptíveis exatamente a partir desse trabalho de linguagem que ele fez". Para a pesquisadora a obra de Guimarães Rosa seria como um palimpsesto, em que se raspa a tela de uma pintura e surge outra camada, que se raspada permite enxergar nova camada. "O texto de Rosa tem sempre mais camadas, você não encontrará uma análise que irá resultar em uma conclusão final, pois sempre haverá outra. Tem mil facetas. O fascínio é extraordinário", conclui.

     

    Luciano Valente