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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.4 São Paulo Oct. 2008

     

     

    APRESENTAÇÃO

    REPENSANDO A EXPERIÊNCIA INDÍGENA NOS DIAS DE HOJE

    Clarice Novaes da Mota

     

     

    Desde a "descoberta" do território hoje conhecido como Brasil pelos portugueses que a presença dos indígenas aqui vivendo tem sido um desafio às políticas de ocupação e colonização da nova terra por todos os governos constituídos pela população não-indígena. A política colonizadora em relação aos índios foi sempre de protecionismo, com vista à assimilação do contingente indígena para usufruto da sociedade nacional. Os indígenas, por sua vez, ora resistiram à ocupação de suas terras e sua escravização pelo capital, ora aceitaram pacificamente os intrusos, inclusive colaborando com eles em suas guerras contra outros invasores, ou simplesmente se mudaram para glebas longínquas onde continuaram a viver suas vidas da forma como sabiam. Este desafio permaneceu ao longo destes 500 anos de ocupação da terra alheia, com altos e baixos em termos das relações com os índios, relações estas marcadas pela necessidade quase constante em controlá-los, tomando variadas decisões quanto a seu destino, resultando no que é atualmente a convivência dos povos indígenas com a sociedade nacional. Sendo que esta ainda é marcada pela soberania de uns sobre outros, estes outros sempre vistos como "exóticos" ou "primitivos" e, consequentemente, necessitados de nosso apoio, compreensão, amizade e solidariedade para poderem continuar sobrevivendo enquanto "os outros".

    Mas não resta dúvida que a consciência de sua diferença, e de seus direitos, tem se solidificado nas últimas décadas, inclusive a partir desse mesmo apoio e solidariedade por parte de movimentos pró-indígenas da sociedade nacional, facilitando o ressurgimento de várias comunidades indígenas que já tinham sido dadas como "extintas" ou até mesmo de sociedades novas e auto-afirmadas. Enquanto o lema do contato com os povos indígenas era o de proteger para assimilar e aculturar, as relações, embora homogeneizadoras e controladoras, pareciam satisfatórias para a maioria da população não-indígena. Afinal, trata-se de populações minoritárias e desprovidas de "cultura". Mesmo se nem todos os assim chamados povos primitivos estavam fisicamente morrendo, suas culturas exóticas estavam certamente se desintegrando (por "aculturação") sob o assédio da ordem capitalista mundial. Parecia que logo nada mais restaria a contemplar senão versões locais da "civilização" ocidental.

    A Constituição de 1988, no entanto, reconheceu "aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens." (Capítulo VIII – Dos índios – Artigo 231 da CF). O Artigo 231 afirma ainda, em seu segundo parágrafo: "As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes". E no quarto parágrafo: "As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis". Ou seja, a Constituição de 1988 rompeu com a perspectiva integracionista vigente desde o período colonial no Brasil e abriu uma nova perspectiva: de reconhecimento dos direitos territoriais e culturais dos povos indígenas. Como se nada houvesse passado nos últimos 20 anos, como se a sociedade civil não tivesse se recuperado dos anos da ditadura militar, não só eles, mas, principalmente, os militares brasileiros continuam a pensar os povos indígenas como devendo "ser plenamente integrados à sociedade nacional", de modo que suas terras e riquezas sejam colocadas à disposição do mercado e do "desenvolvimento do país". Para os militares, os povos indígenas não podem ser reconhecidos como tais, pois o seu mero reconhecimento significaria "uma ameaça à soberania nacional", uma velha paranóia política que nos leva sempre a estratégias de conflito, baseada no desentendimento do que é realmente necessário para se manter ou lograr uma desejada soberania nacional. A saber, que não são necessariamente os índios que nos impedem de alcançar tal soberania, mas os desastrosos contratos com multinacionais estrangeiras e outros desacertos econômicos...

    A terra indígena Raposa Serra do Sol é, no momento, a principal vítima da reação militar às políticas de governo e às conquistas constitucionais dos povos indígenas. Na verdade, para os militares, Raposa Serra do Sol deverá ser, numa concepção de guerra, a "cabeça de ponte" de um ataque generalizado às demarcações e homologações de terras indígenas já feitas, sendo feitas ou a serem feitas no Brasil. Trata-se de voltar ao período pré-constitucional, anular demarcações, evitar novas e disponibilizar os territórios indígenas para as grandes corporações nacionais e internacionais, principalmente mineradoras, e para o agronegócio. Só assim, a "segurança nacional" estaria garantida.

    Neste conjunto de excelentes artigos, escritos por antropólogos, historiadores e educadores, com a autoridade permitida por seus vastos trabalhos de pesquisa e por anos de convivência pacífica junto às sociedades indígenas neles tratada, analisa-se e debate-se mais uma vez o grande conflito gerado (e seus resultados), ao longo das décadas, pelas incompreensões entre índios e não-índios e pelos interesses altamente diversos da sociedade mercantilista, consumista e capitalista em confronto com sociedades comunitárias e sem vistas a acumulação do capital mercantil, como são até hoje as sociedades que nos antecederam neste vasto território nacional. Os artigos nos atualizam sobre o que se precisa saber sobre as comunidades, mas também o que se precisa aprender com as mesmas. As atuais comunidades indígenas não nos parecem tão sequiosas de nosso aval, nem de nossa logística dominadora, para exercerem a sua própria vida, ou para se manifestarem como povos autônomos e auto-afirmados em termos de cultura e sobrevivência material. Estão sequiosos, isto sim, de um reencontro com sua natureza pré-conquista, por suas culturas tradicionais, seus saberes, seus idiomas, numa vontade expressa de fortalecimento, tanto cultural como político. Entram na sociedade nacional, não mais como vítimas, mas como autores de seu próprio destino. Ao ler os textos aqui presentes, faremos, com certeza, uma idéia diferente sobre quem são os índios brasileiros na atualidade: artistas, religiosos, educadores bilíngües, esportistas, autores, especialistas sobre a cura e a natureza, integrados consigo mesmos e prontos para um recomeço em termos das relações com os não-indígenas. Além do mais, como nos mostra Marta Maria Azevedo no artigo "Diagnóstico da população indígena no Brasil", capazes de aumentar sua população, mostrando sua integridade física e espiritual, subvertendo a antiga visão do "civilizado" sobre o "primitivo", reelaborando o passado para construir o presente.

     

    Clarice Novaes da Mota é professora adjunta de antropologia na Universidade Federal de Alagoas e vice-coordenadora do grupo de pesquisa do Laboratório de Movimentos Étnicos, da Universidade Federal de Campina Grande. Em 1980, foi pesquisadora do Museu do Índio (RJ) e, em 2007, publicou o livro Os filhos de Jurema na floresta dos espíritos: ritual e cura em duas comunidades indígenas do Nordeste do Brasil, pela Edufal.