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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.4 São Paulo Oct. 2008

     

     

    JOGOS INDÍGENAS, REALIZAÇÕES URBANAS E CONSTRUÇÕES MIMÉTICAS

    Maria Beatriz Rocha Ferreira
    Manuel Hernández
    Vera Regina Toledo Camargo
    Olga Rodrigues Von Simson

     

    INTRODUÇÃO Os jogos indígenas na cidade representam novas formas de celebrar, de jogar, de transpor obstáculos, de superar sem a competitividade intensa que muitas vezes observamos no esporte. Esses eventos, considerados de massa, constituem campos intrigantes de pesquisas, com implicações interdisciplinares socioantropológicas e da educação física. Representam locais e momentos aonde se observam a alteridade, as diferenças, as aproximações, as rivalidades, as cooperações, as disputas, as trocas, as visibilidades e muito mais. Locais de convivência de saberes ancestrais e contemporâneos sobre práticas corporais e suas inter-relações.

    No discurso dos líderes e "atletas" indígenas participantes, esses eventos representam momentos aonde se pode celebrar, transmitir a cultura, estabelecer trocas, conhecer os parentes, novas formas de se jogar, dar visibilidade (1). Essas iniciativas não são novidades na história dos indígenas. Se pensarmos, sempre houve iniciativas de guerras, de acordos, de paz e de negociações com os "brancos" e entre as etnias. A novidade é que no caráter "esportivo", a configuração dos jogos indígenas na cidade tem apenas uma década.

    As informações trabalhadas neste texto foram obtidas através de (a) fontes bibliográficas na perspectiva de conceituação e mais especificamente nas (b) pesquisas etnográficas realizadas nos Jogos Estaduais de Conceição do Araguaia (PA), 2006, Campos Novos dos Paresis (MT), 2007, Recife/Olinda (PE), 2007, e a Festa do Índio em Bertioga (SP), 2004 e 2006. Nestes eventos foram realizadas entrevistas com líderes indígenas que os acompanhavam, "atletas" indígenas (termo denominado por eles) no alojamento dos jogos, filmagens na área dos jogos e nos alojamentos.

    JOGOS INDIGENAS NA CIDADE Os eventos dos jogos indígenas são realizações urbanas. Um campo onde se congregam diferentes conhecimentos e significados socioculturais ancestrais e contemporâneos. As redes que se formam para tal organização têm caráter permanente e temporário. Esses jogos são de âmbito nacional, denominados de Jogos dos Povos Indígenas, na 10ª edição, estadual como os Jogos Indígenas do Pará, na 3º edição e, regional como a Festa do Índio em Bertioga (SP), na 7ª edição e o Jogos Interculturais de Campos Novos do Paresi (MT), em sua primeira edição.

    Diferentes setores da sociedade se envolvem na organização dos jogos, a saber: Comitê Intertribal Memória e Ciência Indígena (ITC), governo federal (através dos ministérios dos Esportes, da Educação e da Cultura – âmbito nacional – secretarias de Esporte estaduais e/ou municipais – âmbito estadual e municipal), e também universidades, ONGs, mídia. As universidades brasileiras e do exterior (2) estão presentes participando com palestras nos fóruns, apresentando pesquisas que muitas vezes se desdobram em projetos comuns. Nesses eventos, mas em locais diferentes, ocorre o Fórum Social e a feira de artesanato indígena.

    Fazendo uma retrospectiva do início desse movimento, o líder Mariano Marcos Terena deixa claro os objetivos que os impulsionaram nesta trajetória: a idealização de eventos "sem doping, sem anabolizantes", que se possa celebrar com "a alma, com o coração", enfim, para desenvolver um "novo conceito de esporte" (p. 37; 2).

    A primeira iniciativa foi levar um índio "flecheiro" nos Jogos Estudantis Abertos (JEBs) em São Paulo. E Terena diz: "o índio estava usando um arco 'tradicional', uma metodologia 'tradicional' com um objetivo que não era 'tradicional'..., pois na aldeia ele faz aquilo para acertar uma ave, uma anta, um peixe no meio do rio".

    A partir desse Jogos Escolares Brasileiros começou-se a trabalhar o conceito de Jogos dos Povos Indígenas. Os representantes se reuniram com o então ministro do Esporte, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, e lançaram a idéia de se fazer uma Olimpíada. Marcos Terena diz que se utilizassem o termo "jogos indígenas" na época poderia dar a conotação de futebol para os indígenas. E, portanto, optou-se por Olimpíadas. A primeira experiência foi em Anhanguera (GO), em 1996, e a partir daí adquiriu-se experiência e o formato dos jogos foi modificado. Já foram realizados eventos em Guairá (PR), em 1999, Marabá (PA), em 2000, Campo Grande (MS), em 2001, Marapani (PA), em 2002, Palmas (TO), em 2003, Porto Seguro (BA), em 2004, Fortaleza (CE), em 2005, e Recife (PE), em 2007.

     

     

    "O IMPORTANTE É CELEBRAR E NÃO COMPETIR" Este é o lema propulsor dos jogos e que se concretiza a cada evento. O celebrar e não o competir vem quase na contramão do imaginário social do esporte, pois vivemos numa sociedade competitiva, racionalista, onde o esporte está inserido. Este espírito competitivo está embutido no comportamento das pessoas, do público, da mídia, das ações governamentais e não governamentais, etc. O locutor, os jornais, a televisão, incentivam a competição. As pessoas torcem por uma equipe ou outra, mesmo sem enxergar bem as demonstrações de arco, flecha ou outras atividades, mas pelo incentivo do locutor clamando por torcida. Para romper com esse espírito é preciso um esforço de todas as pessoas envolvidas no processo para se atualizarem constantemente e estabelecerem novas formas de diálogos e construções sociais.

    Depoimentos de líderes indígenas indicam que o evento é organizado para os "brancos" e precisa haver elementos da sociedade urbana para atrair o público (3). O processo de construção desses eventos não é simples; a passagem dos jogos da aldeia para a cidade são representações miméticas. Taussig (4) diz que a faculdade mimética pertence à "natureza" que tem a cultura de criar uma "segunda natureza". Essa faculdade, no entanto, não se dá meramente pela cópia do original, mas pelas ressignificações que cada cultura consegue do original e como influencia este original. Os jogos não são, portanto, cópias do original, dos rituais, das atividades corporais realizadas na aldeia, mas a partir dessas atividades são ressignificados num outro momento e espaço.

    Elias e Dunning (p.128; 5) nos estudos do lazer e futebol nos trazem uma característica importante da mimesis – relacionam-na com um aumento de tensão, "(...) aquilo que as pessoas procuram nas suas atividades de lazer não é o atenuar de tensões, mas, pelo contrário, um tipo específico de tensão, uma forma de excitação relacionada, como notou Santo Agostinho, com o medo, a tristeza e outras emoções que procuraríamos evitar na vida cotidiana".

    Os jogos realizados nas aldeias, nos rituais e cerimônias sagradas desencadeiam tensão e/ou excitação. Entretanto, lembramos que aqueles comportamentos que geravam tensão/excitação no passado, não necessariamente se fazem no presente (p. 98; 6). Essas tensões/excitações são ressignificadas nos eventos realizados na cidade.

    ENCONTROS E DESENCONTROS DOS MUNDOS Se, por um lado, há necessidade de se organizar os eventos para atender os procedimentos burocráticos dos ministérios e das secretarias de Esportes envolvidas, por outro segue-se rituais espirituais. As escolhas do local e período lunar são selecionadas seguindo preceitos indígenas. As instalações da arena e hospedagens diferem de evento para evento, em alguns são construídas arenas circulares e ocas para repouso, outros são realizados em campo de futebol de médio porte e escolas ou colônias de férias para servir de hospedagem. Essas decisões dependem das condições locais e disponibilidade de verba do governo.

    Os jogos, propriamente ditos, aparentemente seguem rituais próximos aos eventos esportivos, tais como: (a) desfile de abertura, que assemelham-se à abertura de jogos olímpicos, mas as etnias entram com roupas típicas, (b) a arena – local dos jogos, (c) tendas de artesanatos, (d) fórum social – com convidados indígenas e não indígenas nacionais e internacionais, visando debater temas tais como educação, saúde, ecologia e juventude, comunicações, utilização de energia solar, reflexões sobre os jogos e esportes indígenas, etc.

    A diversidade cultural dos povos pode ser vista nas plumagens, pinturas corporais, danças e nos jogos. Mas, subjacente ao visual, há a cultura imaterial, o como fazer, o quando fazer, o quanto fazer, que não se percebe. Há a vontade dos indígenas mostrarem e "manterem" a cultura, as tradições, os valores, o "resgate" cultural, e tornarem-se visíveis para uma sociedade que não os reconhece e que acreditava no desaparecimento deles (3).

    O "tradicional" não deve ser usado para gerar ou enfatizar estereótipos, "congelando" a idéia de mudança. De acordo com Gallois (p.20; 7), "tradicional no saber tradicional não é a sua antigüidade, mas a maneira como ele é adquirido e como é usado" continuamente na produção do conhecimento. Neste sentido, é importante buscar compreender os jogos e esportes como processos dinâmicos inter-relacionados com as mudanças da sociedade.

    A propósito, não se pode resgatar algo que está no passado, algo que está em desuso e talvez esquecido. Mas reconstituir alguns de seus fragmentos através da memória, que por sua vez é seletiva, está circunscrita em lembranças e esquecimentos e passa por filtros emocionais. No caso dos indígenas, muitos dos jogos em desuso foram forçosamente esquecidos, por um imposto e envergonhado silêncio por décadas de refreamento de tais jogos, considerados como de comportamentos violentos e por estarem inseridos em rituais categorizados como demoníacos (8).

    Estes eventos, no entender dos indígenas, propiciam a "mostrar e manter a cultura, as tradições e valores, a aproximação de 'parentes', a discussão de problemas, a confraternização, aprender a conhecer e respeitar outras etnias e línguas, vender artesanato, mostrar para o branco as diferenças, obter reconhecimento e ser respeitado. O índio não era unido. A gente estava muito disperso." (9). O evento propicia um estranhamento e uma aproximação entre o público e os indígenas.

    A logística organizacional difere das festas, celebrações e outras atividades realizadas nas aldeias. As decisões na cidade são feitas obedecendo a um calendário de atividades dos governos federal, estadual e/ou municipal, a disponibilidade financeira das entidades organizadoras, de prazos estabelecidos prioritariamente, de concorrências públicas, de rubricas financeiras que precisam ser seguidas, etc. A prestação de contas é extremamente difícil, até para os experts no assunto. Enfim, são sociedades e lógicas diferentes que se predispõem a organizar o evento.

    As implicações do lema "o importante é celebrar e não competir" leva a diferentes concepções organizacionais. Por exemplo, as regras dos jogos podem ser mudadas para se aproximarem da vida cotidiana, da caça, da pesca, e sujeitas a decisões do momento, nem sempre racionais. Ora, esse tipo de pensamento é difícil de ser entendido no mundo dos esportes, onde as regras são estabelecidas a priori, sob a autoridade de federações e confederações (7;9).

    Carlos Justino Terena (10) relata três situações diferentes na qual alguns indígenas preferiram não ganhar a prova nos jogos de futebol (Goiânia, 1996, e Marabá, 2000) e nas provas de canoagem (VI Jogos de Palmas, em 2003) para que outros também pudessem ganhar.

    O sentido de campeão, de vencedor, para os indígenas, pode estar próximo ao sentido do agon na Grécia antiga. A expressão agon significa assembléia, reunião, combate com características competitivas. Naquela sociedade havia a busca de equilíbrio entre a estética, a competição leal, a premiação justa e a liderança. Eles não se opunham a um rival propriamente, mas à força física, à velocidade, à memória, etc. O importante, para os gregos, era o espírito competitivo e não necessariamente o resultado em si (9).

    O espírito de guerreiro, de auto-superação, está presente nos indígenas durante as provas, nos rituais de passagens, nos embates, nas lutas, etc. O objetivo, portanto, não é "vencer a qualquer custo", mas algo mais próximo ao sentido do agon (9).

    Em resumo, os Jogos dos Povos Indígenas constituem-se espaços políticos de contato inter-étnico. As lideranças indígenas transpõem barreiras historicamente hostis e excludentes aos seus povos e ampliam a rede de figurações ao vincular suas ações ao Estado, aos movimentos sociais indígenas, às universidades, a outras organizações não governamentais.

     

    Maria Beatriz Rocha Ferreira é livre docente pela Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), doutora em antropologia pela Universidade do Texas (EUA) e coordenadora do Laboratório de Antropologia Bio-cultural, desde 1988. Desenvolve pesquisas em antropologia do jogo, esporte e povos indígenas.
    Manuel Hernández Vázquez é professor da Faculdade de Ciências da Atividade Física e do Esporte da Universidade Politécnica de Madri (Espanha), ex-coordenador do Museu de Esportes do Instituto Nacional de Educação Física da Universidade Politécnica de Madri.
    Vera Regina Toledo Camargo é doutora em comunicação com pós-doutorado em midialogia, coordenadora do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), ambos da Unicamp.
    Olga Rodrigues Von Simson é doutora em sociologia com pós-doutorado em sociologia pela Universidade de Tübigen (Alemanha), diretora do Centro de Memória da Unicamp e professora da Faculdade de Educação da Unicamp.

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Rocha Ferreira, M.B. et al. "Jogos dos povos indígenas". Relatório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Ministério do Esporte. 2006.

    2. Terena, C. J. "O importante não é ganhar, mas celebrar". Revista de História da Biblioteca Nacional, julho 2007.

    3. Vázquez, M.H.; Gómez, A.S.K.; Martin, P.J.J.; Vicente, D.B.R.; Rocha Ferreira, M.B.; Camargo, V.R.T. "Cultura de los Jogos dos Povos Indígenas". In: Perspectivas actuales de la animación sociocultural. Cultura, tiempo livre y participación social. Victor J. Ventosa (coord.). Editorial CCS, Alcalá, 166/28028 Madrid, 2006.

    4. Taussig, M. Mimesis and alterity: a particular history of the senses. New York/London: Routledge, 1993.

    5. Elias, N. & Dunning, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.

    6. Gallois, D.T. Patrimônio cultural imaterial e povos indígenas. IEPE, USP, 2006.

    7. Von Simson, O.R. de M. "Memória, cultura e poder na sociedade do esquecimento". In: Mendes Filho, Luciano (org.) Arquivos, fontes e novas tecnologias para a história da educação. Bragança Paulista/SP Universidade São Francisco, 2000.

    8. Fassheber, J. R. M.; Freitag, L.C.; Rocha Ferreira, M.B. "Jogos dos povos indígenas: um 'lugar' de negociações sociais". CDRom – Associação Brasileira de Antropologia GT 34 Povos indígenas: dinâmica territorial e contextos urbanos. Porto Seguro, BA, junho, 2008.

    9. Dunning, E. "Football in civiling process". In: Anais do V Encontro de História do Esporte, Lazer e Educação Física. Ijuí: Unijuí, 1997.

    10. Terena, M. "O Esporte como resgate de identidade e cultura". In: I Simpósio de Cultura Corporal e Povos Indígenas do Paraná: Jogos Tradicionais, Esporte, Dança, Cultura, Saúde e Educação. Unicentro – Iratí, pp. 34-40, 2001.

    11. Rocha Ferreira, M. B. & Vinha, M. "Olimpíadas na floresta". Revista de História da Biblioteca Nacional, pp.26-30, julho 2007.