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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.3 São Paulo Sept. 2008

     

     

    ARMANDO FREITAS FILHO

     

    NAS BODAS DE PRATA
    DE LEI DA SUA MORTE

    EXTRATO

       

    A intimidade da sua morte pública
    espetacular, com a cortina aberta
    marcou minha vida funcionária.
    Nunca pensei que me acontecesse
    alguma coisa assim – selvagem –
    tão próxima, ou que fosse possível
    a alguém, contida, mas em guarda
    desatar-se no espelho, de uma vez
    e partisse para o ataque a si mesmo
    através de um dia de decidido suicídio
    traduzindo, à sua maneira, o tumulto
    do tempo no qual viveu, de modo
    perfeito, fidedigno, sensacional.

    O perfume que escapa
    é exato e facetado
    tal qual o frasco
    que o concentra e segura.

    A respiração, rosa que não se despetala
    mesmo sob pressão e descuido
    é discreta, não altera as nervuras
    da blusa, que mantém a linha, o corte
    até o fim do dia implacável, duro
    nem permite outro franzir
    que não esse, de fábrica
    ou de perita costura à mão.

    Mais tarde, libera algum desalinho: suspiro
    gesto absorto de mulher ao pentear-se
    pernas cruzando-se depois do banho
    decote medido de dois botões
    a nuca, livre dos grampos
    em pleno verão, os cabelos soltos
    no próprio vento –
    esvoaçante vestido frisado.

    Tudo o que
    fica no éter
    é eterno.

     

    AP. 702

    CROMO

       

    Um instante antes, patamar
    onde as plantas sobre a tarde
    de sábado avançam, altas
    acima do tanque, na área de serviço.
    Em seguida, a cozinha em paz
    após o almoço, a sala vazia
    refletida na tela da TV apagada:
    sofá xadrez, pedaço de poltrona
    telefone morto, mas ainda quente
    da voz encerrada, da mão, do suor
    da mão que o largou, preto.
    Além, no quarto, a cama feita
    de esticados lençóis, cor de gelo
    quando, de repente, pulsos cortados
    os dedos compridos de unhas curtas
    abrindo o chuveiro forte
    no chão seco e frio do boxe.

    Duas víboras geminadas
    ou o brasão, que tem por fundo
    o esmalte de um jardim
    é mais sumário? Duas em uma
    exatamente única, bota fogo
    sem clemência, e se pega
    pelo rabo, se consome
    devorando-se, sob a flora
    serrana e bélica.
    O veneno não é brusco, nem
    o ódio; nada a desvia do destino:
    de não deixar que se apague
    as labaredas, o sofrimento
    a lenta fúria desta heráldica.

     

     

    Armando Freitas Filho é poeta. Em 2003, lançou Máquina de escrever, reunião de sua poesia desde 1963. Em 2006, Raro mar. Prepara para publicação em 2009, Lar, seu novo livro de poemas. Ganhou o prêmio Jabuti, em 1986, com 3X4, em 2003, com Máquina de escrever, e em 2006, com Raro mar. Em 2000, com Fio terra, o prêmio Alphonsus de Guimaraens, outorgado pela Biblioteca Nacional. Em 2003, a revista Ciência & Cultura, Ano 55, n. 4, publicou dois outros poemas de sua autoria.