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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.4 São Paulo Oct. 2008

     

     

    A ARTE DOS ÍNDIOS E A ARTE CONTEMPORÂNEA

    Regina Polo Müller

     

    O pensar sobre a arte nas sociedades indígenas pode ser situado no cenário da arte contemporânea, quando se toma particularmente alguns de seus aspectos, como o movimento de ruptura dos sistemas de hábitos que a arte conceitual e a arte da performance instauraram, as tentativas de reflexão sobre questões sociais que as artes contemporâneas realizam e as funções que assumiram nas definições de identidade, transculturalmente e interculturalmente. Vemos, nos dias de hoje, artistas fazendo incursões no meio social, seja mapeando sua realidade, seja produzindo a partir de sua relação com ela. Vimos, enfim, no século XX, a arte tomar a cultura toda como referência, quando antes e a partir da Renascença existia como campo separado da mesma.

    Aqui, serão realizadas algumas aproximações entre linguagens e conceitos da produção da arte contemporânea e das artes indígenas, na atualidade, a partir de alguns exemplos, com ênfase nos rituais dos Asuriní do Xingu, povo tupi-guarani, Terra Indígena Koatinemo, estado do Pará. Contatados em 1971, são atualmente 130 indivíduos.

    Antes de mais nada, dá-se já como superada a questão da definição de arte e critérios para se definir objetos e demais manifestações expressivas como arte no âmbito das culturas indígenas. Entendemos, para resumir e simplificar um problema complexo, que a busca estética regulada por padrões e estilos e a natureza provocadora de processos de conhecimento e reflexividade, presentes nessas manifestações, permitem aproximá-la da produção artística contemporânea ocidental.

    Observo, primeiramente, que, como demonstraram outros estudiosos (1;2), a arte contemporânea que abandona o estatuto de arte como "domínio autônomo de julgamento humano" e como "um fim em si mesmo", plasmado da Renascença ao Iluminismo, dirige seu interesse às práticas artísticas de sociedades indígenas por seu caráter integrado nos diversos domínios da vida social e sua natureza múltipla, ativa, participante e coletiva.

    A noção de agência (3), a partir da qual se entende que nas artes indígenas, objetos e demais manifestações expressivas são mais para provocarem estados e processos de conhecimento e reflexividade bem como transformações sociais ou ontológicas do que para serem contempladas, vem mais diretamente auxiliar no estabelecimento de analogias com as manifestações da arte conceitual e da arte da performance e, desse modo, contribuir para explorarmos a idéia de contemporaneidade na arte indígena.

    Por outro lado, os aspectos que privilegio para relacionar ritual e arte da performance são a situação de dialogia e o caráter processual/experiencial presentes em ambos. Do caráter processual/experiencial, destaco a reflexividade inerente à performance em geral ("cultural", nos termos de Singer, 4) para cotejá-la à prática reflexiva definidora, por exemplo, do "programa ambiental" de Hélio Oiticica. Segundo Favaretto (5), "(...) o ambiental é uma prática reflexiva; estrutura-se como retórica (da ação e do movimento), aproximando-se dos relatos e dos mitos. As operações ambientais evidenciam a produção como significativa: não o constituído, o processo de constituição, dessublimando-se as experiências" ( p.128; 5).

    A participação como elemento desse processo fundamental de constituição do significado remete à concepção do artista tal como colocada por Favaretto a respeito das propostas de Oitica, segundo a qual não é ele um "criador de objetos para a contemplação... se torna um motivador para a criação... Esse deslocamento aponta para uma nova inscrição do estético: a arte como intervenção cultural. Seu campo de ação não é o sistema de arte, mas a visionária atividade coletiva que intercepta subjetividade e significação social. A anti-arte, entendida como série de proposições para a criação, tem, pois, como princípio a participação" (p.124; 5).

    Poder-se-ia pensar, a partir desse exemplo comparativo, que o xamã assim como o artista são "motivadores" da "experiência formativa", seja esta entendida como ação reflexiva na avaliação da existência, seja como intervenção cultural.

     

     

    No ritual maraká dos Asuriní, realizado pelo xamã e outros participantes, homens e mulheres, traz-se à aldeia através do canto e dança, espíritos e divindades – seres habitantes de diversos planos cósmicos. O ritual é expressão, em todos os atos que desenvolve, do contato íntimo e ao mesmo tempo ambíguo, com esses seres: dança-se com eles, fuma-se junto, oferece-se a comida, mas também se mantém com relação a eles, o mesmo comportamento que se tem com a presa animal, tentando-se pegá-la agressivamente. Os ruídos que o xamã faz, seus gestos de pegar algo no ar, seus gemidos dentro da tukaia (cabana de folhas para onde são atraídos os espíritos), demonstram essa relação de conflito. Essa experiência de intimidade com os espíritos é vivida pelo xamã, seus assistentes e mulheres jovens que cantam e dançam, acompanhando-o. A maneira pela qual a dança se realiza manifesta essa participação conjunta do contato com os espíritos: todos os corpos se tocando, um abraçado ao outro, e, quando há duas filas, o assistente abraça-se numa cantora com uma mão e, com a outra, toca o corpo do xamã, a sua frente. Se, de um lado, está presente uma legião de espíritos (são vários os que vêm à cabana tukaia), de outro, os humanos também participam coletivamente, num bloco de corpos, marcando sua "humanidade" comum. E dançando em grupo em frente à cabana, opõem-se a eles que estão aí hospedados.

    O contato entre humanos e espíritos realiza-se, mas é ameaçador. Há conflito e ambigüidade nas relações entre espíritos e humanos. Para os demais humanos, não-xamãs, a participação no ritual é perigosa, mas inevitável: a participação do assistente e das jovens dançarinas realiza a comunhão humanos-espíritos.

    Estamos tratando aqui de uma noção fundamental na cosmologia Asuriní para a compreensão dos seres e do próprio pensamento sobre universo: a concomitância de planos cósmicos, isto é, há planos concomitantes de existência dos seres. Essa concomitância é vivenciada pelo xamã Asuriní que se metamorfoseia em um ser sobrenatural, tornando-se um deles. Ao mesmo tempo, permanece humano, ambivalência que, como vimos, se encontra na ação ritual. Por meio da metamorfose do xamã, organizam-se relações entre humanos e espíritos, isto é, entre seres diferentes, princípio ordenador da sociedade, garantindo-se nessa ação a operacionalização desse princípio estruturante da sociedade. Nessa ação, a própria relação entre o performer e o espectador (os demais membros do grupo, entre eles os que assistem e os que participam da performance) faz parte da significação.

    Entendo que a reflexão sobre a experiência ritual é esclarecedora de outras experiências com caráter de "drama plástico", experiência sensível que se fundamenta na ética e na estética constituindo-se modelo para a crença ou, ainda segundo o mesmo autor dessa definição, "conteúdos simbólicos que incorporam ethos e eidos" (6). Esta definição, a meu ver, se aplica tanto a rituais indígenas quanto à forma contemporânea ocidental de experiência artística, a arte da performance, pois assim como o ritual atualiza conteúdos cosmológicos estruturantes da sociedade, por meios estéticos de representação, a performance artística, igualmente por meios estéticos, atualiza conteúdos do universo individual do artista em sua relação com o meio.

    Da antropologia da performance, tomo outras referências teóricas para dar continuidade às comparações. De acordo com Turner (7), o ritual indígena pode ser compreendido como o modo pelo qual um complexo de ações performáticas e meios de comunicação sensorial, visual e sonora, de grande variabilidade, faz emergir significados que permitem o exercício da reflexividade sobre a experiência social, a "parede de espelhos" a que se refere Turner. A dimensão estética do ritual se encontra, deste ponto de vista, no entendimento de que sua relação com um sistema social ou configuração cultural não é de meramente refleti-los ou expressá-los, unidirecionalmente, mas sim de reciprocidade e reflexividade. A grande variabilidade de ação e de meios de comunicação produzem um conjunto de mensagens sutilmente variáveis, resultando numa "parede de espelhos-espelhos mágicos, cada qual interpretando bem como refletindo as imagens lançadas nela, e emitidas de um para outro" (p. 24; 7).

    Da perspectiva da antropologia da performance, acrescento ainda o caráter lúdico que o ritual e a arte da performance compartilham. Em ambos, a ação e a expressão corporal tomam a cena, o "meio torna-se a mensagem" mas é, ao mesmo tempo, o agente transformador. Assim ocorre com o estado de transe do xamã, resultado da dança e canto (respiração e movimento), cuja forma estética presentifica o ser metamoforseado, bem como com a incorporação de personagens míticos no ritual cosmogônico. Ao lado da fisicalidade constitutiva da performance, esta mesma forma é o simulacro do eu, a experiência de que elementos que são not me se tornem me sem perder sua not me-ness. A maneira pela qual "eu" e "não-eu", o perfomer e a coisa a ser performada, são transformados em "não...não-eu" é através do laboratório/ensaio/processo ritual. Este processo ocorre num tempo/espaço liminar e no modo subjuntivo" (p.112; 8).

    Podemos dizer que nos rituais xamanísticos dos Asuriní do Xingu, o movimento do corpo esteticamente organizado, a dança, conforma – dá forma – a manifestação da personagem (o espírito presente) bem como às ações dos demais personagens da trama cósmica, fundada na relação de alteridade. Deste trânsito entre planos e da troca entre seres depende a ordem do cosmo, a sua reprodução e, consequentemente, a sobrevivência dos humanos.

    No ritual cosmogônico das flautas Turé, os personagens incorporados na ação performática, desenvolvida pelas danças e cerimônias, são o morto e o matador, dos scripts dos mitos de origem. Os tocadores desempenham a função de executar a música (tocando e dançando) que, juntamente com o choro ritual, afastam os mortos para sempre da vida dos vivos, garantindo a ordem cósmica de separação e convivência entre seres diferentes.

    O cortejo liderado pelo personagem/papel ritual do Kavara, tocador de flauta, que se inicia na casa dos visitantes tocadores de flauta, dirige-se à casa comunal e retorna à casa dos visitantes, pode ser interpretado como a transmutação simbólica do guerreiro (o matador) para o representante do morto (o sobrevivente Kavara), sintetizando, na ação performática, um princípio da cosmologia e ontologia Asuriní. O guerreiro é o outro lado da moeda: no ritual, o guerreiro é tatuado e o morto é chorado. A tatuagem separa substancialmente o matador da vítima, com a extração do sangue de seu corpo e o choro ritual sobre a sepultura, separa cosmicamente o morto e o vivo. A ação ritual – cortejos, danças e ritos cerimoniais – que se desenvolve entre a casa comunal e a casa dos visitantes realiza, de um lado, a passagem entre esferas cósmicas e estados ontológicos e, de outro, estabelece relações entre estes níveis: vivos e mortos, humanos e espíritos, Asuriní atuais e ancestrais.

    Entendidos como manifestações artísticas, os rituais constituem experiências estéticas através das quais essa sociedade realiza a formação dos indivíduos, a transmissão de saberes, o conhecimento da cosmologia e a possibilidade de se vivenciar a existência em diferentes planos do cosmo.

    Como "performance cultural", os rituais aqui descritos constituem performances cênicas esteticamente estruturadas – incluindo meios não linguísticos como a música, a dança, a arte teatral e as artes visuais – através das quais conteúdos dados da cultura (noções e valores), a tradição ou o passado são reelaborados, numa "(...) avaliação do modo pelo qual a sociedade lida com a história" (4).

     

    Regina Polo Müller é antropóloga com pós-doutoramento no Departamento de Performance Studies da Universidade de Nova York, livre-docente em antropologia da dança pela Universidade Estadual de Campinas. Foi curadora da exposição "Brésil indien, les arts des amérindiens du Brésil" no Ano do Brasil na França, em 2005, Paris, e curadora associada da Mostra do Redescobrimento, Módulo "Artes Indígenas", em 2000, São Paulo.

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Dias, J.A.B.F. 2000. "Arte, arte índia, artes indígenas". In Mostra do redescobrimento, Brasil 500 anos é mais. Vol. Artes Indígenas. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo. 2000.

    2. Lagrou, E.– "L'art des indiens du Brésil. Alterité, 'authenticité' et 'pouvoir actif'". In: Brésil indien, les arts des amérindiens du Brésil. Paris: Réunion des Musées Nationaux. 2005.

    3. Gell, A 1998, Art and agency. An anthropological theory, Oxford, Clarendon Press.

    4. Singer, M. apud Turner, V.W. The anthropology of performance. New York: PAJ Publications. 1988.

    5. Favaretto, C. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp. Texto&Arte 6.1992.

    6. Geertz, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:Zahar Editores. 1978

    7. Turner, V.W. The anthropology of performance. New York: PAJ Publications. 1988.

    8. Schechner, R. Between theater and anthropology. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. 1985.