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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.4 São Paulo Oct. 2008

     

    1968

    COMUNIDADE CIENTÍFICA REPENSA MOMENTO QUE MUDOU A SOCIEDADE

     

    Passeatas de estudantes. Confronto com a polícia. Universidades tomadas pelos jovens ou fechadas pelo governo. Paredes pixadas com frases que incitavam a revolução. Este era o cenário comum em 1968 nos países da Europa e da América, e até mesmo no Japão. As revoltas ao redor do mundo, o papel essencial da juventude e as profundas transformações que alardeavam fizeram com que maio daquele ano se tornasse um ícone de uma revolução que reconfigurou o mundo.

    As universidades foram o palco das maiores manifestações. Elas reproduziam a sociedade da época – autoritária, conservadora, fechada e estratificada – e também concentravam os "revolucionários", jovens que tinham acesso a informações e discussões internacionais.

    Nesse cenário, a França foi um marco por abrigar o movimento estudantil de maior força. Iniciou-se na Universidade de Nanterre, nos arredores de Paris, conhecida por acolher os jovens que não ingressavam no circuito superior tradicional (como a Sorbonne, a Escola Normal e a Escola Politécnica) e que estava se tornando um centro de contestação. Os protestos começaram no começo de 1968, contra o veto da palestra do psicanalista Wilhelm Reich e, mais tarde, contra a decisão do reitor de proibir os homens de freqüentarem os alojamentos femininos no campus. Contudo, os protestos eram contra toda a forma de proibição e repressão que havia. Liderado por Daniel Cohn-Bendit, o movimento estudantil ocupou Nanterre e foi duramente reprimido pela polícia. A resistência conquistou a simpatia dos estudantes de outras universidades e o apoio de outros setores sociais: sindicalistas, professores, funcionários, jornaleiros, comerciários e bancários. No dia 20 de maio, a mobilização atingiu seu auge: cerca de seis milhões de trabalhadores entraram em greve em toda a França e Paris amanheceu sem metrô, ônibus, telefones e outros serviços.

    UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO Apesar da força que as lutas estudantis tiveram na França e sua repercussão global, o movimento de maio de 1968 não se iniciou no país. "Acho um grande engano considerar que esse movimento tenha tido origem na França", explica a socióloga Maria Ribeiro do Vale, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de 1968: O diálogo é a violência (Ed. Unicamp, 2008). "Não podemos desconsiderar a importância dos acontecimentos na França. Mas dizer que tudo começou lá é a desconsideração de importantes fatos políticos que já ocorriam nos outros países", afirma.

    De fato, conflitos semelhantes já ocorriam em outros países desde o início do ano. Em janeiro, a Universidade de Louvain, na Bélgica, foi fechada após uma semana de conflitos entre estudantes e policiais. Em março, protestos estudantis em Madri provocaram a queda do ministro da Educação da Espanha; na Polônia, estudantes protestaram contra o regime socialista e a Universidade de Varsóvia foi fechada; três milhões de trabalhadores entraram em greve no Reino Unido; o exército ocupou a Universidade de Maracaibo, na Venezuela, e no conflito com estudantes, houve quatro mortes e outros 300 feridos. Em abril, uma tentativa de assassinato do líder estudantil Rudi Dutschke aumentou a tensão em Berlim, e a revolta se espalhou por dezenas de cidades alemãs; o assassinato do líder negro Martin Luther King e a reação à Guerra do Vietnã acarretaram vários conflitos sociais nos Estados Unidos.

    No Brasil, o movimento estudantil era o principal movimento social engajado na luta contra a ditadura militar, e já realizava protestos desde 1966. Em 1968, o primeiro grande conflito entre estudantes e policiais aconteceu em 28 de março, quando a polícia invadiu o restaurante universitário carioca Calabouço, ferindo vários estudantes e matando o secundarista Edson Luís. No dia 26 de junho, 100 mil pessoas participam de um protesto no Rio de Janeiro, também contra a violência policial que havia matado 28 populares que revidaram aos ataques dos policiais que tentavam impedir uma passeata estudantil. "As manifestações brasileiras estavam em sintonia com o que ocorria no mundo no período, mas tiveram a particularidade de inserir-se na luta contra a ditadura militar e civil que interrompera o processo democrático em 1964", lembra Marcelo Ridenti, sociólogo da Unicamp e autor de Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução (Record, 2000).

    REVOLUÇÃO CULTURAL Waldenyr Caldas, filósofo da Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo (USP), lembra que a revolução que eclodiu em 1968 foi fruto de uma agitação que começou em meados dos anos 1950, com o surgimento de uma nova movimentação artística na literatura, no cinema e, sobretudo, na música, que começa a incitar um desejo cada vez maior pela liberdade. Livros como Na estrada (On the road), de Jack Kerouac, filmes como Sementes da violência (Blackboard jungle), de Richard Brooks, e o rock de Bill Halley, Elvis Presley e Little Richard, são ícones da contestação da autoridade. "Os jovens não tinham liberdade nos anos 1950, se sentiam sufocados numa sociedade autoritária e castradora. Chega uma hora que precisam extravasar suas emoções, desejos, anseios, e fazem isso através da arte", diz.

    Com a indústria cultural se estabilizando pelo mundo afora, os produtos artísticos se disseminaram e catalisaram protestos com diferentes motivações. Na França, na Itália e na Espanha, lutava-se contra o autoritarismo social; na Polônia e na antiga Tchecoslováquia, o inimigo era o imperialismo soviético; nos Estados Unidos, a Guerra do Vietnã e a sociedade de consumo; no Japão, a Zengakuren (Federação Nacional das Associações Estudantis) protestou contra o mundo capitalista e contra o envolvimento do país na Guerra do Vietnã; e no Brasil, e em quase toda a América Latina, a luta era contra a ditadura militar e o imperialismo norte-americano. "Havia no ar um certo inconformismo, um sentimento generalizado de que transformações profundas estavam ao alcance das mãos, e de que o mundo caminhava para elas, tanto nos aspecto social e político mais amplo como no cotidiano das pessoas", afirma Marcelo Ridenti. A socióloga Maria Ribeiro acrescenta que "a vontade de mudar o mundo era o ingrediente comum desses movimentos; uma vontade coletiva, ou uma vontade de mudar o mundo coletivamente".

     

     

    REVISITANDO O ano de 1968 deixou marcas profundas na sociedade contemporânea. Foi o ponto de partida para uma série de transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais, que afetaram a sociedade de maneira irreversível. "O ano marcou a luta por uma nova individualidade e subjetividade, livres das convenções moralistas e racionalistas, sobretudo por parte da juventude. Além disso, trouxe para a esfera pública, politizando-as, novas questões, antes consideradas secundárias, como o feminismo e o direito das minorias", aponta Marco Napolitano, professor de história do Brasil independente na USP. "Hoje há um conceito muito aprimorado de cidadania. As relações sociais são mais respeitosas e, quiçá, mais humanizadas do que naquela época. Isso começou com a luta pela liberdade, que acabou desencadeando a luta pelos direitos humanos e o respeito pelas minorias", diz o filósofo Caldas.

    Segundo Maria Ribeiro, é importante "revisitar" a data na tentativa de retomar o espírito de transformação coletiva da sociedade. "A luta coletiva, a comunhão de idéias e ideais, as bandeiras de movimentos sociais parecem estar um pouco em declínio em um momento onde a sociedade de consumo parece cada vez mais reforçar interesses individualistas", conclui.

     

    Chris Bueno