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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.4 São Paulo oct. 2008

     

     

    A INVIABILIDADE DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA

    Evaristo Eduardo de Miranda

     

     

    É possível conciliar a ilegalidade crescente das atividades humanas na Amazônia com o desenvolvimento sustentável? Na Amazônia não se desmata por pura maldade, no que pese a crença de alguns. As razões são sociais e econômicas. Lá existem cerca de 25 milhões de pessoas com direito a trabalhar e viver com dignidade. Mesmo sendo uma das regiões mais pobres do Brasil, a Amazônia tem a economia regional que mais cresce. Em três anos, entre 2002 e 2005, seu PIB cresceu 22,4%, enquanto o do Brasil cresceu apenas 10%. O estado em que o PIB mais aumentou foi Tocantins, seguido pelo Mato Grosso.

    Se é verdade que parte das atividades humanas na Amazônia declaradamente desrespeita os princípios da sustentabilidade, também é verdade que uma parte crescente da presença e das atividades humanas na Amazônia foi e continua sendo empurrada para a ilegalidade por uma legislação ambiental carente de planejamento transversal. Segundo demonstra pesquisa realizada por uma equipe da Embrapa Monitoramento por Satélite (1), a rigor, em termos legais, dos 4.240.605 km2 do bioma Amazônia, apenas cerca de 289 mil km2 seriam passíveis de ocupação econômica urbana, industrial e agrícola. Talvez menos. Na realidade, porém, as atividades urbanas, industriais e agrícolas já ocupam o dobro ou o triplo dessa área. E nada indica uma reversão nesse processo.

    Como fazer caber tal realidade num espaço legal de apenas 5 a 7% da Amazônia? Examinemos as dimensões desse conflito: em sua primeira fase, a pesquisa da Embrapa mapeou e quantificou, num sistema de informações geográficas, o alcance territorial da legislação ambiental com base em dados do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Agência Nacional de Águas (ANA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da legislação ambiental.

    ÁREAS PROTEGIDAS A pesquisa considerou todas as Unidades de Conservação (UCs) federais e estaduais criadas até junho de 2008, com base em dados do Ibama. Não foram incluídas as UCs municipais, as Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPNs), as áreas militares, as Áreas de Proteção Ambiental (APAs) estaduais e municipais, ou outros tipos de unidades de ocupação restrita. Portanto, o resultado subestima a extensão real das áreas protegidas. Quanto às Terras Indígenas (TIs), foram utilizados os dados atualizados da Funai. Assim, quando somadas, as Terras Indígenas e áreas protegidas existentes totalizam 1.967.805 km2, ou 46,4% do bioma Amazônia.

    ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE A pesquisa também considerou parte das duas principais categorias de Áreas de Preservação Permanente (APPs), as associadas à hidrografia e ao relevo. Não foram consideradas as APPs associadas a feições litorâneas, deltas, mangues, restingas e dunas, nascentes e seu entorno, locais de reprodução da fauna, linhas de cumeada e outras categorias previstas nas resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Da mesma forma, uma infinidade de cursos d'água não cartografáveis na escala 1:1 milhão deixou de ser considerada. Portanto, essa primeira fase do trabalho subestima a extensão total dessas APPs.

    A primeira dificuldade para quantificar essas áreas reside na inexistência de um mapeamento homogêneo e exaustivo da rede hidrográfica da Amazônia, em escala grande. O cálculo da hidrografia utilizou dados da ANA, baseados no IBGE. A segunda e maior dificuldade está no fato que as resoluções 302 e 303/2002 do Conama estabelecem como área ocupada pelo rio não a inundada de forma permanente, mas a inundável na cheia máxima, dado absolutamente indisponível. À área inundável deve ser agregada uma faixa marginal variável de 30 a 500 m. O total de APPs associadas à hidrografia, na primeira fase da pesquisa, foi estimado em 1.388 mil km2 ou 33% do bioma Amazônia. O desenvolvimento metodológico desse cálculo prossegue. Paradoxalmente, nessas áreas está localizada a maioria das cidades, povoados, populações ribeirinhas, portos, embarcadouros, agriculturas de várzea, pastagens com búfalos e diversas atividades modernas e tradicionais.

    O mapeamento das áreas ocupadas por APPs associadas ao relevo foi obtido por geoprocessamento, a partir de modelos matemáticos desenvolvidos pela equipe, com base em dados com 90m de resolução espacial da Missão Topográfica por Radar Interferométrico (SRTM, na sigla em inglês) da Agência Espacial Americana (Nasa). Diversas feições não foram consideradas – como linhas de cumeada e morros muito isolados – ou não eram identificáveis – como faixas estreitas de declividades acima de 45° e bases de chapadas. Foram mapeadas e calculadas as áreas situadas acima de 1.800 metros de altitude, os topos de morro e as declividades entre 25° e 45°e acima de 45°, seguindo a resolução Conama 303/2002. As APPs associadas ao relevo resultaram em cerca de 104.500 km2 ou 2,5 % do bioma Amazônia.

    SUPERPOSIÇÕES ESPACIAIS espaciais Existe superposição de limites entre UCs e TIs e entre elas e APPs. O sistema de informações geográficas calculou essas sobreposições, caso a caso. Trata-se de um cálculo pesado e longo a ser realizado. O total de superposições foi de 687 mil km2 (16%). Descontado esse valor, restou como área disponível para ocupação legal cerca de 1.468 mil km2 ou seja 35% do bioma. Os outros 65% estão legalmente destinados às UCs, TIs e APPs.

    RESERVA LEGAL A Medida Provisória 2166-67, de 24 de agosto de 2001, deu nova redação à Lei 4.771 de 15 de setembro de 1965 (Código Florestal) e prevê, no mínimo, 80% da área florestal da propriedade rural mantida intocada a título de reserva legal no bioma Amazônia. Respeitadas as exceções, já calculadas, a área total a ser destinada à reserva legal foi calculada. Ela é da ordem de 1.179 mil km2 suplementares dedicados à manutenção da cobertura florestal ou cerca de 28% da região.

    LEGALIDADE E LEGITIMIDADE Descontadas todas as áreas legalmente destinadas à proteção ambiental, o que restaria como área disponível para ocupação seria cerca de 289 mil km2, ou seja, menos de 7% do bioma Amazônia. Reiterando, dos 4.240.605 km2 do bioma Amazônia, menos de 289 mil km2 estão legalmente disponíveis para uma ocupação intensiva, seja agrícola, urbana ou industrial.

    Do lado ambiental e indigenista, ainda existem propostas de novas UCs e TIs a serem criadas, sem falar das demandas dos quilombolas. Por outro lado, a expansão das fronteiras econômicas prossegue e será ampliada por demandas crescentes das cidades, pela expansão da agricultura (agroenergia e alimentos), pela integração rodoviária e energética com países vizinhos e pela implementação das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O impasse entre legalidade e legitimidade no uso e ocupação das terras deve agravar-se, dificultando a governança territorial.

    Em resumo, embora várias leis e iniciativas visassem a proteção ambiental da Amazônia, elas não contemplaram as realidades socioeconômicas existentes, nem a história da ocupação humana da região e produzem um efeito contrário ao meio ambiente. Na ausência do zoneamento ecológico-econômico, a somatória de UCs e TIs, das exigências legais de reserva legal e de manutenção dos diversos tipos de APPs, evidenciam a falta de planejamento transversal ou mesmo de comunicação entre os diversos ministérios. O conjunto das áreas protegidas levou a uma restrição legal de uso das terras sobre mais de 93% da região, colocando na ilegalidade grande parte das atividades econômicas regionais, sem possibilidade de adequação.

    A sociedade local, através de seus representantes municipais e estaduais, é a grande ausente na formulação das políticas públicas de impacto territorial, frequentemente suscitada por gestores oriundos de outras regiões, quando não do exterior. Os resultados da primeira fase da pesquisa da Embrapa são inequívocos: para respeitar a legislação ambiental em vigor, em menos de 7% da área do bioma Amazônia deveriam estar capitais, cidades e vilarejos, áreas de agricultura, indústrias, todas as obras de infra-estrutura, incluindo as do PAC, e boa parte de seus 25 milhões de habitantes.

    Para o ordenamento territorial e desenvolvimento sustentável, a impressão é de que a Amazônia acabou. O país cortará pela metade a economia e a população da Amazônia e bloqueará seu crescimento para atender à legislação? Ou adequará a legislação ambiental às realidades históricas e territoriais diferenciadas da Amazônia? Ou a região conviverá com um quadro que a cada dia afasta a legitimidade da legalidade? Ou, ainda, em uma negociação supra-setorial, com a voz ativa dos brasileiros da Amazônia, o Brasil repactuará o ordenamento territorial, as formas e processos de desenvolvimento e o futuro da região? A prosseguir o atual quadro de ilegalidade e confronto entre demandas sociais e as exigências ambientais, hoje e no futuro, todos perdem. Perde-se também, sobretudo, a perspectiva de qualquer tipo de desenvolvimento sustentável.

     

    Evaristo Eduardo de Miranda é doutor em ecologia e chefe geral da Embrapa Monitoramento por Satélite (www.cnpm.embrapa.br)

     

     

    NOTA BIBLIOGRÁFICA

    1. Além do autor, participam dessa pesquisa Daniel de Castro Victória, Fábio Henrique Torresan e Osvaldo Tadatomo Oshiro, da Embrapa Monitoramento por Satélite, e Marcos Hott, da Embrapa Gado de Leite.