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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.4 São Paulo Oct. 2008

     

    CENTENÁRIO

    MACHADO DE ASSIS: ENTENDENDO O HOMEM E O ESCRITOR

     

    A palestra do economista e professor da PUC do Rio Gustavo Franco, às 18h de 4 de julho passado na Festa Literária de Paraty (Flip), pareceria, à primeira vista, destoar das inúmeras falas de escritores e críticos literários sobre a obra de Machado de Assis, escritor homenageado no evento de 2008 por conta do centenário de sua morte. Sob o título "A economia em Machado de Assis", Franco, ex-presidente do Banco Central entre 1993 e 1999, e um dos condutores da implantação do Plano Real, estava ali para tratar desse novo viés de estudo da obra machadiana, abordado em seu livro, lançado um ano antes, com o mesmo título de sua palestra e bem recebido pelos estudiosos do escritor.

    Gustavo Franco participou da chamada Flip Etc, que ocorre paralela à Flip principal e não reúne escritores, mas discute aspectos laterais à literatura, como cultura, jornalismo, cinema, música, teatro, exposições entre outros. Mas são justamente os etceteras que têm sido os pontos mais abordados atualmente na obra do "Bruxo do Cosme Velho", como Machado era chamado. Além da economia, os últimos lançamentos mostram o trabalho do escritor como tradutor, como a sua obra refletia o período histórico em que viveu, como se portava sendo um afro-descendente e diversos outros olhares sobre sua obra.

    Em A economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo do acionista, Franco analisa as crônicas publicadas entre 1883 e 1900 na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. O período é bastante fértil em termos de acontecimentos políticos: houve o encilhamento, a abolição dos escravos, a proclamação da República e, no âmbito exclusivamente econômico, importantes reformas bancárias e uma forte crise cambial e financeira. Em entrevista à Ciência & Cultura, o economista disse acreditar que o grande achado do seu livro foi reunir, em um único volume, uma série de crônicas com um personagem que Machado chama de o acionista. "Ao serem [as crônicas] colocadas juntas e em ordem cronológica, esse personagem surge com clareza e se mostra revelador", afirma.

     

     

    No livro, além de organizar as crônicas em que o acionista aparece, Franco insere comentários sobre o contexto econômico em que os textos foram escritos. "Machado encontrou na crônica um terreno especialmente fértil, onde misturava diferentes acontecimentos e objetos, mas a partir de um elenco de acontecimentos semanais, sobre os quais não tinha controle. O que era ainda mais interessante, como oficina literária, é que o ficcionista, na condição de cronista, tivesse que fazer o exercício de amarrar eventos desconexos e colocá-los a serviço de um enredo sobre o Brasil", conta.

    Coube a Roberto Schwarz, um dos principais estudiosos da obra de Machado, abrir a Flip com a conferência "A poesia envenenada de Dom Casmurro", em que destacou a famosa ironia do autor: "escreve em primeira pessoa, mas como se fosse em terceira, quer dizer, ele mostra na pessoa dele, todo o mal que ele pensa da terceira pessoa, de um outro. É como se nós, diante de um inimigo, começássemos a imitá-lo para mostrar que ele não vale nada", explica.

    A ironia enfatizada por Schwarz em sua palestra é, também, a característica do acionista de Machado, tratado por Franco. Muitas vezes ele tem voz em primeira pessoa, seguindo o estilo da poesia envenenada de Dom Casmurro. O personagem possui um olhar estranho sobre o mundo da economia. Ele não quer comparecer às assembléias, não quer ouvir as considerações da administração; ele só quer saber dos dividendos. Gustavo o define como um rentista, somente preocupado com a realização do lucro, e afirma que esse é um reflexo do capitalismo nos tempos do Império. "A empresa do acionista naquele período é uma espécie de emanação do imperador, é parte de um capitalismo que não é de verdade. É um capitalismo político. Portanto, o Machado está fazendo uma ironia finíssima e profunda sobre o capitalismo de mentirinha em que nós vivíamos, especialmente no Império", conclui.

    As crônicas avançam o período da República e o acionista é tragado pelo furacão de modernidade pelo qual o país passou. Ele aparece aflito com a especulação e se revolta com as fortunas feitas da noite para o dia. Conforme os anos vão se passando, o acionista volta a se comportar da mesma maneira, indo às assembléias só pensando no lucro. Gustavo entende esse movimento como uma conclusão de Machado de que, embora muita coisa tivesse mudado, o Brasil não havia caminhado para outro estado, continuando com um capitalismo muito patrimonialista e cheio de privilégios.

    DIFERENTES ENFOQUES EM MACHADO Outra especialista em Machado de Assis, a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Regina Zilberman, acredita que esses estudos mais enviesados acontecem, primeiramente, porque hoje se tem acesso a mais textos do autor. "São perspectivas válidas, pois elas rompem com aquela visão ilhada do escritor, como se fosse uma exceção, uma coisa fora do lugar. Podemos, inclusive, perceber diversas preocupações do Machado, como a preocupação com a profissionalização do escritor, o que o revela como um homem muito mais ativo, enfim, uma figura humana e não uma ave rara", reflete.

    Para Regina, um marco desse tipo de estudos talvez seja o trabalho de Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, que mostra o processo literário-social da obra machadiana. Segundo ela, essa perspectiva estimulou estudos inclusive no exterior. "Nós temos críticos como o John Gledson, na Inglaterra, e numerosos brasilianistas pelo mundo afora, que se dedicam à obra de Machado de Assis, que está na linha de frente da recepção da literatura brasileira fora do Brasil", diz a pesquisadora.

    Para a comemoração do centenário de Machado, uma série de publicações e eventos está em andamento. A Rede Globo pretende exibir uma mini-série chamada Capitu, adaptação do romance Dom Casmurro. Estão sendo lançados livros com as correspondências de Machado, almanaques e reedições comemorativas. A Casa de Machado, no Rio, também programou encontros com estudiosos brasileiros e estrangeiros. "O centenário colocou o escritor com bastante força na mídia", observa Regina.

    Tantos eventos e publicações ratificam a importância de Machado de Assis no contexto da literatura brasileira. "Sua obra continua muito moderna, tem pouca descrição e bastante diálogos, o que aumenta o interesse do leitor. Além disso, Machado foi extremamente polivalente e plural. Ele atuou em todas as manifestações escritas do seu tempo, desde parecer de processo até teatro, crônica, poesia, contos e romances, adequando muito bem a linguagem ao gênero em que discursava. Agilizou uma língua mais brasileira, captando o básico do vocabulário, tanto que não se encontra palavras arcaicas em sua obra, mesmo já tendo passado mais de 100 anos de escrita. O destaque são os temas abordados pelo escritor, como o adultério feminino que, em 1868, era transgressivo", conclui a pesquisadora.

     

    Luciano Valente