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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.4 São Paulo out. 2008

     

     

    A PRESENÇA DO INVISÍVEL NA VIDA COTIDIANA E RITUAL DOS POVOS INDÍGENAS DO OIAPOQUE: O CONTEXTO DE UMA EXPOSIÇÃO

    Lux Vidal

     

    "As exposições constituem poderosos instrumentos de comunicação. As pessoas visitam exposições para aprender, se divertir, para se inspirar e sonhar ou ainda porque julgam que os museus possuem algo a oferecer que não pode ser encontrado em nenhum outro lugar".
    Lucia Hussak van Velthem (1)

     

    OS POVOS INDÍGENAS DO OIAPOQUE, PROTAGONISTAS DESSA EXPOSIÇÃO Os povos indígenas do extremo norte do Amapá, habitantes da bacia do rio Uaçá e do baixo curso do rio Oiapoque – Karipuna, Palikur, Galibi-Marworno e Galibi-Kali'na – são o resultado de várias migrações e fusões antigas e mais recentes. São portadores de tradições culturais heterogêneas, histórias de contato e trajetórias diferenciadas, assim como suas línguas e religiões.

    Mesmo assim esses povos têm conseguido conviver e construir, ao longo do tempo, um espaço de interlocução, especialmente hoje, pelo viés das Assembléias Gerais e da Associação dos Povos Indígenas do Oiapoque, que congrega as quatro etnias.

    Os quatro povos somam uma população de 5 mil índios distribuídos em inúmeras aldeias e localidades, nas Terras Indígenas Uaçá, Galibi e Juminã. Estas terras indígenas, demarcadas e homologadas, configuram uma grande área contínua, cortada a oeste pela BR-156, que liga Macapá a Oiapoque , no estado do Amapá.

    A paisagem típica da região é de savana alagada, banhada por três grandes rios, o Uaçá, o Urucauá e o Curipi, além de inúmeros afluentes, lagos e igarapés. O rio Oiapoque delimita a fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa.

    A oeste da Terra Indígena, uma rica cobertura de floresta tropical que vai ao encontro das montanhas de Tumucumaque; a leste, o rio Cassiporé, o Cabo Orange e o oceano Atlântico. Muitas aves, das mais diversas espécies, povoam a região.

    Entre os rios, destacam-se algumas elevações como as montanhas Cajari, Tipok e Carupina, referências física e cosmológica para os habitantes da região.

    As aldeias e as roças ocupam diferentes ilhas, zilé em patoá, ou tesos, em português da região. A alimentação é basicamente constituída de farinha de mandioca e uma grande variedade de peixes.

    Segundo as narrativas indígenas, toda essa paisagem é habitada por seres humanos, animais e vegetais e seres do "outro mundo", em contínuo processo de negociação e metamorfose, especialmente pela intermediação dos pajés, que entram em contato com os karuãna dos bichos e encantados, praticam as curas e realizam o ritual indígena do Turé.

    Um mundo predominantemente aquático, cuja cosmologia privilegia os seres sobrenaturais que habitam o fundo das águas. Região que antigos viajantes cartógrafos denominavam o pays sous l'eau, peí ãba dji lo, em patoá.

    Poliglota, boa parte da população indígena do Oiapoque se comunica em vários idiomas: português e patoá ou kheoul (língua franca regional e idioma nativo dos Karipuna e Galibi-Marworno); os Palikur e Galibi-Kali'na falam suas respectivas línguas, nas aldeias. Alguns índios também sabem se comunicar em francês.

    Apesar das diferenças, prevalece uma visível semelhança e solidariedade entre esses povos por compartilhar um mesmo território, vivenciar uma situação geopolítica comum, por manter e reativar relações de parentesco e ajuda mútua, assim como lutar unidos pela terra, saúde, educação, infra-estrutura, trabalho e recursos. E, especialmente, por compartilhar uma cosmologia específica, indígena, Carib, Aruak, Tupi, mas também cristã, um aspecto marcante, mas pouco reconhecido até recentemente, algo que os próprios índios da região definem como "nosso sistema".

    Na exposição "A presença do invisível – vida cotidiana e ritual entre os povos indígenas do Oiapoque", inaugurada em maio de 2007 no Museu do Índio, Rio de Janeiro, ressaltou-se os aspectos de origem indígena, pelo desejo dos próprios índios e pela consciência que hoje possuem do valor de um patrimônio cultural tradicional historicamente construído, específico, apesar de heterogêneo e que poderia, se não renovado e fortalecido, vir a desaparecer.

    Vários projetos de resgate e fortalecimento cultural, nestes últimos anos, desenvolvidos pela Associação dos Povos Indígenas do Oiapoque junto aos mestres-artesãos e artesãs, nas suas respectivas aldeias, têm incentivado essa valorização cultural, especialmente frente aos não-índios, que muitas vezes consideram os povos indígenas do Oiapoque como "muito aculturados", sem a oportunidade de conhecer sua rica cosmologia, seus saberes sobre o meio ambiente e sua bela produção artística e estética.

    O MUSEU KUAHI Em 1998, os povos indígenas da região propuseram ao governo do Amapá a criação de um museu na cidade de Oiapoque, cuja destinação seria reunir os artefatos, saberes e conhecimentos indígenas, devidamente documentados. Um museu regional, mantido pelo estado do Amapá, mas cuja gestão caberia aos índios, devidamente capacitados. Um museu para dar visibilidade e dignidade às manifestações culturais indígenas e, essencialmente, um centro de preservação da memória, de documentação e de pesquisa para os índios, cada vez mais interessados em gerir seu próprio patrimônio cultural.

    Através da exposição no Museu do Índio, que mostra aspectos importantes da vida cotidiana e ritual dos povos do Baixo Oiapoque, especialmente pelas transposições materiais, musicais e gráficas de uma cosmologia rica e complexa, os índios esperam também apoio às atividades do Museu dos Povos Indígenas do Oiapoque – Kuahi. Kuahi é o nome de um pequeno peixe, pacuzinho, e de um padrão gráfico geométrico, em forma de losango, motivo decorativo predileto, aplicado em inúmeros objetos.

    A EXPOSIÇÃO O conceito geral da exposição é apresentar, em duas salas, a cada extremo do espaço museográfico, duas importantes instalações, centros de atividades fundamentais para os povos indígenas. De um lado, o espaço do lakuh (o pátio), onde é realizado o ritual do Turé, e de outro, a casa, onde se realizam, além das atividades domésticas, a prática de curas tradicionais. Os dois espaços estão relacionados ao mundo invisível pela presença do xamã ou pajé e da atividade xamânica ou pajelança. No lakuh, o espaço mais valorizado museograficamente, por ser público, é realizado o ritual do Turé em homenagem e agradecimento aos karuãna, espíritos amigos e auxiliares do xamã, pelas curas concedidas ao longo do ano aos seus seguidores e clientes.

    Na casa, aqui uma casa de xamã, além de toda a tralha doméstica, há o espaço reservado à Tucai, onde o xamã, com o auxílio de seus karuãna, realiza as curas.

    Na casa há também um altar doméstico com santinhos protetores do lar e também das aldeias quando expostos na capela, ao lado de artefatos indígenas e da bandeira do Divino. Acredita-se que os santos são capazes de conceder curas pela mediação de rezas e sopros com ramalhetes de ervas medicinais, ladainhas, às vezes em latim, e festas religiosas em sua homenagem.

    Os espaços entre essas duas instalações mostra os objetos mais significativos, relacionados ao Turé, como a sala dos renomados chapéus, plumaj em patois, e ornamentos corporais, as esculturas de aves e bichos, cujos espíritos aparecem no Turé, as marcas e grafismos sempre sonhados pelos xamãs, as armas de guerra que aparecem nas narrativas heróicas, os maracás, clarinetes e instrumentos musicais, cujo som atrai os seres sobrenaturais, e os potes de cerâmica para o preparo e consumo da bebida ritual, o caxiri. Cuias gravadas com marcas, ícones do mundo da natureza ou desenhos relativos à cosmologia e vida cotidiana.

    Uma atenção especial foi dada à astronomia indígena, destacando a Anaconda celeste e as Plêiades, todas relacionadas ao ciclo anual das chuvas e à renovação dos seres da natureza, animais e vegetais, sempre pela mediação do xamã.

    Há uma sala reservada à apresentação dos projetos culturais e ambientais sendo desenvolvidos na região. Também são mostrados os projetos de infraestrutura do estado, a pavimentação da BR-156 e a construção de uma linha de transmissão de energia elétrica e seus impactos sobre as Terras Indígenas.

    Uma importante coleção de peças dos povos indígenas do Oiapoque foi adquirida pelo Museu do Índio, primeira coleção completa e representativa desses povos. Ao lado dessas peças contemporâneas são expostas peças mais antigas, do próprio acervo do Museu do Índio. A aquisição das peças é um estímulo à produção artística e possibilita dar visibilidade, em um ambiente museográfico, à parte da produção resultante das oficinas dos projetos de fortalecimento cultural.

    A realização dessa exposição será, para os índios do Oiapoque, uma oportunidade de divulgar seu modo de vida e terá um caráter de experiência e aprendizado, tanto para o gerenciamento do Museu dos Povos Indígenas, em Oiapoque, como para a formação de pesquisadores indígenas interessados em gerir seu próprio patrimônio cultural e ambiental. Promoverá ainda uma reflexão acerca da transmissão e transformação de suas práticas e conhecimentos.

    Essa exposição, ao expressar diversas dimensões da cultura indígena, é uma oportunidade de divulgar, fora do estado do Amapá, o modo de ser e as expressões materiais e imateriais dos povos indígenas do Oiapoque, ainda pouco conhecidos em outras regiões do país.

    Na sua inauguração, a exposição contou com a participação de representantes indígenas, que tiveram a oportunidade de apresentar o ritual do Turé e acompanhar o processo de organização de um grande evento, que terá por intuito mostrar a relação muito estreita entre os conhecimentos do ecossistema, a cosmologia e a mitologia indígenas e as produções artísticas e estéticas. Tudo o que expressa essa contínua "artisticidade" na cerâmica, nos grafismos sonhados pelo xamã, nas marcas das cuias, na plumária e ornamentação ritual, nos instrumentos musicais, nos grandes bancos e mastros esculpidos e na cestaria, objetos todos utilizados nos rituais, objetos visíveis, tangíveis de uma realidade que também existe em uma outra dimensão, no invisível.

     

    Lux Vidal é antropóloga e pesquisadora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e secretária do Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena (Iepe).

     

     

    NOTA BIBLIOGRÁFICA

    1. Velthem, Lucia Hussak van. Programa de Capacitação Museológica sob a ótica dos valores culturais indígenas. Capacitação Básica. Mimeo, 2002.

     

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    Andrade, Ugo Maia. "O real que não é visto: xamanismo e relação no Baixo Oiapoque (AP)" . Tese de doutorado. São Paulo: PPGAS – DA – USP, 2007.

    Capiberibe, Artionka. "Os palikur e o cristianismo" . Tese de mestrado. Campinas, SP: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, 2001.

    Gallois, Dominique T. (Org.). Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Humanitas: Fapesp, 2005.

    Sztutman, Marcio. "Gestão ambiental das TIs" (artigo). In: Ricardo, Beto e Ricardo, Fani (Editores Gerais). Povos indígenas no Brasil: 2001-2005. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.

    Tassinari, Antonella. No bom da festa: o processo de construção cultural das famílias Karipuna do Amapá. São Paulo: Edusp, 2003.

    Vidal, Lux. A cobra grande: uma introdução à cosmologia dos povos indígenas do Uaçá e Baixo Oiapoque (AP). Publicação avulsa do Museu do Índio, vol. 1, 2007.

    Zacchi, Marina. "Gestão do patrimônio cultural" (artigo). In: Ricardo, Beto e Ricardo, Fani (Editores Gerais). Povos indígenas no Brasil: 2001-2005. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.