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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.4 São Paulo out. 2008

     

     

    POR QUE VALORIZAR PATRIMÔNIOS CULTURAIS INDÍGENAS?

    Dominique Tilkin Gallois

     

    Em todos os continentes, os povos indígenas continuam sofrendo intensa discriminação, com impactos agravados quando se encontram em situação de minorias, étnicas e lingüísticas. O próprio desconhecimento a respeito da diversidade desses povos, que representam hoje cerca de 350 milhões de pessoas, 4% da população mundial, acentua ainda mais esse quadro. Nas Américas, são 50 milhões, vivendo situações muito diversas em cada país. No Brasil, o censo realizado pelo IBGE em 2000 surpreendeu, quando mais de 700 mil pessoas se declararam "indígenas", abrangendo um numeroso contingente indígena que vive em centros urbanos. Mas a maior parte da população brasileira considera que os índios ainda estão "em vias de desaparecimento" e delega ao Estado a responsabilidade de seu destino. Um destino que se costuma taxar de incerto, recomendando-se ora sua "integração", ora sua "preservação".

    O fato é que os índios saíram do isolamento, integrados como estão aos sistemas sociais, econômicos e políticos, em âmbito regional ou nacional. Uma integração que se realiza por meio de relações profundamente desiguais, às vezes no limite da exclusão. Enquanto minorias, os povos indígenas se vêem forçados a negociar constantemente seus interesses diferenciados com as mais diversas instâncias de poder, locais, nacionais e internacionais. Nesses contextos, aprenderam a gerir tanto suas especificidades culturais quanto seu posicionamento face às exigências do desenvolvimento. É por este motivo que se costuma afirmar que os povos indígenas lutam "a favor" e "contra" o desenvolvimento. A favor, quando reivindicam acesso aos serviços básicos de educação e saúde. Contra, quando reivindicam garantias territoriais e procuram explicitar e defender suas diferenças culturais. Mas é também internamente a suas comunidades que ocorrem tensões decorrentes da insidiosa discriminação a que são submetidos.

    COMO PROTEGER BENS IMATERIAIS INDÍGENAS? Centenas de projetos de valorização cultural estão em curso dentro e fora das aldeias. Estratégias estão sendo testadas, com a colaboração de programas supranacionais e de órgãos nacionais, universidades, organizações indígenas, organizações não-governamentais, formando um painel ainda frágil de experimentos, muitas vezes contraditórios. As dificuldades remetem, sobretudo, às condições disponibilizadas para a proteção dos patrimônios imateriais indígenas, que flutuam em acordo com os contextos políticos e econômicos. Assim, a adequação das medidas de proteção envolve, sempre, complexas negociações.

    Como se sabe, os procedimentos de "conservação" habitualmente utilizados para a proteção do patrimônio material não são adequados à preservação do patrimônio imaterial, que exige um conjunto muito mais complexo de procedimentos. A prática do "tombamento", que visa garantir a integridade física e as características originais de um monumento histórico ou de uma obra artística, não se aplica aos conhecimentos e manifestações culturais intangíveis, cujo valor reside justamente na capacidade de transformação dos saberes e modos de fazer. Neste caso, ao invés do tombamento, são recomendadas medidas de "salvaguarda". Em acordo com as definições oficiais difundidas pela Unesco (1), entende-se por "salvaguarda" as ações que procuram assegurar a viabilidade e durabilidade do patrimônio cultural imaterial, incluindo sua identificação, documentação, investigação, preservação, além de sua proteção, promoção, valorização, transmissão – efetuada através do ensino formal e não formal – e a revitalização desse patrimônio em seus diferentes aspectos.

    Tanto a identificação – ou seja, a seleção e o inventário de elementos culturais relevantes para um registro ou para uma ação de difusão – como as medidas adotadas para sua proteção e sua valorização, colocam imediatamente em pauta uma série de desafios que consideramos interessante resumir, mesmo que brevemente, citando dificuldades de três ordens: quem são os agentes responsáveis pelo inventário dessas tradições culturais? Quem tem o poder de escolher entre uma ou outra tradição, entre uma ou outra comunidade? O que se pretende preservar numa tradição: as produções, o registro dessas produções ou seus meios de expressão?

    QUEM SE RESPONSABILIZA POR UM INVENTÁRIO? Priorizar a ampla difusão ou enfatizar a capacitação local é uma diferença sensível, na discussão desses programas e na realização de inventários de tradições e manifestações culturais. Quem assume a responsabilidade de um inventário cultural? Especialistas acadêmicos ou as próprias comunidades?

    Os primeiros programas de salvaguarda de tradições indígenas apoiados pela Unesco, no início desta década, revelam uma variação no peso dado às ações de sensibilização e divulgação, em detrimento de atividades de capacitação comunitária. Muito recentemente, vem se dando maior importância às ações educativas, para promover não apenas o bem cultural imaterial, mas seus detentores. Acentua-se o interesse em promover tanto os líderes como os jovens dessas comunidades, quando estão interessados em fortalecer sua cultura. Efetivamente, participar não significa "assistir" ao processo de valorização.

    A participação comunitária na proteção e promoção de tradições culturais constitui atualmente o eixo central do conceito de salvaguarda. A igualdade de acesso aos procedimentos de preservação, sua descentralização e sua adaptação dinâmica às situações locais sendo determinantes para o sucesso dessas políticas (2). E há experiências interessantes nesse sentido, no Brasil. Programas desenvolvidos por organizações não-governamentais junto aos índios do Acre, Amapá, Amazonas, Tocantins, Parque Indígena do Xingu, investem na capacitação, permitindo que membros dessas comunidades ocupem um lugar de destaque nas atividades de registro de suas próprias tradições.

    Essas ações de valorização de saberes e de práticas culturais tradicionais se apóiam, necessariamente, na escrita e em outras técnicas de registro. Engajam novos agentes de transmissão, como os indivíduos mais jovens das próprias comunidades, interessados no domínio dessas novas tecnologias. E é por esse motivo que devemos considerar que qualquer inventário do patrimônio cultural imaterial sempre abarca tanto aspectos "novos" quanto "tradicionais". Essa é mais uma razão para valorizar esse patrimônio, que definitivamente não se define como um receptáculo de experiências do passado, mas como um espaço para a interação e o diálogo entre culturas.

    Se a capacitação é, sem dúvida, indispensável para que membros de uma comunidade façam registros de seu patrimônio imaterial, essa formação precisa se adequar às demandas locais, que podem estar voltadas para as mais diferentes ou surpreendentes mediações. Tal adequação depende de estratégias mais políticas do que técnicas, fazendo com que a adesão inicial possa se converter num engajamento duradouro da comunidade – ou de boa parte dos seus membros – na implementação de todas as etapas do processo de registro e de valorização. Por este motivo, em acordo com as recomendações de especialistas que assessoram a Unesco, a participação comunitária não se limita ao acompanhamento ativo das ações, mas à autoria explícita, na seleção, no registro e na documentação dos elementos culturais que se pretende salvaguardar. Os critérios para julgar a "autenticidade" de uma manifestação ou expressão cultural só podem ser definidos no seu contexto local de uso, ou seja, depende das interpretações dos próprios indígenas.

    A participação da comunidade não se limita, portanto, a aprender novas técnicas de documentação. Trata-se de um investimento que mobiliza todos os aspectos de uma cultura, desde os modos de percepção, interpretação, construção e uso. Pois o registro não é uma ação isolada, nem suficiente e seus procedimentos devem ser constantemente negociados para atender demandas renovadas que surgem ao longo das sucessivas etapas de um plano de salvaguarda. Um processo sempre muito demorado, além de complexo, em função das tensões políticas que podem surgir, tanto no seio de uma comunidade, como nas suas relações com a sociedade mais ampla.

    PARA QUEM DOCUMENTAR TRADIÇÕES CULTURAIS? As ações de documentação de tradições culturais ocupam um lugar predominante nos programas de salvaguarda. Mas levantam uma série de questionamentos. No caso do patrimônio imaterial, qual a função da documentação? É um fim, ou é um meio?

     

     

    Essas indagações alimentam a maior parte das críticas feitas por antropólogos e lingüistas a muitos planos de salvaguarda de tradições orais indígenas. Como explica Aurore Monod Becquelin (3), "é mais fácil armazenar gigas de arquivos do que preservar o uso de uma língua, uma atitude que exige esforços políticos, financeiros, humanos muito mais elevados; se as tradições orais fossem apenas um ato de conservação, então bastaria recolher, registrar, transcrever, eventualmente traduzir, documentar para salvar – na tela mundial da internet ou nos museus e universidades – tudo que se pode ainda salvar deste naufrágio".

    Mas muitos estudiosos do patrimônio imaterial indígena defendem a necessidade e mesmo a urgência de sua documentação, apresentando outra indagação: o conhecimento tradicional é mais bem preservado quando mantido sob segredo, ou reservado para uso exclusivamente local? Ou ele se fortalece quando é mostrado, explicado, traduzido e defendido com a ativa participação de seus detentores nas ações de difusão? O número crescente de publicações, de exposições, de websites, etc, criados ou mantidos por indígenas revela seu interesse na apropriação de novas mídias para expressar suas particularidades culturais. De acordo com Kurin (4), defender sua cultura consiste em perceber que "se o mundo no qual estou vivendo se ampliou, ainda tenho meu próprio lugar nesse mundo". Os inventários, nessa perspectiva, abrem espaço às culturas indígenas no mapa das culturas do mundo. Mas, por si só, não garantem nem a sobrevivência nem a continuidade de uma prática cultural.

    Por outro lado, a difusão ampliada de saberes e de costumes diferenciados não se faz sem riscos. Até recentemente, no Brasil, o apoio fornecido por instituições privadas ou públicas ao chamado "resgate cultural" centrava-se na produção de discos, documentários, calendários, artesanato, performances, configurados para o entretenimento de um público urbano, com algum retorno financeiro para os participantes indígenas. A visibilidade dos realizadores nem sempre repercute internamente na valorização dos saberes tradicionais. Como se sabe, o que se resgata para um público externo é, necessariamente, muito diferente do que se planeja valorizar "em casa".

    Como alertava Goody (5), "toda alteração no sistema de comunicação humana tem necessariamente repercussões no conteúdo transmitido". Mesmo antes de ser difundido, o próprio registro, a inscrição de uma tradição em uma nova mídia, fora do seu contexto de uso, trará alterações significativas. É indispensável levar em conta as repercussões de que nos fala Goody, para controlar os procedimentos de registro e documentação e avaliar seus impactos na dinâmica própria da transmissão de saberes e práticas tradicionais. Os registros e sua inserção em inventários constituem de fato "memórias adicionais", ou "artificiais", que podem auxiliar aos propósitos de fortalecimento cultural de comunidades indígenas. Mas, sozinhos, não constituem uma salvaguarda do patrimônio imaterial.

    COMO REGISTRAR A ORIGEM E A TRANSFORMAÇÃO DAS TRADIÇÕES? "A memória em jogo na tradição oral não é apenas conservação. Ela é tratamento da percepção, tensão entre perenidade e flexibilidade, utensílio para a construção, produto de um ethos. Ela não é um saco de antiguidades, mas segue a história coletiva e as intencionalidades". Becquelin (3) aponta, aqui, para um aspecto essencial nas tradições indígenas, que possuem sua própria história e estão diretamente relacionadas a experiências de interação social. São menos um testemunho do passado de uma determinada comunidade, do que o testemunho da história das trocas que essa comunidade manteve com outras.

    Isso nos traz de volta à questão da "origem" dos elementos culturais, que interessa abordar a partir das concepções indígenas. Os povos indígenas da Amazônia consideram que a maior parte de seus itens culturais foram adquiridos "de fora", concebendo sua cultura como o resultado de apropriações, de empréstimos. E é por terem sido apropriados de "outros", que esses elementos são valorizados. Esse ponto de visa torna muito mais complexo o ato do registro, que não poderá se restringir à descrição pura e simples de um saber, ou de uma técnica, mas das interpretações que a comunidade possui a respeito da origem dessa prática e do modo com foi transmitida e dinamicamente transformada até a atual geração. Essa é a abordagem adotada pelos antropólogos, cujos estudos focam menos traços e itens culturais que as relações sociais mediadas por esses itens culturais. Bens imateriais, como os bens materiais, circulam, sendo objeto de troca, de barganha, de lutas. São essas as relações que agregam valor aos itens culturais. Por isso, tanto a origem como as formas de apropriação e transformação de um elemento cultural, quando este passa de um lugar ao outro, devem ser cuidadosamente registradas.

    COMO DOCUMENTAR TRADIÇÕES VIVAS? Nos debates entre os especialistas que a Unesco costuma convocar para discutir estratégias de proteção do patrimônio cultural imaterial, volta-se freqüentemente à mesma pergunta: a quais tradições dar prioridade? Às mais ameaçadas ou às mais dinâmicas?

    Se um inventário de tradições culturais deve ser construído caso a caso, em acordo com interesses das comunidades, caberá a elas definir critérios para o registro. Além disso, se consideramos as alterações que o trabalho de registro pressupõe, essa escolha – entre tradições mais ou menos "vivas" – deixará de fazer sentido.

    Um inventário de tradições culturais remete diretamente a questões metodológicas relacionadas à produção de conhecimento. Entre essas questões, uma das mais interessantes é a relação entre conhecimento e prática. Outra, diz respeito à variação das tradições, no seio de uma mesma comunidade cultural.

    A inscrição de uma tradição – seja em forma escrita ou em formato audiovisual – representa uma nova forma de comunicação, constituindo-se em mais uma "versão" da tradição que se está registrando. O que essa nova "versão" da tradição, devidamente descrita, documentada e aparentemente "salva" num inventário, apresenta como vantagens? Quais são os benefícios para uma comunidade engajada no inventário de suas próprias tradições?

    Quer nos parecer que o processo de inventário do patrimônio cultural imaterial pode trazer muitos ganhos para uma comunidade, desde que ela esteja interessada no fortalecimento de sua cultura e identidade. Não são ganhos imediatos, nem muito visíveis, mas ganhos intelectuais, propriamente intangíveis. De fato, tanto o esforço de reflexão exigido por um inventário como os resultados alcançados, podem contribuir para a consolidação de formas próprias de conceber e construir o conhecimento. É nesse contexto que indígenas engajados em processos de documentação poderão destacar as idéias, lógicas, teorias que estão por trás dos conhecimentos documentados. Eles estarão, por essa via, contribuindo à discussão teórica do conhecimento indígena, construindo explicações a respeito desses saberes, revelando classificações e lógicas culturais das mais relevantes para a qualidade dos inventários.

    Se admitirmos que nessas experiências se deva registrar e documentar não só os "produtos acabados", mas os jeitos de conhecer, os estilos próprios usados para explicar uma tradição, as formas de transmissão e validação desses saberes, os membros da comunidade que estiverem participando de um inventário estarão capacitados a refletir, de modo muito mais eficaz, sobre os mecanismos de produção e transformação do saber. E, por conseguinte, se sentirão habilitados a efetuar comparações, no tempo e no espaço, avaliando com maior propriedade as ameaças que podem pairar sobre suas tradições culturais.

    Mas a elevada carga de preconceitos que ainda rodeia os saberes indígenas exige cautela, nos procedimentos e processos de reconhecimento dos patrimônios desses povos, que só fazem sentido quando se levam em consideração os contextos particulares. Muitos grupos indígenas opõem-se ao registro de seus conhecimentos, por temer a difusão inadequada de seus conteúdos. Aliás, um primeiro passo, sem dúvida indispensável, deveria propiciar aos índios a possibilidade de avaliar criticamente inventários de que já se dispõe a respeito de suas "tradições", especialmente quando os registros foram tão incipientes que não documentaram o contexto específico em que os saberes e práticas são utilizados.

    Ou seja, a documentação apresenta um sério risco de descontextualizar um bem imaterial. Como sabemos, é o contexto que garante sentido de uma tradição: um contexto de uso sempre acoplado a formas específicas de atualização, sem as quais essa mesma tradição se torna um bem inerte, sem valor para seus usuários. Manter um registro de elementos que já deixaram de fazer sentido para seus criadores não é, decididamente, o que os grupos indígenas parecem estar esperando de todo o conjunto de recomendações e de programas voltados à valorização de suas culturas. Ou, ao contrário, estarão eles liberando fragmentos de uma tradição abordada como "passado", disponibilizando tais fragmentos à febre corrente de registros? Dessa forma, possivelmente, estarão preservando para si a responsabilidade de transformar, no seu próprio ritmo, o que selecionarem como "sua tradição" para o futuro?

     

    Dominique Tilkin Gallois é docente do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII/USP). Pesquisa e assessora programas de valorização de patrimônios culturais indígenas no Amapá e norte do Pará.

    Este texto constitui uma versão atualizada da 3ª parte da brochura "Povos indígenas e patrimônio cultural imaterial" (Iepé, São Paulo, 2006).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Definições acordadas em 2002 pela reunião internacional de especialistas convocados pela Unesco. In: "Le patrimoine culturel immatériel, internationale de l'imaginaire", n.17, Maison des Cultures du Monde, pp.230-236, 2004.

    2. Unesco. Documento-base da reunião "Novas abordagens para a diversidade cultural: o papel das comunidades". Havana, fevereiro 2006.

    3. Becquelin, Aurore Monod. "La tradition orale n'est plus ce qu'elle était". Dossier Sciences Humaines, vol. 159, 2005.

    4. Kurin, R. "Immatériel, mais bien réel". Le Courrier de l'Unesco, setembro 2001.

    5. Goody, J. A domesticação do pensamento selvagem, Edições 70, Lisboa, 1997.