SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.60 número3 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.3 São Paulo set. 2008

     

     

    CULTURA POPULAR

    CAPOEIRA GINGA PARA CONQUISTAR LEGITIMIDADE

     

    Reconhecida no mundo todo como arte genuinamente brasileira, a capoeira jogou em terra nativa para mostrar aos conterrâneos o seu valor e, ainda hoje, tenta legitimar os profissionais responsáveis por sua história e continuidade dentro e para além do campo da educação física. De prática de marginalizados até atividade cult de descolados e estrangeiros, a capoeira, perante o Conselho Federal de Educação Física (Confef), deve ser ensinada apenas por aqueles que cursaram o ensino superior ou realizaram cursos de atualização junto aos conselhos regionais (Crefs). "Mais que um conjunto de exercícios físicos, a capoeira compreende toda uma vinculação com a tradição", enfatiza Vivian Fonseca, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDoc) ligado à Fundação Getúlio Vargas (FGV). "A capoeira tem forte não só seu lado combativo, de luta, como também seus aspectos lúdicos e seu lado de dança e brincadeira. Enquadrá-la numa definição única seria, para esses capoeiristas, como desqualificá-la, esvaziando seu sentido de existir", afirma a autora de artigo sobre o tema na Recorde: revista de história do esporte (vol.1 n.1., 2008).

    A luta contemporânea da capoeira para ganhar terreno é histórica. Praticada no Brasil entre os escravos como forma de interação, entretenimento, defesa, atividade física e memória cultural, a atividade passou a ser incluída no Código Penal em 1890. A busca por uma nova identidade nacional condenou à prisão aqueles vistos como vagabundos e malandros pela elite do regime republicano. Essa busca seria, mais tarde, o principal argumento que tornaria a capoeira um dos principais meios de expansão e divulgação da cultura brasileira no exterior, nas palavras do ministro da Cultura Gilberto Gil, em discurso proferido em 2004 na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), segundo lembra Vivian.

    Mas foi nos anos 1930 que se iniciou o processo de institucionalização da capoeira, deixando de ser praticada nas ruas e passando a ser ensinada em espaços fechados, com exercícios repetitivos e com a criação de um método de ensino. "Até então os capoeiristas aprendiam de oitiva, como os próprios capoeiristas dizem, ou seja, aprendiam apenas olhando os outros jogarem na roda e conforme jogavam", descreve a autora da pesquisa. Os principais responsáveis por essa mudança são os mestres Bimba e Pastinha, lembrados até os dias atuais como referências da capoeira contemporânea. O primeiro, Manoel dos Reis Machado, nascera em Salvador em 1899 e fôra responsável pela criação da chamada capoeira regional, fortalecendo o lado guerreiro do jogo, enfraquecido graças à repressão contra a capoeira. Bimba foi quem primeiro criou uma academia, o Centro de Cultura Física Regional e a ensinar por meio da famosa Seqüência de Bimba. Enquanto o segundo mestre, Vicente Ferreira Pastinha, também soteropolitano e nascido em 1889, ensinou a prática tida como mais próxima da tradição africana, no Centro Esportivo de Capoeira Angola (a partir da década de 1940), e impulsionou sua institucionalização. "Eu registrei a capoeira, criei um estatuto, batizei, coloquei um presidente no centro, que hoje é presidente na Assembléia, eu organizei a capoeira", afirmou em matéria do jornal o Estado de S. Paulo, de 1969, recuperada pela autora do artigo. A calça preta e camisa amarela, uniforme identificado como dos capoeiristas angoleiros, é fruto do trabalho de Pastinha. A princípio, os dois estilos suaram para conquistar adeptos e se legitimar, e o tempo se encarregou de reservar seus espaços, de forma a garantir e preservar a memória de seus mestres, mesmo que se tenha criado uma certa rivalidade entre ambas as capoeiras. "Numa prática onde a linhagem se mostra fundamental, estar vinculado com qualquer um dos dois grandes mestres será essencial para os alunos que buscarão seguir sua vida dentro da capoeira", enfatiza a pesquisadora da FGV.

    PROFISSIONALIZAÇÃO De acordo com a Confederação Brasileira de Capoeira só é considerado mestre aquele com idade mínima de 35 anos e 22 anos de prática. Já o Conselho Superior de Mestres determina que entre os pré-requisitos para se tornar um mestre integrante da entidade é preciso ter no mínimo 40 anos e outros 27 de prática. Para passar os ensinamentos da capoeira adiante, como professor, é necessário muito tempo de prática, "raramente antes de pelo menos cinco anos, para aqueles mais participativos". Com tamanhas qualificações, a determinação do Confef, estabelecida na década de 1990, teve efeito contrário ao buscado. Muitos passaram a enxergar a filiação aos conselhos regionais como certificado de baixa qualidade e pouco conhecimento.

    Em um esforço para reverter o quadro, formou-se em 2000 a Frente Unida pela Autonomia Profissional da Educação e das Tradições Populares composta por profissionais de áreas atingidas pelas determinações do conselho federal. Os capoeiristas pediam a regulamentação das profissões de mestre e professores, delegando para si essa responsabilidade. Quatro anos mais tarde, os capoeiristas, por meio do VII Fórum Nacional de Debates: "Formalização das políticas públicas para a capoeira", escreveram a Carta de Brasília solicitando unificação nos procedimentos técnicos, culturais, desportivos, a partir de suas bases tradicionais, estabelecidas pela capoeira angola e regional; capacitação de docentes e mestres da capoeira por meio do poder público; desobrigação da inscrição dos mesmos junto aos Crefs entre outros.

     

     

    Neste meio tempo, houve alguns avanços. "Os mestres de capoeira têm conquistado o direito de ministrarem suas aulas, sem a obrigação de se filiarem aos Crefs, apesar desse ainda ser um terreno de disputas, não apresentando, até o momento, uma resolução final", lamenta Vivian, que é pós-graduanda da FGV.

    "O campo da educação formal, principalmente, precisa refletir de forma profunda sobre suas práticas, no sentido de poder acolher as ricas experiências educacionais provenientes da cultura popular, representadas pelas formas tradicionais de transmissão dos saberes de uma comunidade. Nesse sentido, a capoeira e os mestres têm muito a ensinar", reforça Pedro Rodolpho Jungers Abib, autor de pesquisa sobre o papel dos mestres da capoeira angola nas formas tradicionais de transmissão de conhecimento da cultura popular, publicada em 2006 (Cad. Cedes, vol. 26, n. 68).

     

    Germana Barata