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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.4 São Paulo oct. 2008

     

    CINEMA

    A EDUCAÇÃO MUSICAL COMO FORMA DE LUTA

     

    Diretor de dez longas-metragens, entre adaptações literárias como Sagarana, o duelo (1974), Policarpo Quaresma - herói do Brasil (1998) e O vestido (2003), e documentários como O poeta de sete faces (2002) ou Coisa mais linda: histórias e casos da bossa nova (2005), Paulo Thiago acaba de lançar seu 11º filme: diferente dos trabalhos anteriores, Orquestra dos meninos é uma ficção baseada em fatos reais.

    O filme conta a trajetória do jovem maestro Mozart Vieira, 25 anos, que cria uma orquestra de jovens no interior de Pernambuco, para interpretar obras de grandes eruditos como Mozart, Bach e Villa Lobos. Inicialmente, enfrenta a reação local contra a iniciativa mas, maestro e crianças, conseguem superar os obstáculos e acabam tocando na praça, igreja e demais lugarejos da comunidade. Ao ser criada, a Fundação Música e Vida recebe apoio do governo e o sucesso dos músicos atinge a imprensa e um programa de audiência nacional vai ao ar. A orquestra liderada por Mozart chega a tocar para o presidente da República, em Brasília. Quando o maestro começa a ser visto como uma liderança em ascensão, desagrada políticos locais e, a mando de poderosos da região, um dos músicos é seqüestrado e a orquestra começa a sofrer ameaças. O seqüestro repercute e a opinião pública se mobiliza. O maestro chega a ser chamado de louco, de ter forjado o seqüestro e de ser chefe de uma seita secreta. A justiça determina um exame psiquiátrico de Mozart e a Fundação Música e Vida é fechada. Artistas como Ivan Lins, Geraldo Azevedo, Caetano Veloso e outros, junto a Dom Helder Câmara, bispo de Pernambuco, deflagram um movimento de reação em defesa de Mozart e sua orquestra. A campanha pelo maestro movimenta a imprensa, o processo judicial é arquivado e a Fundação é reaberta. Em 2007, a ONG atende a duzentas crianças, com o mesmo Mozart Vieira à frente dos trabalhos.

    A sinopse do filme nada mais é que um resumo dos fatos que cercaram a criação da orquestra, até seu desfecho, com a recuperação de Mozart e seu projeto social. Orquestra dos meninos é lançado num período de rica confluência entre ficção e documentário no cinema brasileiro, na esteira de filmes como Cidade de Deus (dir. Fernando Meirelles, co-dir. Kátia Lund, 2002), Carandiru (dir. Hector Babenco, 2005) ou até mesmo Tropa de elite (dir. José Padilha, 2007). Além disso, toca em problemas brasileiros persistentes, como o coronelismo e a impunidade em diversas regiões do Brasil, dominadas como feudos. Orquestra dos meninos levanta também o papel da imprensa na cobertura de crimes, o que nos faz lembrar do triste caso da Escola Base, em São Paulo, que teve início em março de 1994.

     

     

    Como surgiu o projeto do seu último filme?

    Paulo Thiago - O projeto nasceu quando li, em 1995, uma matéria no jornal O Estado de S. Paulo sobre a história do maestro Mozart Vieira, que criara uma orquestra de meninos em São Caetano, tirando as crianças do campo e da rua para ensiná-las música clássica. A matéria tratava do êxito do maestro e, em seguida, o texto abordava o seqüestro do garoto clarinetista, Erinaldo, bem como as acusações do maestro ter forjado o crime, ser chefe de seita e pedófilo. O jornalista entrevistara todo mundo e assistira à reconstituição do crime, feita de forma espalhafatosa pelo delegado do caso. Vi, naquela notícia, um filme.

    Como foi o trabalho de pesquisa para o roteiro desse filme de ficção?

    Pesquisamos tudo. A repercussão da história passo a passo, na mídia escrita e televisiva, local e nacional, desde o início. Os autos do processo judicial e policial também. Entrevistamos todos os envolvidos: o maestro, o delegado, o prefeito, os meninos da banda, Erinaldo e seu pai, que tinha dado declarações contra Mozart Vieira e depois voltara atrás. Erinaldo foi depois trazido ao Rio para uma longa entrevista de dois dias. Tínhamos que passar a história a limpo. Após isso, levei três anos trabalhando o roteiro.

    Sua obra costuma se dividir entre adaptações de grandes autores brasileiros e documentários sobre arte ou cultura brasileira. Adaptar fatos reais implica em alguma técnica – ou sensação – nova?

    Dei um tempo nas adaptações e nos roteiros originais, fiquei fascinado por filmar uma história real. E sem ser um documentário. Uma ficção baseada nos acontecimentos. A ficção te aproxima e distancia dos fatos. É um trabalho muito difícil. Tem de ser fiel e inventar ao mesmo tempo.

    Seu último trabalho foi um documentário sobre a bossa nova e, em filmes como Policarpo Quaresma, percebe-se uma certa intimidade sua com a música. Agora, Orquestra dos meninos. O que a música representa no seu trabalho como cineasta?

    A música foi a segunda arte a me expressar depois da poesia juvenil. Toquei violão na época da bossa nova. Com Sidney Miler participei de Festivais da Canção, nos anos 1970. A música erudita esteve presente desde a minha infância, pois minha irmã estudava piano clássico. Hoje em dia invadiu completamente a minha vida, com meu filho Paulo Francisco, que estuda e toca piano erudito na Espanha. A música para mim é a mais importante, a maior de todas artes, trabalha com uma língua universal, sentida e ouvida por qualquer homem em todo o planeta. Quem pode comparar algo a um concerto de Beethoven? Talvez somente Shakespeare ou as tragédias gregas, que estão até hoje conosco. Mesmo assim, prefiro uma cantata de Bach ou uma ópera de Mozart. Questão de gosto. E não venham me dizer que apenas um público selecionado se emociona com música erudita. Quando se tocam grandes concertos para o povo, ele enche os parques, jardins e estádios.

    Orquestra dos meninos é um melodrama? Qual sua relação pessoal e profissional com esse gênero?

    Adoro o melodrama. Os de alta qualidade, como os de Visconti, Buñuel, Bolognini, os italianos e alguns americanos dos anos 1950, como os de Mark Robson. Cheguei a filmar um – O vestido – inspirado no poema de Carlos Drummond de Andrade. É um gênero pouco valorizado pelos intelectuais que nem entendem bem o que é. Quando  falamos que Central do Brasil, do Walter Salles, ou que Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti são melodramas, não entendem nada. Orquestra dos meninos não é um melodrama. É um filme musical, de denúncia social e política. Em certo momento, não deixa de ser um thriller. É o cinema da linha de um Costa-Gravas ou Gillo Pontecorvo. Não trabalha com grandes sentimentos, mas com as emoções e a força dos fatos reais.

    O documentarismo brasileiro parece estar passando por uma ótima fase. No campo da ficção, alguns dos filmes de maior sucesso são baseados em fatos reais ou, pelo menos, no testemunho de pessoas. Como você avalia esse cruzamento do documentário com a ficção no cinema brasileiro atual?

    Não gosto de fazer grandes avaliações. O cinema brasileiro atravessa um momento de diversas linguagens e gêneros. De novos cineastas e veteranos. De documentários e ficções de todo tipo, experimentais e populares. Há na verdade poucos filmes baseados em  histórias reais verdadeiras. Há muito mais filmes além de Cidade de Deus, Carandiru, Meu nome não é Jonhny. Tropa de elite é baseado numa apresentação daquele universo, não numa história acontecida de fato. De qualquer forma, a adesão do público mostra que há um desejo de se informar e entender o país que vivemos, a violência urbana que atinge a todos, do vizinho ao nossa lado, aos que moram nas favelas e nos subúrbios. Há fatores de psicologia social, do jornalismo, da "fome de verdades" . Ninguém quer se deixar enganar mais.

     

    Alfredo Luiz Suppia