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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.4 São Paulo oct. 2008

     

     

    DIÁLOGO INTERCULTURAL E DIREITO INDÍGENA

    Tatiana Azambuja Ujacow Martins

     

    Durante as fases da conquista, exploração e colonização do Novo Mundo, o colonizador impôs suas práticas jurídicas, educacionais e culturais, recusando-se a assimilar qualquer conceito diverso de seus paradigmas e cultura, e a acatar outros saberes.

    A preponderância do saber dos conquistadores legitimava apenas as práticas de sua cultura, e os conquistados, sobretudo os indígenas, detentores de uma cultura milenar, vistos como seres exóticos, predestinaram-se à incorporação progressiva à sociedade ocidental. Imbuídos de uma pretensa superioridade cultural, os então soberanos abstiveram-se de saberes únicos, de riqueza ímpar.

    Passados os anos, percebeu-se que os indígenas tinham normas de respeito à natureza, conhecimento sobre cura de doenças por manejo natural e uso de plantas medicinais, práticas essas só aceitas por grupos muito restritos. À maioria dos cientistas o que interessava eram as descobertas laboratoriais, as drogas sintetizadas, as soluções industrializadas, os avanços científico e tecnológico, concebidos como grande evolução em que quase sempre se imiscui uma força política ou econômica.

    Após séculos nesse rumo, emergem-se temas, antes não abordados ou não preocupantes entre os que se intitulavam detentores dos modelos que a humanidade deveria seguir. O mundo percebeu que o crescimento desenfreado sem respeito à natureza poderia acabar em um grande cataclismo e extinguir a própria raça humana.

    E isso vem ocorrendo progressiva e acintosamente, culminando no aquecimento global, reflexo do distanciamento homem-natureza, do qual decorrem as mais diversas formas de destruição do planeta. Passou-se a refletir e indagar sobre como não aniquilar a Terra. Ao pesquisarem áreas ainda preservadas, dentre as conclusões aponta-se para a herança cultural dos indígenas, plena de sistema de preservação ambiental, prático e eficaz para servir-se da natureza sem depredá-la.

    Portanto, aqueles nativos, a quem os descobridores julgaram sem fé, rei e crença, são os povos capazes de ensinar a cuidar, respeitar e preservar a Terra para as futuras gerações, pois para eles a terra é mãe e respeitá-la é premissa de sobrevivência. Percebe-se, então, que o futuro da humanidade depende de experiências multiculturais. É premente a descolonização, o que significa quebra de domínio e estabelecimento de diálogo entre culturas distintas.

    Vive-se, hoje, uma crise de paradigmas, contexto em que se devem buscar convergências que levem ao respeito à cultura alheia e à assimilação de práticas, de vivências há muito desprezadas e desrespeitadas sob o manto do processo de colonização.

    A par desse novo direcionamento, a cultura preponderante do colonizador até hoje tenta impedir que os povos indígenas sejam os protagonistas de sua história. Muitas comunidades indígenas que buscam a demonstração e a efetivação de seu direito, de suas regras de conduta, sofrem restrições e retaliações, vêem-se em caminhos que não lhes asseguram qualquer escolha e representam rumos desconhecidos ou não desejados.

    Esclarece Carlos Rodrigues Brandão (1) que a educação do colonizador, que contém o saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de domínio, na verdade não serve para ser a educação do colonizado, pois este, embora dominado, também possui sua educação, em seu mundo, dentro de sua cultura. Se a educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos sociais, e se sua missão é transformar sujeitos e mundos em algo melhor, de acordo com as imagens que se têm de uns e de outros, na prática a mesma educação que ensina pode deseducar e correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz ou do que inventa que pode fazer.

    Na construção de um conhecimento multicultural, para Boaventura de Sousa Santos (2), há duas dificuldades: o silêncio e a diferença. O domínio global da ciência moderna como conhecimento regulação acarretou consigo a destruição de muitas formas de saber, sobretudo daquelas próprias dos povos que foram objeto do colonialismo ocidental. Isso produziu silêncios que tornaram impronunciáveis as necessidades e as aspirações dos povos ou grupos sociais cujas formas de saber foram objeto de destruição e, sob a capa dos valores universais autorizados pela razão, foi de fato imposta a razão de uma "raça", de um sexo e de uma classe social.

    Esse silêncio, no que tange aos povos indígenas, seguramente foi mais profundo e mais devastador. Muitos pesquisadores, tentando explicar os fenômenos sociais, culturais e jurídicos dos indígenas, procuravam adaptar suas descobertas a conceitos acadêmicos prévios e amoldar o que encontravam às suas próprias visões sobre o contexto indígena, o qual domina um conteúdo de sabedoria intangível e cujo viver não se desagrega da espiritualidade, da integração com a natureza, da cosmovisão que lhe é ínsita.

    Entre os indígenas, transmite-se o saber às novas gerações, e emergem de cada etnia as relações de poder, coletivo, baseado no diálogo para a solução dos conflitos. Todavia, nem sempre isso ocorre como na cultura tradicional: há locais do Brasil onde a proximidade das reservas indígenas com as cidades é pequena, casos em que há intromissões graves na distribuição e legitimidade desse poder.

     

     

    Nesse contexto, desequilibram-se as relações, pois, como lembra Hannah Arendt (3), o poder só se efetiva enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.

    Essa interferência do não-índio nos sistemas internos das comunidades indígenas leva a desavenças na disputa pelo poder, as quais levam à desarticulação das lideranças tradicionais e ao desrespeito à tradição desses povos, além de vários conflitos gerados pelo contato entre etnias com línguas, costumes e direitos diferentes o que, muitas vezes, resulta em uma desagregação cultural tão grande, fazendo surgir problemas variados, como alcoolismo, consumo de drogas, culminado na prática de crimes e suicídios.

    Percebe-se, assim, que esses problemas estariam intrinsecamente ligados à morte da cultura indígena. É o que se conclui pela voz de um cacique Guarani-Nhandeva que, explicando sobre o suicídio, revela: "todos os que mantêm a cultura não se enforcam, todas as pessoas que se enforcam foram desviadas dos cantos, da cultura ..." (4).

    O distanciamento da cultura, com a imposição de normas de conduta distintas, afasta o "modo de ser" indígena, causando a perda de identidade.

    Os povos indígenas possuem seu sistema jurídico próprio, seu direito, direito consuetudinário, baseado em costumes, tradição, e independe de leis escritas, pois são transmitidos e aplicados oralmente, reconhecidos e compartilhados pela coletividade.

    Porém, quando regras, valores e princípios dos povos indígenas divergem da cultura imposta pelo não-índio, há pressões externas que impedem a essa comunidade buscar soluções adequadas para seus próprios conflitos e, sem um consenso para o bem viver com respeito mútuo à cultura alheia, oprime-se esse povo que se sujeita novamente à vontade do "mais forte". Assim, não ocorre a efetivação do direito, pois não há realização da justiça.

    E justiça, conforme lembra Roberto Lyra Filho (5), é, antes de tudo, justiça social, é atualização dos princípios condutores, emergindo das lutas sociais, para levar à criação de uma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem. Para ele, o direito não é uma coisa acabada, é um vir-a-ser, é um processo, dentro do processo histórico, que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas.

    Portanto, não se pode conceber o direito como uma ordem estanque, aprisionado em seus próprios dogmas, distanciado da realidade social e da diversidade cultural dos povos.

    Na 2ª sessão da Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 1947, Jacques Maritain asseverou que cada povo deve empenhar-se em compreender a psicologia, o desenvolvimento e as tradições, as necessidades materiais e morais, a dignidade própria e a vocação histórica dos outros povos; que este despertar da compreensão mútua corresponde a uma necessidade de salvação num mundo que daqui por diante é um só para a vida e para a morte (6).

    Segundo Jüngen Habermas (7), uma cultura majoritária, no exercício do poder político, ao impingir às minorias sua forma de vida, está negando aos cidadãos de origem cultural diversa uma efetiva igualdade de direitos. E o direito, por intervir em questões ético-políticas, toca a integridade das formas de vida dentro das quais está enfronhada a configuração pessoal de cada vida, pois os cidadãos não são indivíduos abstratos, amputados de suas relações de origem.

    Ao se imputar as regras da cultura majoritária a povos culturalmente distintos, desprezando seu direito, estão se estabelecendo padrões que não partem de sua cultura e, portanto, não terão legitimidade. Isso afasta a própria cultura e desvirtua princípios milenares, provoca uma ruptura na estrutura social, que se sedimenta em valores coletivos. Estes hoje, expressos nos mais variados diplomas legais, pois desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos e outros instrumentos legislativos correlatos, tem-se ressaltado, cada vez mais, a importância dos direitos coletivos, contexto em que há uma evolução na discussão e adoção de novos princípios concernentes aos direitos fundamentais dos povos indígenas.

    A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) relativa aos Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes (8), assegurou o respeito à identidade indígena, estabelecendo, em seu artigo 2°, que os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e garantir o respeito pela sua integridade, incluindo medidas que lhes assegurem o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população; promover a plena efetividade dos seus direitos sociais, econômicos e culturais, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições; ajudar a eliminar as diferenças socioeconômicas que possam existir entre os membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida.

    A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispôs em seu artigo 231 que "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens"(9).

    Percebe-se que a Constituição reconheceu a diversidade étnico-cultural dos povos indígenas, não sendo mais considerada cultura em extinção, fadada à incorporação na denominada "comunhão nacional". A Carta Magna assegura uma interação entre os povos indígenas e a sociedade envolvente em condições de igualdade, que se funda na garantia do direito à diferença (10).

    O texto constitucional e a Convenção n.169 remetem ao respeito aos povos indígenas, assegurando, pelo reconhecimento de sua tradição milenar, seu direito e dignidade como povo. E, para o indígena, isso engloba a dignidade do seu grupo social. Significa ter saúde, educação com respeito a seu processo educacional, meio ambiente equilibrado, seu espaço e a terra em que tira seu sustento e afirma sua espiritualidade; participar da sociedade envolvente em igualdade de condições e oportunidades, se assim o desejar, numa interculturalidade, sem que jamais signifique desaparecimento ou negação de sua própria cultura (11).

    Os novos tempos exigem um novo papel nas nações, o de não mais substituir a vontade e as aspirações dos povos indígenas, mas sim trocar experiências e lutar para que as garantias expressas na legislação e os direitos que emergem da sua tradição, o direito indígena, sejam efetivamente concretizados.

    Se a ciência pretende solucionar os problemas sobre a preservação da vida humana, não pode, pois, ignorar a sabedoria milenar, as manifestações culturais de povos com sistemas de conduta próprios. E o Estado brasileiro, com a imensa diversidade étnica e cultural de que dispõe, não pode mais cerrar os olhos para esse cenário e deve se afigurar extremamente atrelado à cultura de um povo formado por tantas miscigenações.

    É tempo de libertação das amarras seculares que escravizam, que discriminam, que oprimem e impedem ao homem perceber que o futuro da Terra depende da sua disposição em conjugar esforços e trocar experiências entre todos os povos, tendo como norte o respeito mútuo, sem interferências ou ingerências de outras demandas e interesses que não atendam ao bem comum.

     

    Tatiana Azambuja Ujacow Martins é advogada, professora do Centro Universitário da Grande Dourados, professora colaboradora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), professora convidada no "Diplomado de Post Título en Derechos Indígenas" na cátedra indígena da Universidad Indígena Intercultural, e pesquisadora da questão indígena. Membro do Comitê Intertribal Memória e Ciência Indígena (ITC) e do Parlamento Indígena do Pantanal.

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E NOTAS

    1. Brandão, C. R. O que é educação? Brasiliense, São Paulo, ed. 25, 1989.

    2. Santos, B. de S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Cortez, São Paulo, 2000.

    3. Arendt, H. A condição humana. Forense Universitária, Rio de Janeiro, ed. 10, 2001.

    4. Ujacow Martins, T. A. Direito ao pão novo: o princípio da dignidade humana e a efetivação do direito indígena. Pillares, São Paulo, 2005.

    5. Lyra Filho, R. O que é direito? Brasiliense, São Paulo, 1999.

    6. Maritain, J. Discurso na segunda sessão da Conferência Geral da Unesco, 1947. In: Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, "O direito de ser homem". Conquista, Rio de Janeiro, 1972.

    7. Habermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Edições Loyola, São Paulo, 2002.

    8. Convenção n. 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes aprovada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 27 de junho de 1989. O governo brasileiro depositou o instrumento que a ratificou, em 25 de julho de 2002, tendo sido promulgada pelo Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004.

    9. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

    10. Ujacow Martins, T. A. Direito ao pão novo: o princípio da dignidade humana e a efetivação do direito indígena. Pillares, São Paulo, 2005.

    11. Idem, ibidem.