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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.4 São Paulo out. 2008

     

     

    AS FORMAÇÕES SOCIORRELIGIOSAS DA AMAZÔNIA INDÍGENA E SUAS TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS

    Robin M. Wright

     

    As pesquisas antropológicas recentes sobre as vidas sociais e religiosas dos povos indígenas das Terras Baixas sul-americanas ressaltam, por um lado, a importância das dimensões estética e emocional, ambas intimamente vinculadas aos saberes e valores morais, nos quais há um ideal explícito de "convivialidade harmoniosa", ou seja, um esforço ponderado de promover uma ética de compartilhamento e generosidade com os parentes. Este ideal, por outro lado, implica em uma luta constante, uma "síndrome de Sísifo", em que cada esforço de estabelecer o ideal de harmonia esbarra em forças que impedem sua realização – tais como a feitiçaria, a violência física ou simbólica, e outras formas de conflito. Portanto, temos de fato dois modelos propostos para compreender as vidas sociais e religiosas das sociedades indígenas amazônicas: um seria a chamada "economia moral de intimidade", em que as sociedades procuram estabelecer a convivialidade harmoniosa entre grupos de parentes consangüíneos – restringindo, por exemplo, os abusos de poder; o outro modelo seria a "economia simbólica de alteridade", que enfatiza a categoria social de afinidade como fonte potencial de conflito e como uma força atuante em processos sociais e religiosos, concentrando as análises em processos de troca simbólica tais como guerra e canibalismo, predação, caça, xamanismo, e ritos funerários.

    Essas tendências não são necessariamente exclusivas, e um expoente da primeira escola encontrou ambos os idiomas sociorreligiosos, diferencialmente definidos em termos morais, em um único grupo: os Amuesha, da Amazônia peruana ao leste, sobre os quais Fernando Santos Granero escreveu uma monografia importante, com o título "El poder del amor".

    Ao mesmo tempo, o material etnográfico da Amazônia mostra como as condições ecológicas, em alguma medida, moldam a dialética entre a "violência predatória" e a "convivialidade harmoniosa" nos grupos. O ciclo distintivo das estações alternantes de seca e chuva se mostra importante para uma alternação entre formas de socialidade: a "dispersão" durante a estação seca por um lado (uma espécie de "atomização" social, ou movimento centrífugo, quando pequenos grupos autônomos permanecem fora da aldeia principal para caçar, colher, pescar e plantar roças), e, por outro, a "concentração", ou movimento centrípeto durante a estação chuvosa (quando a comunidade inteira está reunida na aldeia, com o término do plantio das roças novas e a colheita nas roças do ano anterior). Ambas situações ecológicas básicas propiciam não somente atividades econômicas diferentes, mas relações políticas e atividades rituais distintas. Em princípio, os períodos de dispersão enfatizam a violência predatória, enquanto os períodos de concentração, a convivialidade harmoniosa. Paradoxalmente, o inverso pode também ser verdadeiro: a convivialidade intensa (ou movimentos centrípetos) pode produzir situações conflituosas ou celebrar a violência predatória (rituais de guerra), enquanto a dispersão em grupos autônomos pode, temporariamente, suspender os regimes restritivos de parentesco e celebrar a convivialidade harmoniosa com categorias de "outra" gente (tais como os afins). De todo modo, interessa entender como essas duas formas de socialidade/religiosidade se articulam com as atividades ecológicas, e também com a história.

    Ora, todas as sociedades amazônicas, devemos reconhecer, têm sofrido transformações tão severas, muitas vezes catastróficas, desde pelo menos o começo do regime colonial (epidemias, colapso demográfico, atrocidades), que é difícil imaginar como poderiam não ter deixado marcas profundas e estruturais nos processos cosmológicos e sociorreligiosos dos povos indígenas. Assim, o que se chama "relações de predação" entre os humanos e o mundo natural, bem como entre grupos humanos, deve ser pensado em relação íntima com as realidades históricas de violência colonial e as suas estruturas sociais.

    Então, como podemos compreender a dialética de harmonia interna e predação externa, a dispersão e a concentração, levando em consideração as transformações históricas e ecológicas? Sugiro que incluamos ambas dialéticas em um único modelo constituído pela oposição complementar entre duas formações sociorreligiosas: uma que podemos chamar de particularista; e a outra, universalista. Quero esclarecer que estou utilizando estes termos de modo diferente do que foi utilizado desde Max Weber, pois estou argumentando que ambas as formações sejam inerentes às sociedades amazônicas, sendo que ambas podem ser discernidas em suas articulações com circunstâncias históricas e ecológicas externas. Isto é, essas formações são generativas de, e influenciadas por, dinâmicas históricas; as circunstâncias históricas podem intensificar – ou exacerbar – uma ou outra formação. Ambas, necessariamente, envolvem as relações entre os humanos e a natureza, tal como são definidos pelas cosmologias indígenas. Examinemos cada uma dessas formações mais de perto.

    AS FORMAÇÕES SOCIORRELIGIOSAS PARTICULARISTAS As formações sociorreligiosas particularistas são marcadas, no nível social, pela ênfase nos laços locais de parentesco, conflitos com grupos de afins ou considerados "não-parentes", e na mediação com os recursos espirituais e naturais através de especialistas religiosos. Do mesmo modo, no nível religioso, as cosmologias das sociedades agrícolas tradicionais da floresta tropical são marcadas pela violência (ritual) geradora-de-vida. A idéia-chave nessas cosmologias é a centralidade da morte e da regeneração, em atos violentos, por exemplo, no motivo comum da divindade ou ser primordial morto e desmembrado, cujo corpo é a fonte de importantes plantas cultivadas. Esse ato de morte e desmembramento é periodicamente reencenado em rituais. Tal ideologia, com a sua violência explícita e implícita, explica rituais como a caça-de-cabeças e o canibalismo, mas também a pesca, a caça, e o plantio – todos reiterações do ato primordial de matar. Traduzindo essas idéias para a teoria etnológica contemporânea, esperar-se-ia que o idioma da violência fosse proeminente, embora evidentemente não excluindo a convivialidade harmoniosa.

    Para ilustrar as formações sociorreligiosas particularistas, vou me referir a dois casos de povos amazônicos cujos contatos com a sociedade não-indígena foram relativamente recentes e/ou limitados: os Wauja, do Parque Indígena do Xingu, no Brasil Central, e os Enawene-Nawe, do alto rio Juruena, a sudoeste do Xingu. Trata-se de grupos relativamente pequenos (de cerca de 300 pessoas) e de língua aruak.

    Entre os Wauja, a predação ocorre entre os espíritos primordiais, chamados yerupoho – seres antropomorfos e zoomorfos – e os humanos, e entre os humanos e animais. Os Wauja falam em seus mitos de uma predação primordial desses espíritos nos humanos, que foram forçados a viver dentro de cupinzeiros. Essa situação se reverteu quando o Sol vestiu uma máscara e forçou os espíritos yerupoho a assumir uma existência velada na natureza; naquele momento os yerupoho fabricaram milhares de máscaras para se esconderem do Sol. No entanto, dizem que os yerupoho hoje ainda têm uma enorme curiosidade em relação à vida humana, desejam conviver com os humanos, transformar os humanos em suas próprias imagens, incorporá-los a sua sociedade, animalizá-los. Há perigo nessa relação, pois podem roubar as almas humanas, e os yerupoho mais perigosos e monstruosos podem canibalizá-las. Ao roubarem as almas humanas, provocam a doença, embora, diz-se, não façam isso intencionalmente e ajudem na cura dos doentes. Os humanos, por outro lado, têm todo interesse em domesticar esses espíritos, pois a doença para os Wauja significa um desequilíbrio nos desejos da alma, e é isso que atrai os yerupoho, fazendo com que eles queiram levar embora as almas dos humanos. Ao domesticar seres yerupoho, os humanos podem posteriormente utilizar o seu poder para prevenir futuros ataques de outros yerupoho. Portanto, os humanos chamam os espíritos yerupoho, na forma de máscaras gigantescas (algumas com três metros de diâmetro) e aerofones (flautas e clarinetes), celebrando a sua presença entre os humanos, para assim restabelecer o equilíbrio – pela cura – entre o doente e o social.

     

     

    Os Enawene-Nawe, por sua vez, dizem que habitam a camada intermediária do cosmos, entre os mundos dos espíritos ancestrais e celestes (a quem chamam de "avós") – imortais, belos, generosos, brincalhões, saudáveis, numa aldeia arquitetonicamente perfeita cercada por um mundo natural de plenitude, onde tudo cresce e floresce sem a necessidade de ser cultivado – e os espíritos subterrâneos – feios, perversos, insaciáveis, implacáveis, sovinas, associais. Em contraste com os espíritos ancestrais, os que habitam o subterrâneo são considerados não-parentes, "outros" grupos (como os afins), que provocam doença e morte entre os humanos. Estes espíritos subterrâneos, chamados yakayriti, são "donos" ou pelo menos intermediários entre os humanos e quase todos os recursos encontrados na natureza. Já que controlam os recursos naturais, os Enawene-Nawe dependem desses espíritos para a produção de alimentos e, portanto, a reprodução da vida social. Por outro lado, se os Enawene-Nawe não alimentam esses espíritos, eles ficam tão furiosos que são capazes de matar todos com doença. A mitologia Enawene-Nawe está repleta de catástrofes produzidas no passado por esses espíritos. Assim, a sua relação com os humanos é de predação – uns diriam de extorsão –, em que eles, como os yerupoho entre os Wauja, controlam a produção ritual e social. Os Enawene-Nawe, como os Wauja, têm uma vida ritual extremamente elaborada, que envolve um conjunto complexo de aerofones/flautas representando os vários clãs. Estas sempre são tocadas durante os rituais Yãkwa, que duram sete meses. Uma relação de reciprocidade é estabelecida com os yakayriti durante os yãkwa: os espíritos fornecem quantidades abundantes de peixe moqueado para os Enawene-Nawe, enquanto estes retribuem com sal vegetal e outros alimentos (como mingau). Como os espíritos yerupoho dos Wauja, os yakayriti são domesticados durante os rituais (sobre o assunto, ver o filme de Virginia Valadão, Banquete dos espíritos, 1985).

    Em contraste com os Wauja e os Enawene-Nawe, tanto os Apurinã do alto rio Purus (com população de aproximadamente 2400 indivíduos) quanto os Baniwa do noroeste amazônico (com população de cerca de 4 mil pessoas em mais de cem aldeias só no Brasil) – que fazem parte de um dos maiores conjuntos de povos de língua aruak no continente – têm experienciado histórias de contato relativamente longas e brutais: os Apurinã, desde pelo menos a metade do século XIX, especialmente durante ambos os ciclos de borracha, e os Baniwa, desde a metade do século XVIII, período de escravidão indígena, até o segundo ciclo de borracha. Como se poderia esperar, tais contatos traumáticos deixaram marcas nas cosmologias Apurinã e Baniwa. Podemos dizer que – e esse é o ponto importante –, em ambos os casos, as características peculiares das formações sociorreligiosas particularistas foram exacerbadas/intensificadas através de suas articulações com as circunstâncias históricas. De qual maneira?

    Os mitos cosmogônicos Apurinã começam com uma destruição cataclísmica do mundo, seguido por uma seqüência de episódios envolvendo seres monstruosos contra os quais o herói Tsura busca se vingar. A vingança assim é um tema proeminente em sua cosmogonia. E os Apurinã são hoje conhecidos por outros povos, e querem ser assim conhecidos, por seu ethos guerreiro; em sua história de contato, quando não estavam lutando contra os brancos, faziam guerras entre si, e o principal motivo para as guerras era vingança, por meio de ciclos aparentemente intermináveis de retribuição entre famílias. Assim, havia a predação na relação com os brancos e entre os grupos Apurinã. Podemos dizer que as circunstâncias históricas externas, acopladas ao ethos guerreiro dos Apurinã e como este é definido nos mitos, intensificaram a predação interna ao extremo. Os Apurinã também contam histórias de grandes migrações no passado distante, quando seus ancestrais saíram de um lugar de origem ao sul e migraram para um lugar onde não existia a morte, ao norte. Somente um grupo conseguiu alcançar essa "terra sagrada", enquanto a maioria dos Apurinã resolveu ficar no meio do caminho, numa terra que eles conhecem hoje como a "terra onde ocorre muitas mortes".

    Voltemos agora a nossa atenção para o caso dos Baniwa da fronteira entre Brasil,Venezuela e Colômbia, entre os quais e sobre os quais tenho pesquisado desde 1976. Aqui podemos ver com mais clareza um modelo dialético de formações sociorreligiosas "particularistas" e "universalistas". Primeiro, o princípio básico da organização social Baniwa é a divisão em fratrias (unidade social composta de um conjunto de comunidades que reivindicam a descendência de um grupo agnático – de irmãos – em comum, que idealmente compartilham o mesmo território, e possuem um patrimônio ancestral que o distingue de outras unidades semelhantes), cada uma das quais consistindo num grupo de sibs (unidade social composta de um conjunto de comunidades locais que reivindicam o mesmo nome coletivo, a descendência de um ancestral em comum, e um território ancestral). Os mitos de criação definem quem esses grupos são e as suas relações sociais e rituais. Os sibs são localizados em uma série de comunidades locais. A tomada de decisões políticas e as atividades rituais tradicionais acontecem entre as comunidades ou, no máximo, entre um grupo de comunidades inter-relacionadas do mesmo sib que moram próximas umas às outras. As relações com outros sibs – particularmente aquelas com quem há alianças e casamentos – tipicamente são marcadas por ambivalência: por um lado, a solidariedade para os afins nos momentos de necessidade; por outro, a traição (mortes por feitiçaria), a competição em torno de recursos naturais e outros conflitos. Tradicionalmente, tal ambivalência poderia, em princípio, ser superada ou pelo menos gerenciada durante as festas de dança, quando os sibs de fratrias diferentes bebiam e dançavam juntos. As figuras-chave nessa formação particularista eram mediadores, tais como os maliiri (geralmente chamados na Amazônia de "pajés", responsáveis pela cura das pessoas).

    Nessa formação particularista, certos elementos foram intensificados até um ponto crítico, como resultado das articulações com as circunstâncias históricas. Durante o segundo ciclo da borracha, marcado por conflitos violentos entre os Baniwa e os "patrões", a feitiçaria aumentou desmesuradamente, provocando uma crise interna grave que os mediadores tradicionais não conseguiam controlar. Como os Apurinã, a predação interna se intensificou como resultado de processos externos. Uma história oral que gravei em julho de 2001 mostra essa tensão claramente. A narrativa conta sobre as lutas ao longo de gerações entre os profetas Baniwa e os bruxos (indivíduos que praticam envenenamento) e feiticeiros (indivíduos que praticam sopros fatais). A preocupação central dos profetas não era como lidar com a violência do homem branco; os profetas sempre o venciam. A preocupação central era como erradicar a feitiçaria e a bruxaria, isto é, o "mal" dentro da sociedade Baniwa.

    A tradição profética entre os Baniwa data de, pelo menos, a metade do século XIX e foi precursora do movimento em massa de conversão ao cristianismo evangélico na década de 1950, com o qual veio a competir. Tanto os movimentos proféticos quanto evangélicos têm as mesmas raízes na luta contra a feitiçaria e a bruxaria; ambos tinham objetivos semelhantes de implantar uma utopia social livre da feitiçaria. Uma utopia concreta colocada à prova através da práxis histórica.

    AS FORMAÇÕES SOCIORRELIGIOSAS UNIVERSALISTAS A segunda formação sociorreligiosa, que chamo "universalista", é caracterizada pelos seguintes elementos: primeiro, a identidade política e religiosa é construída sobre distâncias sociogeográficas maiores e envolve conceitos universais de identidade (tais como o "os da nossa língua", "o povo Baniwa"). Esses conceitos substituem a afiliação em grupos de parentes locais. Segundo, autoridades religiosas e políticas supralocais (tais como sacerdotes, pastores, profetas, conselhos de federações, organizações pan-indígenas) procuram forjar uma efetiva integração de unidades sociais, políticas e religiosas extensas. Terceiro, o acesso a recursos espirituais e materiais se torna imediato, substituindo a mediação característica das formações particularistas.

    No nível religioso, as formações sociorreligiosas traduzem os três elementos mencionados das seguintes maneiras concretas: primeiro, através de funções sacerdotais que têm a ver com o gerenciamento dos mortos e os ancestrais. Um exemplo disso seria os conjuntos muito longos de cânticos chamados kalidzamai que os especialistas Baniwa devem entoar durante os ritos de iniciação, em que eles "viajam", em seus pensamentos, a todos os lugares ancestrais conhecidos da terra para sacralizar esses lugares com a música de criação e impedir os mortos de fazerem qualquer mal aos recém-iniciados. Diferentemente dos maliiri, que são considerados predadores-jaguares, a função essencial dos rezadores Baniwa é que sabem a litania inteira de lugares associados aos ancestrais. Através desse conhecimento canônico, os rezadores criam um conceito universal de identidade Baniwa. Ao mesmo tempo em que gerenciam os mortos, eles criam as condições pelas quais a sociedade se reproduz. Assim, o seu poder transcende os poderes mais restritos dos predadores-jaguares maliiri.

    Segundo, através da função profética, cuja essência é a tendência de instalar um regime religioso de "transcendência mundana", tipicamente negando a realidade da morte (ou "predação"). No meu livro For those unborn (1998), enfatizei as dimensões espirituais da escatologia profética, em oposição às "explicações" características das ciências sociais de tais fenômenos em termos políticos, econômicos ou militares. Mais recentemente, analisei os movimentos em relação ao tipo de conflitos internos que aqui defini como formações sociorreligiosas particularistas. Especificamente, conflitos que foram traduzidos em acusações de bruxaria, revestidas de significados mitológicos e exacerbadas por circunstâncias históricas. Nesses contextos, as funções mediadoras de especialistas religiosos, os maliiri, foram, podemos dizer, "aquecidas", isto é, expandidas, no sentido de transcender as diferenças locais e as limitações da mortalidade e assim, os profetas ou "sábios" têm surgido. As narrativas indígenas sobre esses movimentos, muitas vezes, colocam as formações particularistas diretamente contra as formações universalistas – porém, sem necessariamente chegar a uma solução clara. Isto é, os profetas não resolvem necessariamente o problema da bruxaria. Mas não é por isso que podemos concluir que os movimentos proféticos (ou messiânicos ou milenares) "fracassaram". Argumentar assim, mais uma vez, ignora as lutas históricas vibrantes das religiões indígenas na busca de uma solução para os dilemas internos colocados por suas ontologias e exacerbados por circunstâncias históricas.

    A terceira maneira de discernir as formações universalistas é nos movimentos de conversão ao protestantismo evangélico e ao pentecostalismo, com o seu cultismo "imediatista". De fato, há pouca pesquisa sobre a recepção das formas evangélicas do cristianismo entre as sociedades indígenas da Amazônia, e quase nenhuma sobre seus impactos nas relações humano-natureza. As obras principais sobre a indigenização do cristianismo por sociedades indígenas amazônicas são os três volumes que organizei com o título Transformando os deuses (vols. I e II, publicados em 1999 e 2004; um terceiro volume, em inglês, está em fase de organização).

    O Volume II, em particular, com o subtítulo Igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil, procura situar a expansão das igrejas fundamentalistas entre as comunidades indígenas dentro de uma perspectiva mais ampla da expansão histórica do fundamentalismo cristão. Para entender as transformações nas sociedades indígenas resultantes dos movimentos de conversão, propomos três hipóteses: em primeiro lugar, que a conversão representa uma reforma moral e política em que os movimentos centrífugos das formações sociais indígenas são acentuados pela sua adesão às ideologias universalistas cristãs, muitas vezes em detrimento dos movimentos centrípetos características de formações sociais particularistas e localizadas, que enfatizam a diferenciação interna e o conflito. Em segundo lugar, a conversão ao cristianismo fundamentalista representa uma reforma do cotidiano em que certas virtudes (a harmonia) são exaltadas enquanto práticas como a retribuição por vingança como maneira de resolver conflitos internos são renunciadas, resultando em uma reformulação da consciência étnica e uma identidade consolidada na sociedade indígena em questão. Isto, evidentemente, tem conseqüências para as representações que as sociedades indígenas constroem de si mesmas diante da sociedade não-indígena. Em terceiro lugar, um aspecto crucial dos movimentos fundamentalistas é a sua capacidade de manter a lealdade (adesão) de seus fiéis e de transmitir a nova moralidade para as gerações futuras. Esses movimentos são capazes de se arraigarem entre uma comunidade de fiéis e, nesse sentido, é possível perguntar se eles seriam transformações dos movimentos proféticos do passado, bem como se estariam sujeitos a ciclos de maior ou menor entusiasmo. Essas questões estão no cerne dos doze estudos de caso apresentados no volume II, principalmente de sociedades indígenas não-amazônicas (Terena, Kaingang, Kaiowá, entre outras).

    No caso dos Baniwa, duas tradições religiosas distintas se desenvolveram como resultado dos movimentos proféticos desde o século XIX que mostra uma forte indigenização do catolicismo, ao lado de um "aquecimento" do xamanismo Baniwa, e o movimento evangélico, o qual em grande parte derivou-se da tradição profética embora transformando-a em maneiras fundamentais. Duas tradições religiosas distintas surgiram da mesma fonte essencial e consolidaram-se através do tempo.

    Concluindo, espero ter mostrado como uma pesquisa histórica e comparativa entre povos de uma família lingüística pode revelar as diversas maneiras em que as "formações sociorreligiosas particularistas e universalistas" desenvolveram-se no contexto de profundas transformações oriundas do contato com a sociedade não-indígena. E, assim, a nossa perspectiva teórica busca dar conta da articulação entre a dinâmica interna indígena dessas formações e as maneiras em que as sociedades aruaques têm incorporado os eventos das suas histórias.

     

    Robin M. Wright é professor titular de etnologia na Unicamp.

     

     

    NOTA

    1. Este trabalho foi originalmente apresentado como aula titular para o grau de titular em etnologia no Departamento de Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), setembro de 2005. Algumas revisões foram feitas no original.