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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.4 São Paulo Oct. 2008

     

     

    RESENHA

    UMA POSTURA INSURGENTE PARA NOVO DESENVOLVIMENTO URBANO

     

    Fobópole, o medo generalizado e a militarização da questão urbana é o mais recente livro do geógrafo Marcelo Lopes de Souza, coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Depois de outros livros como O desafio metropolitano (ganhador do Prêmio Jabuti, em 2001), Murar a cidade (2002), ABC do desenvolvimento urbano (2003), Planejamento urbano e ativismos sociais (2004), e A prisão e a ágora (2006), o autor aborda em profundidade a questão do medo nas cidades e encara de forma inteligente e destemida muitos dos vários temas que se relacionam diretamente com isso. O livro, portanto, não se resume a uma área do saber, ou a uma abordagem unilateral do tema, como é tão comum, mas transita por diferentes áreas, revelando nesse deslocamento constante uma posição política ousada e inovadora.

    Medo é um tema que tem merecido atenção redobrada nos últimos anos e tem sido mote de várias obras. Dentre elas, destaca-se o também recente Medo líquido (2008), do sociólogo Zygmunt Bauman (publicado originalmente em 2006) e a interessantíssima coletânea de textos Ensaios sobre o medo (2007), organizada pelo filósofo Adauto Novaes. Diante dessa produção, o trabalho de Marcelo Lopes de Souza tem um caráter mais direto e ancorado na realidade brasileira, ao mesmo tempo em que situa a questão num espectro mais amplo dos fenômenos mundiais. De fato, não é o caso aqui de contrapor em termos de qualidade essa produção acadêmica, toda ela fundamental para aqueles que se interessam pelo tema. Mas tão somente notar que, enquanto Bauman traz dicas singulares num tom mais ensaístico, e Novaes reúne, em sua maior parte, abordagens filosóficas do tema, Souza apresenta um trabalho que remete muito mais ao cotidiano vivido em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, e tem, portanto, um viés mais empírico.

    O autor observa o medo e a percepção de risco nas cidades como algo que deve ser visto além dos usos que são feitos dessa sensação, ou além de algo que é manipulado em prol de interesses econômicos. Não que isso esteja ausente do quadro atual, mas Souza encara medo e risco como realidade presente no dia-a-dia das cidades, ressaltando que mesmo que questões como violência e insegurança sejam preocupações que ocorrem em diferentes épocas e lugares, nem sempre o medo foi fator decisivo para modificar comportamentos, condicionar e estruturar as relações sociais e a organização espacial, como ocorre na atualidade. Trata-se de pensar, por conseguinte, em como a problemática da (in)segurança pública tornou-se fator de (re)estruturação do vida e do espaço urbanos.

    FALTA DIÁLOGO Entre segurança pública e pesquisa urbana, planejamento ou gestão da cidade, e política de segurança, Souza sinaliza uma lacuna e, portanto, a necessidade de um diálogo imprescindível, não apenas para vislumbrar os problemas com maior acuidade, mas também para pensar em avanços. Aliás, é essa uma das razões que o próprio autor destaca como importante motivadora para o livro. Para além dela, ele argumenta como impulsionadora da obra a existência de uma espécie de tabu, a saber, a reticência da esquerda (ou nas palavras do próprio autor, "do que sobrou da esquerda que mereça este nome") em discutir segurança pública, que deixa que a questão seja abandonada à direita. Por fim, o autor também destaca como uma razão importante e singular para o livro todas aquelas reações (nada construtivas) de grande parcela da sociedade diante dos problemas da segurança pública. Reações estas que para ele misturam "preconceitos, temores justificados, assimetrias sociais, ressentimentos e soluções parciais, escapistas e prenhes de efeitos colaterais".

    Assim, tendo como eixo estruturador do trabalho o medo nas cidades, e mais, uma época em que a cidade é dominada pelo medo, é uma fobópole, Souza desdobra a questão da violência e da insegurança trilhando, dentre outros rumos, o tema do tráfico de drogas e das favelas até os condomínios fechados, dos justiceiros à segurança privada, abordando o planejamento urbano centrado no Estado, a hiperprecarização do mundo do trabalho e questionando, de forma provocativa, as possibilidades e ações dos movimentos sociais numa era do medo.

    A postura bastante crítica e lúcida do autor surge numa linguagem atraente e leve, envolvendo o leitor mesmo que os conceitos e fissuras com os quais ele trabalhe ou aponte sejam complexos e profundos. No que diz respeito aos conceitos, Souza é extremamente cuidadoso, não abstendo-se de comentar e analisar em várias passagens do livro questões clássicas e sinuosas como aquelas que procuram definir espaço público e privado, racionalidade e razão, fragmentação das cidades. É nesse tratamento cauteloso que seu pensamento também se diferencia, apontando sua postura teórica e política. Em suma, o tratamento do autor sobre definições de conceitos que geraram (e continuam gerando) inúmeros debates intelectuais, não se resume a refazer o caminho já trilhado ou reprisar modelos teóricos e metodológicos a partir de novos dados empíricos, mas ousa ampliar as discussões ao trazer uma tomada de posição.

    ALTERNATIVAS Dentre outras coisas, para Marcelo Lopes de Souza é necessário encarar e levar a sério as estratégias alternativas (ou contraprojetos) dos movimentos sociais, entendendo-as como algo mais que uma gestão ou um planejamento críticos. De acordo com o próprio autor, "naqueles casos em que se está diante de um estilo verdadeiramente horizontal e antiautoritário, o planejamento e a gestão insurgentes, que são uma modalidade radical do planejamento e da gestão críticos, se apresentam efetivamente, como autoplanejamento e autogestão". Nesse sentido, a promoção de avanços, por exemplo, passa pela compreensão da democracia como autonomia coletiva e autogestão, e, apenas nessa compreensão mais radical, seria possível aproveitar de forma condicional e cautelosa os canais e espaços participativos institucionais já existentes. São por rumos insurgentes como esse – que, na opinião do autor corroboram para a criação de um projeto de autonomia – que podemos nos desviar deste cenário atual em que além da companhia constante do medo e da vigilância, têm-se mais violência como solução para a violência.

     

    Marta Kanashiro