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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.4 São Paulo Oct. 2008

     

     

     

     

    ESCRAVOS DA CANA

    Esforço físico excessivo busca aumento de renda

     

    São seis da manhã. Hora de dar a última conferida no velho "podão de guerra", de 600g, que não está nas melhores condições, mas não impedirá a produtividade dos campeões. O "atleta" entra em campo e já agarra o primeiro feixe com cinco a dez varas de cana. Em seguida as puxa, flexiona a coluna para cortar o feixe rente ao solo – como gosta o patrão –, traz o tronco de volta para cortar as "ponteiras" no alto da cana, joga-as em montes e avança eito adentro. Nesse momento o relógio crava em 5,6 segundos.

    A prova não é de velocidade, mas de resistência. Às 16h, horário previsto para os cortadores de cana terminarem a jornada, os números alcançarão a impressionante marca de 3792 golpes de facão desferidos, 3994 flexões de coluna e 11,5 ton de cana cortadas. O esforço é recompensado por R$ 38. Porém, não haverá comemoração, apenas recuperação. Amanhã será mais um dia de trabalho.

    Esse esforço físico é a realidade diária de 335 mil cortadores de cana no Brasil. Os números são frutos de uma pesquisa ergonômica sobre o corte manual de cana-de-açúcar no interior do estado de São Paulo. Os resultados do estudo da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) concluem que a condição física desses cortadores se assemelha a de maratonistas. "Os músculos desse profissional são franzinos, mas sua resistência é elevada; seus problemas de saúde também são os mesmos a que estão sujeitos atletas de alto desempenho", afirma Erivelton Fontana de Laat, coordenador da pesquisa.

    Esses problemas vão muito além das lesões por repetição de movimentos. O principal fator de risco, de acordo com a pesquisa realizada em 2007, é a sobrecarga na atividade cardiorrespiratória do trabalhador. Ao analisar aspectos como a freqüência cardíaca em repouso, média e máxima, idade e produção diária (em toneladas), Laat descobriu que seis dos dez trabalhadores analisados ultrapassaram o limite cardiorrespiratório tolerável à saúde, alguns chegaram a picos de 200 batimentos por minuto.

    Outras evidências respaldam dados de exploração e mortes de canavieiros em expediente. De 2004 para cá, por exemplo, a Pastoral do Migrante de Guariba (SP) relacionou 20 mortes, principalmente, por parada cardiorrespiratória. Números do INSS mostram que 30 mil funcionários de usinas de cana foram afastados por período inferior a 15 dias, entre 1999 e 2005. Os afastamentos permanentes somaram 450.

    O CORTADOR ESTRANGEIRO Em 1985, um trabalhador cortava 5 toneladas diárias de cana. Hoje, ele corta 9,3. Muitos fatores contribuíram para esse aumento de produção radical, mas segundo o economista da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) Francisco José da Costa Alves, o novo perfil social e demográfico desse cortador é uma das causas.

    A partir de 2000, migrantes do Maranhão e do Piauí se juntaram à legião de cortadores naturais do estado de São Paulo, do Vale do Jequitinhonha (MG) e do Nordeste. Naquele ano, o relatório de atividades da Pastoral do Migrante estimou em 100 o número de migrantes desses dois estados para os canaviais paulistas, chegando a 6 mil em 2006.

    Alves acredita que a maior resistência física desses novos migrantes é um dos principais responsáveis pelo forte incremento no número de toneladas de cana cortadas. A socióloga da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, Maria Aparecida de Moraes Silva, que há 30 anos estuda o cotidiano dos bóias-frias, fala que os migrantes são preferidos porque, em função da distância de suas famílias, suportam mais as imposições do que os trabalhadores locais. "Se reclamarem, correm o risco de serem despedidos. Isso implicaria em sérios riscos para a sobrevivência dele e de suas famílias", declara. Ela acrescenta que, ao final da safra, os migrantes regressam aos seus locais de origem, desobrigando as empresas de assumirem qualquer compromisso trabalhista na entressafra.

    O destaque do etanol no cenário internacional deve movimentar R$ 40 bilhões no setor sucroalcooleiro até o fim de 2008. Infelizmente, essa riqueza parece não causar melhorias na infra-estrutura e nas condições de trabalho. Pelo menos é isso que as fiscalizações do Grupo Rural da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP) constataram. De acordo com o coordenador do grupo Roberto de Martins Figueiredo "a precariedade do trabalho nas frentes de corte de cana manual é caracterizada pela falta de fornecimento de água potável, abrigo para intempéries, sanitários, gestão de segurança e de equipamentos de proteção individual, assim como da sua reposição".

    SALÁRIO POR PRODUÇÃO Para a grande maioria dos pesquisadores e procuradores do Ministério Público, a remuneração por produção é o principal motivo pelo qual os trabalhadores suportam condições tão duras de trabalho. O piso salarial da categoria é de aproximadamente R$500, mas pode chegar a R$1200 ou até R$1500 para os chamados campeões. Essa maneira perversa de pagamento por produção, afirma o economista da UFSCcar, apenas estimula o trabalhador a passar dos limites físicos. A solução, acredita, seria substituir a prática pelo pagamento fixo, com o controle da jornada de trabalho. Sindicatos de trabalhadores rurais pedem a redução da carga semanal para 40 horas, com dois dias de descanso. Cristina Gonzaga, pesquisadora da Fundacentro, fundação de pesquisas do Ministério do Trabalho, defende 30 horas, com cinco jornadas de seis horas por semana. As usinas rejeitam todas as reivindicações.

    Mas o Procurador do Trabalho de Bauru (SP) José Fernando Ruiz Maturana enfatiza que a questão não é tão simples. "Hoje os trabalhadores ganham pelo que produzem, apesar dos problemas dessa prática; amanhã mudamos as regras e os usineiros vêm nos agradecer por termos diminuído seus gastos com a folha de pagamentos dos funcionários". Ele também lembra que os próprios trabalhadores são contrários à mudança na forma de remuneração no corte da cana em função da diminuição de seus rendimentos. Já o procurador do Trabalho de Campo Grande (SP) Jonas Ratier Moreno aposta que os empresários serão obrigados a rever seu posicionamento sobre a questão trabalhista quando os mercados internacionais embargarem o etanol brasileiro em função da presença de trabalho escravo ou exploração na cadeia produtiva.

    Outra saída talvez seja deixar as coisas como estão e esperar pela tão falada mecanização no corte de cana, que a partir de 2015 deverá cobrir 100% das plantações no estado de São Paulo. Quando isso ocorrer, a grande questão será o destino de grande parte dos atuais trabalhadores rurais semi-analfabetos.

     

    Luiz Paulo Juttel