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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.4 São Paulo Oct. 2008

     

     

    DIAGNÓSTICO DA POPULAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL

    Marta Maria Azevedo

     

    INTRODUÇÃO No Brasil do século XVI, quando da chegada dos portugueses, viviam cerca de mil povos distintos com uma população de 2 milhões a 5 milhões de pessoas, segundo diferentes estimativas. A Funai (Fundação Nacional do Índio), em reunião sobre a possível realização de um levantamento populacional dos índios em 2003, apresentou a tabela abaixo com estimativas do decréscimo populacional desses povos.

     

     

    Desde o início da colonização brasileira até a década de 1970 os povos indígenas eram considerados como uma categoria social transitória, ou seja, todas as políticas públicas direcionadas aos povos indígenas tinham como objetivos sua "integração à comunhão nacional", seja através da catequização, colonização, ou até mesmo da escravização. A lei nacional mais recente que especificamente diz respeito aos povos indígenas no Brasil é o Estatuto do Índio, de 1973, que, embora tenha ficado desatualizado com a nova Constituição, ainda não foi substituído. Nesta lei todas as ações visam "a integração do índio à comunhão nacional".

    Com a Constituição de 1988, os povos indígenas passaram a ser considerados como povos distintos sujeitos de direitos especiais, são reconhecidas suas organizações sociais, econômicas e políticas distintas e fica estipulado que o Estado deve respeitá-los enquanto povos distintos. Portanto, não estão mais fadados ao desaparecimento, espera-se uma convivência mais respeitosa, as políticas públicas não devem mais ter como objetivos a integração desses povos à comunhão nacional. Muitos esforços têm sido feitos para melhorar a implementação desses direitos garantidos na Constituição (1), não só por parte do próprio movimento indígena, como também por parte do governo. Porém, ainda é nítida a falta de sistemas de informações populacionais mais detalhados e com ampla cobertura para orientar, acompanhar e avaliar as políticas públicas. Como se sabe, os censos demográficos brasileiros começaram a captar de maneira específica os indígenas a partir de 1991, com a auto-declaração de pessoas no quesito "cor ou raça" do questionário da amostra. Ainda assim, muitos trabalhos já demonstraram que essa metodologia de captação tem sido insuficiente para termos uma idéia mais acurada da situação sociodemográfica dos povos indígenas, sujeitos de direitos e políticas públicas específicas (2).

    Diferentemente de outras populações no mundo, que em sua grande maioria estão com baixos níveis de fecundidade (3) (ou baixando) e baixos níveis de mortalidade (ou baixando), ou seja, passando pela chamada transição demográfica. Os povos indígenas na América Latina, ao contrário, se encontram num processo de crescimento populacional. Assim sendo, os altos níveis de fecundidade desses povos estão sendo mantidos, nos últimos dez anos pelo menos, e a taxa de crescimento anual está sendo estimada, de uma maneira geral, em 3% ao ano. Isto indica que esses povos estão com uma dinâmica demográfica completamente distinta daquela observada na maioria dos países do mundo, não só da América Latina. Somente esse fato deveria ser motivo de muitas pesquisas, investigações e investimentos para que se possa saber o porquê desse fenômeno: é algo semelhante ao "baby boom" pós-guerras? Ou seja, é um fenômeno de recuperação demográfica, ou é uma diferente dinâmica demográfica que tem raízes culturais e territoriais? Ou é uma fase temporária que pode acontecer muitas vezes no início da transição demográfica, que se caracteriza por um aumento da população causado pela alta fecundidade e queda da mortalidade? Quais são os níveis e perfis da fecundidade desses povos tão distintos entre si, e quais são as diferenças entre os diversos componentes demográficos de suas populações – fecundidade, mortalidade e migração? Todos os indicadores epidemiológicos, importantíssimos para ajustar e planejar as políticas públicas de saúde, têm suas bases na população total por etnia, desagregada por sexo e idade; ou seja, as taxas de morbi-mortalidade, por exemplo, têm por base a população total num determinado período, e se não temos a população total por sexo e idade de um determinado povo não podemos saber com confiança quais são esses indicadores. Todas essas são perguntas que, embora a nova Constituição do Brasil os reconheça como povos distintos, com direitos territoriais, culturais, lingüísticos etc, não podemos responder, pois não temos como analisar esses componentes demográficos por povo ou etnia.

    OS INDÍGENAS NOS CENSOS DEMOGRÁFICOS BRASILEIROS Os censos demográficos brasileiros captam a auto-declaração daqueles que se identificam como indígenas, categoria que está incluída no quesito raça/cor da pele, do questionário da amostra. Este contingente populacional inclui pessoas que se identificam como sendo "índio-descendentes" mesmo não sabendo a que povo/etnia pertenciam seus ancestrais (em geral, reconhecidamente ancestrais via materna); pessoas que moram em cidades e que se reconhecem como pertencendo a povos/etnias específicos; pessoas que moram em Terras Indígenas (TIs) e que se reconhecem como pertencendo a povos/etnias específicos, e pessoas que reconhecem como pertencendo a povos/etnias específicos que estão em processo de reivindicação de suas terras e, em alguns casos, de suas identidades étnicas.

    Com os resultados do censo demográfico de 1991, do questionário da amostra, já apontávamos para um fenômeno de "valorização das identidades étnicas" com muitas facetas, onde o aumento populacional dos indígenas no Brasil é uma delas. Esse crescimento pode ser atribuído a várias causas: a) crescimento vegetativo, quando a população mantém altas taxas de fecundidade, está sendo observado entre os povos indígenas residentes das TIs, como é o caso dos Xavante (cerca de 9 mil pessoas em 2000 e 12.845 pessoas em 2005, contabilizadas pela Funasa), dos Waiãpi, que eram 412 em 1992 e em 2005 sua população contava com 756 pessoas, dos Kaiabi no Xingu (4) e outros povos. Esse crescimento tem sido apontado em inúmeros trabalhos sobre demografia e saúde dos povos indígenas e, em alguns casos, deve-se também à melhoria paulatina das fontes de informações sobre esses povos; b) outro caso importante é aquele de outros povos indígenas que passam por um aumento populacional expressivo, como é o caso dos Pataxó da Bahia, que em 2001 eram 2.790 pessoas e em 2005 foram contadas como 10.897 pessoas; este aumento populacional não é devido somente ao crescimento vegetativo, mas muito mais a uma crescente identificação de pessoas e comunidades que anteriormente não se consideravam Pataxó. Assim como os Pataxó existem vários casos, como os Kokama do Amazonas e outros; c) além desses dois tipos de aumento populacional, verifica-se hoje no Brasil uma outra face desse fenômeno de "valorização étnica" que são os povos formados por comunidades que recentemente passaram a se reconhecer como povos indígenas. Esses povos, já denominados de resistentes são, por exemplo, os Kaxixó de Minas Gerais, Pipipã de Pernambuco, Tumbalálá da Bahia e outros, que, portanto, não eram contabilizados como povos indígenas há 15 anos atrás, mas hoje fazem parte desse contingente, com uma população estimada de 15 mil pessoas mais ou menos; d) e, por fim, tivemos um grande aumento populacional da categoria indígena nos censos demográficos de 1991 para 2000 (de 290 mil para 770 mil) que possivelmente pode ser explicado por um crescente reconhecimento da nossa descendência indígena, embora sem conhecermos os povos/etnias específicos dos quais descendemos.

     

     

    Portanto, no Brasil, são muitos os "índios-descendentes", porém, aqueles que se reconhecem como povos específicos são os que estão com uma dinâmica demográfica distinta do restante da população brasileira, com altos níveis de fecundidade, com crescimento que chega a níveis de duplicação da população em 15 anos. E são esses povos, ou essas populações, sobre as quais é necessário, e urgente, termos informações populacionais, não só por causa do enorme interesse em estudarmos populações que têm dinâmicas distintas para entendermos as dinâmicas populacionais de uma maneira mais geral, como também para subsidiarmos as políticas públicas de saúde, educação e outras.

    Em 2005, o IBGE lançou um pequeno livro com análises demográficas dos auto-declarados indígenas nos censos 1991 e 2000 (5), nesse volume conseguiu-se demonstrar que os indicadores demográficos dos indígenas residentes das áreas rurais dos municípios que têm Terras Indígenas em seus territórios (denominadas na publicação de "rural específico") são próximos daqueles encontrados pelos demógrafos especialistas em populações indígenas quando analisam as informações populacionais desses povos a partir de outras fontes de informação.

    Por isto, a tarefa que se impõe agora é conseguir captar informações demográficas confiáveis sobre esses povos, o que exige possivelmente não só ter questões no questionário da amostra dos censos demográficos nacionais (6), mas levando a questão "raça/cor da pele" com as cinco categorias fechadas para respostas, para o questionário do universo, ou seja, fazendo esta pergunta do pertencimento étnico para todos os cidadãos residentes no Brasil. Com isto, teríamos a possibilidade de termos informações para cada Terra Indígena, e para cada povo/etnia.

    Sabemos que, no Brasil, dos 225 povos indígenas existentes, 49,55% tem até 500 pessoas, 39,55% tem entre 500 e 5 mil pessoas, 9% tem entre 5 mil e 20 mil pessoas, e apenas 4 povos indígenas têm mais de 20 mil pessoas. Se fôssemos construir amostras populacionais para pesquisar esses povos, portanto, deveríamos levar em consideração as estimativas populacionais de cada um deles, considerá-los o que na realidade são: totalidades sociológicas distintas. Portanto, é, como já foi dito, um grande mosaico de micro-sociedades com populações de pequeno ou médio porte, com dinâmicas demográficas distintas revelando não só autonomias culturais como também qualidade de vida e perfis epidemiológicos muito diferentes.

    Além dessas questões de caráter mais geral, é preciso repensar ou adequar os grandes temas pesquisados, como saúde, educação, religião, ocupação ou trabalho, migração etc.

    Enquanto isto, um avanço enorme já se poderia dar se o censo demográfico de 2010 incluísse uma ou duas questões a mais para aqueles que se auto-declarassem indígenas, como pertencimento étnico específico e línguas faladas, e considerasse setores censitários especiais todas as Terras Indígenas já reconhecidas.

     

    Marta Maria Azevedo é pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp e do Instituto Socioambiental.

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E NOTAS

    1. Os direitos indígenas garantidos na Constituição Federal de 1988 também estão detalhados e garantidos em diversos instrumentos internacionais, sendo mais conhecidos a Declaração da OIT, que o Brasil assinou no ano passado, e mais recentemente, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

    2. IBGE, 2005. "Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos censos demográficos 1991 e 2000". Rio de Janeiro: IBGE.

    3. As medidas de fecundidade visam termos uma idéia de número médios de filhos nascidos vivos por mulher. Quando estamos falando em níveis baixos de fecundidade em geral queremos dizer que em média as mulheres de uma determinada população em um determinado período de tempo (um ano em geral) estão tendo 2 ou menos filhos. Isto significa que essa população está chegando nos níveis de fecundidade que vão apenas repor a população, ou, fecundidade nos níveis de reposição, a depender dos níveis de mortalidade.

    4. Pagliaro, H. "A revolução demográfica dos povos indígenas no Brasil: a experiência dos Kaiabi do Parque Indígena do Xingu – Mato Grosso – 1970-1999". Tese de doutorado na Faculdade de Saúde Pública da USP. 2002.

    5. IBGE. "Tendências demográficas, uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos censos demográficos de 1991 e 2000". 2005. Disponível no site do IBGE.

    6. Amostra essa cujo tamanho depende da população do município (no censo de 2000, 10% para os municípios com mais de 15 mil habitantes e 20% para aqueles com população menor do que esta).

    7. Este número 225 foi contabilizado pela equipe do Instituto Socioambiental para a última publicação sobre os povos indígenas. Levou-se em conta todos os povos que têm feito gestões junto à Funai para o seu reconhecimento.

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    Alves, José E. D. e Cavenaghi S. "Questões conceituais e metodológicas relativas a domicílio, família e condições habitacionais". In: Papeles de Población, n. 43, CIEAP/UAEM, México. 2005.

    Azevedo, Marta e Ricardo, Fany. "Censo 2000 do IBGE revela contingente indígena pouco conhecido". In: Notícias Socioambientais, publicada no site www.socioambiental.org acessado em 12/12/2006. 2003.

    Inep. Censo Escolar Indígena, Brasília, MEC. 1999.

    Inep. Questionários do Censo Escolar, Brasília, MEC. 2005 e 2006. Disponível no site www.inep.gov.br acessado em 1 de agosto de 2006.

    Mindlin, Betty; Muñoz, H.; Azevedo, M. M. (coord.). "Apreciação das políticas públicas em educação indígena no período 1995-2002". Ministério da Educação, Brasília, mimeo. 2002.

    Osório, R. G. "O sistema classificatório de 'cor ou raça' do IBGE". Textos para discussão, Ipea, n. 996, Rio de Janeiro/RJ. 2003.

    Pagliaro, H.; Azevedo, M. & Santos, R.V. (orgs.). Demografia dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz & ABEP. 2005.

    Ricardo, Carlos Alberto. Povos indígenas no Brasil 1996/2000, São Paulo: Instituto Socioambiental. 2000.

    Ricardo, C. A. e Ricardo, Fany. Povos indígenas no Brasil 2000/2006. São Paulo: Instituto Socioambiental. 2006.