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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.4 São Paulo out. 2008

     

     

    EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA? A GENTE PRECISA VER

    Wilmar da Rocha D'Angelis

     

    Do luar / do luar não há mais nada a dizer,
    a não ser / que a gente precisa ver o luar.

    Gilberto Gil

     

    Este pequeno texto não é mais que um arremedo de balanço da reflexão sobre educação escolar indígena, não tanto com relação ao que foi feito nesse caminho, mas uma provocação sobre o que, me parece, falta ainda fazer ou é a tarefa a fazer no momento.

    O QUE JÁ TEMOS PARA LER Não são poucas as páginas que se têm preenchido a respeito da educação escolar indígena. O número de dissertações, teses, apresentações e textos em congressos, artigos em periódicos e livros sobre experiências particulares já se conta em centena. Para citar apenas "coletâneas", e as mais importantes, devemos começar pelo pioneiro A questão da educação escolar indígena, organizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, resultado de um dos primeiros encontros nacionais sobre o tema (publicado pela Brasiliense, 1981). Na seqüência (cronológica), é indispensável citar Por uma educação indígena diferenciada, organizado por Ana Suelly A. C. Cabral, Nietta Monte e Ruth Monserrat (Fundação Pró-Memória, 1987). Outros encontros importantes que geraram uma boa publicação foram organizados no âmbito do indigenismo ligado aos setores ditos progressistas da Igreja Católica e de outras igrejas cristãs, e renderam o conhecido A conquista da escrita, organizado por Loretta Emiri e Ruth Monserrat, sob os auspícios da Operação Anchieta (Iluminuras, 1989).

    Na década de 1990, marcou época a publicação de um número especial da revista Em Aberto, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira do Ministério da Educação (Inep-MEC, n. 63, 1994), que trazia as "Diretrizes para a política de educação escolar indígena", do MEC (1993) e um conjunto de artigos propositivos a respeito do que deveria ser o que se começou a denominar "ensino diferenciado". O MEC publicou, na seqüência, os "Referenciais curriculares nacionais para a escola indígena" (RCNEI), em 1998. A coletânea que fechou a década foi um número da revista Cadernos do Cedes, dedicado à "educação indígena e interculturalidade" (n. 49, 1999) (1).

    Na primeira década do novo século, é importante registrar as obras produzidas sob os auspícios do grupo Mari (de educação indígena), do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP): Práticas pedagógicas na escola indígena, organizado por Aracy Lopes da Silva (Global, 2001); Antropologia, história e educação: a questão indígena e a escola, organizado por Aracy Lopes da Silva e Mariana K. L. Ferreira (Global, 2001); Crianças indígenas: ensaios antropológicos, organizado por Ana Vera L.S. Macedo (Global, 2002).

    No mesmo período, quase uma década depois do famoso Em Aberto (n. 63), o Inep reservou outro número da revista exclusivamente ao tema (n. 76, 2003), com foco na formação de professores. Finalmente, uma nova coletânea do MEC, em livro, reunindo trabalhos antes dispersos em diferentes publicações, apareceu sob o título Formação de professores indígenas: repensando trajetórias, em 2006.

    Cada uma das publicações mencionadas precisa ser lida ou compreendida no conjunto das demais para se construir, com isso, um painel dos caminhos e descaminhos da educação escolar indígena no Brasil nas últimas duas décadas e meia, período em que se processaram as tentativas mais amplas e significativas de mudanças das práticas nesse campo. Mas cada uma delas foi pensada e gestada em um processo distinto de articulação, e em todas elas o/a grande ausente é o/a intelectual indígena.

    Em contrapartida, em 1995 realizou-se o primeiro Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), como parte da programação do 10º Congresso de Leitura do Brasil (Cole) (2). Desde então, a cada dois anos, sempre integrado ao Cole, foram realizados seis daqueles encontros. No primeiro, com pouquíssimos recursos, a participação indígena esteve restrita à presença de apenas três professores índios – que compuseram a mesa-redonda "Autonomia das escolas indígenas: a posição dos professores índios" – mas nos encontros posteriores a presença e participação de professores e professoras indígenas de todo o país foi incrementando-se a cada ano (3).

     

     

    Dos seis encontros referidos, quatro resultaram em publicações importantes, entre outros motivos, porque constituem uma trajetória de mais de um década, naquele que é o único evento periódico aberto, de âmbito nacional, sobre educação escolar indígena. Mais que isso, é o único que não se constitui em encontro de professores indígenas com presença de assessores não-índios, nem é encontro de especialistas não-índios com participação de índios convidados, mas efetivamente um encontro de intelectuais índios e não-índios em torno de um tema de interesse comum. Os livros resultantes daqueles encontros são: Leitura e escrita em escolas indígenas, organizado por Wilmar D'Angelis e Juracilda Veiga (ALB, Mercado de Letras, 1997); Questões de educação escolar indígena: da formação do professor ao projeto de escola, organizado por Juracilda Veiga e Andrés Salanova (Núcleo de Cultura e Educação Indígena da ALB, Dedoc-Funai, 2001); Escola indígena, identidade étnica e autonomia, organizado por Juracilda Veiga e Wilmar D'Angelis (Núcleo de Cultura e Educação Indígena da ALB, IEL-Unicamp, 2003); Desafios atuais da educação escolar indígena, organizado por Juracilda Veiga e Maria Beatriz Rocha Ferreira (Núcleo de Cultura e Educação Indígena da ALB, Secr. Nac. de Desenvolvimento do Esporte e do Lazer/Ministério do Esporte, 2005).

    No conjunto desses quatro livros resultantes dos Encontros sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas, foram publicados 25 textos assinados por intelectuais indígenas. Destaque-se que, somente no último dos livros acima, dos 29 autores que assinam textos, 14 são professores indígenas (e desses, 9 são mulheres) (4).

    FALTA VER O LUAR É evidente que as reflexões e propostas para a educação escolar indígena vão continuar existindo, enquanto existir essa prática. No entanto, o que se quer destacar aqui é que, em nosso modo de ver, o que já não falta são propostas ou discursos sobre "como deve ser" essa escola indígena (5), mas grande parte delas não faz senão ecoar um discurso que já é o senso-comum nesse campo. Nele não faltam "brilhantes" proposições do tipo: a educação escolar indígena deve ser "específica e diferenciada"; a escola indígena deve respeitar a cultura da comunidade; a escola indígena deve resgatar a cultura; a escola indígena deve valorizar a língua indígena; os velhos devem ser levados à escola indígena para transmitir seus conhecimentos.

    Essas afirmações têm, hoje, tanto poder de produzir mudanças quanto um provérbio. Para não mencionar o que, em algumas delas, constituem também equívocos. Mas não é incomum que sejam essas e mais meia dúzia de afirmações do mesmo gênero que constituam toda a bagagem "diferenciada" de muitos consultores, assessores e formadores de professores indígenas pelo país afora. E os programas que assessoram, como esperado, não vão além disso.

    Nas publicações mencionadas na seção anterior, de modo geral, não aparecem balanços e avaliações críticas dos projetos e experiências escolares em andamento. É comum, ao contrário, que na maioria das publicações as avaliações sejam otimistas e esperançosas (quando não, ufanistas). As razões são várias: há disputa entre indigenismos e entre entidades indigenistas; há financiamentos (às vezes, do exterior) a justificar; mas há, também, amadorismo de antropólogos, lingüistas, indigenistas sem formação e agentes de governos falando – com pouco conhecimento – de educação, sem deixar de mencionar amadorismo também de pedagogos sem experiência indigenista nem conhecimento antropológico ou lingüístico.

    No entanto, é justamente do que se ressente, no momento, a reflexão sobre educação escolar em sociedades indígenas, a saber: de amplas e fundamentadas avaliações críticas.

    Numa leitura do macro-contexto das iniciativas em educação escolar indígena no Brasil, nossa percepção é de que o ideal de uma "educação indígena" no formato escolar, ou de uma escola no formato "indígena", é efetivamente uma impossibilidade. As exceções invariavelmente têm vida curta. A escola – essa é a grande constatação (que alguns críticos, possivelmente, diriam que é algo que se poderia saber de antemão) – não consegue não ser um aparelho do Estado. A começar por um elemento chave de grande parte dos problemas encontrados nas escolas indígenas: o assalariamento, tanto de professores como de funcionários diversos (merendeiras, vigilantes, faxineiras, etc).

    Uma vez instalada a escola em uma comunidade indígena, as iniciativas seguintes da comunidade (no contexto político que se inicia na década de 1990) são no sentido de garantir o número maior de empregos para a aldeia (isto é, o maior número possível de entradas regulares em dinheiro, na comunidade). Em alguns lugares a questão nem se coloca como problema; em outras, foi (ou é) necessária ainda uma disputa com os regionais não-índios (ou porque já eram professores na área indígena, ou porque dominam a máquina oficial que nomeia funcionários).

    Esgotadas as possibilidades, no primeiro momento, assim que possível surgirão demandas para garantir a ampliação daqueles cargos: são divididas as turmas e horários, e se ampliam as séries, com um mínimo de alunos, até chegar à implantação de todas as séries do ensino fundamental. Em alguns lugares, a demanda já é pelo ensino médio.

    Desse modo, introduz-se (ou reforça-se) aí, por conta das mesmas motivações iniciais, o problema da "seriação" (6). A escola passa a justificar-se por si mesma: não há mais um projeto claro do que fazer com o ensino, ou de qual ensino é útil e necessário para sustentá-la. Em outras palavras, se uma "escola indígena" existisse, com objetivos bem definidos em relação ao desenvolvimento de competências lingüísticas (em língua indígena e na língua oficial do país), tanto na oralidade como na escrita, e em relação à preparação das novas gerações para suas relações com a sociedade nacional brasileira, isso não implicaria, necessariamente, em um programa de ensino fundamental de oito (ou nove) séries. Mas a seriação coloca cada série escolar em relação à seguinte, e a evasão escolar (já que muitos pais também não vêem sentido nessa continuidade sem fim definido) passa a ser um problema para os professores, diretores de escola e, em geral, também para as lideranças da comunidade (por exemplo, os caciques que, em muitos casos, dão a última palavra quanto aos nomes das contratações) (7). Há casos em que a falta continuada da criança à escola, leva autoridades indígenas a determinar punições aos pais.

    E no que mais a escola, que se queria "indígena", faz o papel do Estado? Na exigência da disciplina e do cumprimento dos horários, e na forte prevalência, na maioria delas, da língua portuguesa. Mas também na sua imposição silenciosa, mas decisiva, da seriação que remete a criança indígena à continuidade em escolas da cidade.

    Não se trata de negar que as comunidades indígenas tenham ou possam ter acesso à continuidade do ensino escolar para seus filhos. O que se quer chamar a atenção é para duas coisas: (a) o de um processo invertido, que é o da presença da escola induzindo as comunidades à seriação e continuidade escolar, e é bom lembrar que, depois das Diretrizes do MEC de 1993 (e em alguns casos, depois da Resolução 3 do Conselho Nacional de Educação, de 1999), em muitos estados se assistiu (em alguns, ainda ocorre) uma pressão forte sobre as comunidades indígenas para formar professores e implantar escolas; (b) a predominância (pelo papel central de consultores, assessores e formadores não-índios) da perspectiva liberal individualista, própria da nossa sociedade, que julga (moralmente) indispensável oferecer a todos (os indivíduos) as mesmas oportunidades, donde não se admitir que a seriação escolar não esteja disponível ou acessível a todas as crianças indígenas. Em outras palavras, porque cinco ou seis indígenas podem desejar ter acesso ao ensino superior, isso deve nortear, desde logo, todo o programa de educação escolar de um povo ou comunidade de duzentas, mil ou duas mil pessoas.

    O que me incomoda, pois, é a visão superficial com que se tratam esses e outros fatos relacionados, que compõem as feições de parte considerável dos programas de educação escolar indígena no país, de modo que se continue propalando, quase ingenuamente, as belezas e benesses das "escolas indígenas".

    Numa dessas "visões otimistas", a que me referi acima, há pouco tempo uma antropóloga atuante em um programa de formação de professores índios sugeriu, numa entrevista, que a escola na comunidade indígena representa, entre outras coisas, lugar de "aquisição de instrumentos de análise" do mundo dos não-índios (a sociedade dominante). Quantos de nós conhece escolas que cumprem esse papel, indígenas ou não? E por que motivos uma comunidade indígena precisaria de escola para saber ou transmitir isso?

    Lembro sempre de uma circunstância, ocorrida em 2000, quando numa aldeia Guarani os "consultores" não-índios promoveram um pequeno evento, junto com a comunidade, para lembrar os famigerados "500 anos". Um amigo meu, que vivenciou a experiência, contou que esteve lá e, conforme a programação, fez uma longa fala sobre os sofrimentos ou padecimentos dos povos indígenas desde a chegada, nessas terras, de Cabral e sua comitiva em 1500. Ao final, o cacique Guarani chegou-se a ele e disse algo mais ou menos nesse sentido: "Foi muito bom o que você falou, é isso mesmo. Mas tudo isso nós já sabemos. O que eu queria saber é por que vocês vieram para essa terra?" Para mim, se a escola em área indígena fosse capaz de responder a essa pergunta e a outras tantas perguntas como essa, ela realmente cumpriria o que a antropóloga sugere. Mas a pergunta anterior permanece: alguma escola indígena faz isso? E as comunidades indígenas precisam de escola para isso?

    Há muito tempo defendi a necessidade de se garantir, às comunidades indígenas que assim o entendessem, o direito à não-escola. Mas a escola é tão importante para o Estado (e não me refiro somente aos representantes governamentais do Estado, também incluo aí as missões e as ONGs) (8) que essa possibilidade se torna, dia a dia, mais difícil de realizar-se. Quero defender, aqui – para finalizar essa breve provocação à necessidade de simplesmente olhar o que de fato está acontecendo nos programas de educação escolar em áreas indígenas – a urgência de se ampliar os espaços e oportunidades de manifestação e discussão de educadores e intelectuais indígenas, preferencialmente sem o monitoramento ou controle da agenda pelo Estado. A maior contribuição dos Encontros sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas talvez seja essa: de mostrar que os intelectuais indígenas precisam de oportunidades para pensar e falar sobre a educação escolar indígena vis-à-vis com os intelectuais não-índios.

    E é o caso de insistir que os intelectuais indígenas que freqüentam as reuniões e debates sobre o tema convidem aqueles velhos "analfabetos" das aldeias para, no ritmo indígena, ir ver o luar (9). E ali perguntar-lhes duas coisas: por que, afinal, existe uma escola em nossa aldeia? O que vai ser da nossa gente, da nossa vida e da nossa cultura, quando todos freqüentarem escolas, na aldeia e fora da aldeia?

     

    Wilmar da Rocha D'Angelis é lingüista e indigenista, professor do Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp, desde 1994.

     

     

    NOTAS

    1. Em 1997 veio à luz, embora sendo anais de um congresso, uma reunião de trabalhos em "Ameríndia – Anais da Conferência Ameríndia de Educação". Cuiabá: Secr. de Estado de Educação.

    2. O Cole, Congresso de Leitura do Brasil, é um evento periódico (bienal) de âmbito nacional, criado e organizado pela Associação de Leitura do Brasil (ALB) na década de 1970, e nos últimos anos também co-promovido pela Unicamp. A partir de 1995 os Encontros sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas foram organizados e promovidos pelo Núcleo de Cultura e Educação Indígena da ALB, que em 2006 tornou-se uma entidade autônoma com a denominação Kamuri – Núcleo de Cultura, Educação, Etno-desenvolvimento e Ação Ambiental.

    3. Por razões econômicas, a participação de professores/as indígenas da Amazônia e do Nordeste sempre foi mais restrita. Do Nordeste, sobretudo, tem sido pouquíssimo expressiva, mas da Amazônia chegou a 20 participantes em 2005.

    4. É importante registrar, também, que as participações de expositores indígenas nos mencionados encontros vão além dos textos publicados. Há diversas apresentações em comunicações (de índios e de não-índios) que, por falta de espaço e recursos, não aparecem nos livros publicados.

    5. Uma boa medida do "mesmismo" ou da "mesmice" que grassa nas secretarias de educação dos estados, pelo país afora, é deparar-se, em um programa ou relatório de encontro ou curso com professores indígenas, com a seguinte atividade em grupos: "A escola que temos e a escola que queremos". Tenho dúvidas em chamar de educadores aos condutores desse tipo de encaminhamento, mas é comum que sejam pedagogos.

    6. Obviamente, não é apenas em função de aumentar cargos de professor que as comunidades lutam pela implementação do ensino fundamental completo nas aldeias. Trata-se de um conjunto de fatores que se somam.

    7. Para não mencionar os casos de corrupção, em que a indicação do cacique, decisiva para a contratação pela diretoria de ensino, custa uma "contribuição" (às vezes, mensal) do professor interessado.

    8. Ainda que sejam "não-governamentais" (embora algumas, nem tanto), as ONGs integram o conjunto dos aparatos da organização do Estado, seja por seu funcionamento jurídico e por regalias garantidas em legislação, seja pelos recursos captados no país ou no exterior (mesmo quando de pessoas físicas ou jurídicas que os atrelam a abatimento de impostos), seja por suas finalidades e ações intervencionistas em sociedades ou comunidades minoritárias ou fragilizadas.

    9. Coloco a palavra analfabetos entre aspas porque, em si, ela só faz sentido em sociedades letradas e de uma perspectiva preconceituosa, nessas sociedades, contra os que não dominam ou não aderem ao domínio da escrita.