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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.4 São Paulo Oct. 2008

     

     

    LEANDRO SARMATZ

     

    SCHADENFREUDE

     

    Saí, não pretendo voltar, acabei pegando aquela grana que você havia guardado
    para a nossa viagem a Nova York, deixei a chave do carro e o celular
    em cima da mesa da cozinha. NÃO SE PREOCUPE.

     

    "Não se preocupe": ela sequer havia assinado o próprio nome no bilhete de sua despedida. Foram dias meio estranhos aqueles da minha chegada, quando a fúria que eu cozinhava dentro de mim desde o vôo da Iberia que me levava de volta ao Canadá se transformou, como se por uma reação química, em algo próximo ao sentimento de desamparo. Um metabolismo caprichoso. E logo em seguida, em desespero masculino puro e simples. Durante dias eu fiquei lendo aquele bilhete, dando especial atenção ao "Não se preocupe" como se tudo se tratasse de uma charada amorosa, uma dessas peças que os amantes costumam pregar um no outro, o tipo de artifício que poderia estar em alguma comédia shakesperiana, talvez, com suas brigas e reconciliações. Assim que me recuperei um pouco do choque, telefonei para a amiga dela, a mulher do meu amigo patologista. Foi ele que atendeu, disse que sabia o que estava acontecendo, que era meu amigo, devíamos sair para encher a cara, toda essa conversa previsível. Eu agradeci mas disse que precisava falar com esposa dele. Ele fez um comentário qualquer que eu não entendi e por isso ignorei, e então ela veio falar comigo ao telefone. Antes que eu pudesse começar ela já foi dizendo que tinha nojo de mim, que a história toda era a coisa mais sórdida que ela já tinha visto. E desligou o telefone. Eu fiquei meio apático com todos esses acontecimentos, e, talvez por algum tipo de reação instintiva, voltei à rotina na universidade. Desnecessário dizer que meu amigo patologista sumiu do mapa.

    Uma ocasião, cerca de dois ou três meses mais tarde, dirigindo por uma estrada a caminho de Toronto, parei para comer alguma coisa em um diner caindo aos pedaços, Tommy's (seria uma homenagem à ópera-rock do The Who de que você tanto gosta? Acho improvável...). Fiz o meu pedido e a garçonete, percebendo meu sotaque, perguntou se eu era carioca. "Tive um namorado carioca", me disse, e eu respondi que era brasileiro mas não carioca, que só aquele que vem do Rio de Janeiro pode ser chamado assim. Ela insistia no "carioca"; e até agora penso que esse, para ela, era o gentílico usado para designar todos os brasileiros. Ela disse que algumas semanas antes uma outra "carioca" estivera lá à procura de emprego. Era jovem (mais ou menos 20 anos), magra e tinha o cabelo curto. A descrição batia com ela, nem preciso me alongar mais. Isso me pôs em parafuso, pois eu poderia jurar que ela voltara ao Brasil, afinal o dinheiro que ela levou não era pouco, dava para comprar uma passagem até São Paulo. Sei que depois disso vaguei com o meu carro durante dias, parando em todas as bibocas possíveis, sempre cuidando para ver se a encontrava em diners, postos de gasolina, hotéis de beira de estrada, toda essa paisagem que é praticamente igual em qualquer parte do mundo, o kitsch supremo do século XX, com seus letreiros luminosos, logotipos, nomes com apóstrofes e uma gente tristíssima engolindo café com algum tipo de grude qualquer. Tudo parecia um delírio, quem me visse pensaria que eu estava chapado dentro do carro. Cheguei a cogitar em atravessar o país inteiro, chegando até Vancouver. O que eu diria, porém, se a encontrasse – haveria ódio ou amor nas minhas palavras?

    Ela não está com você, está? Quero crer que não. Toda essa mentira deve cobrar um preço alto, e nem mesmo o pai mais amoroso poderia receber de braços abertos a autora de uma história tão suja. Espero não estar sendo excessivamente maniqueísta. Ou estou?

    Não sei. Fico pensando se você, mesmo sabendo de todas essas peripécias, mentiras e especulações, poderia estar experimentando uma espécie de schadenfreude. O sujeito que (supostamente) ajudou a sua filha a abandoná-lo, o canalha que estava de olho nela desde que ela tinha 14 anos de idade e que de certa forma a "raptou" para o Canadá pouco tempo depois da morte da sua esposa, agora também vive à deriva, abandonado no longo inverno do hemisfério norte. Porque, convenhamos, isso é puro schadenfreude, a alegria destemperada pela qual somos tomados diante da tragédia alheia. Você lembra como os alemães costumam se pronunciar sobre o assunto? Foi você quem me ensinou. É mais ou menos assim: schadenfreude é a alegria mais bela, porque é sincera. Tenho a mais absoluta convicção que, fossem outras as circunstâncias (e evidentemente se não estivéssemos tratando do desaparecimento daquela mentirosa da sua filha depois de uma série de invenções ultrajantes), eu conseguiria ouvir daqui, ressoando entre os milhares de quilômetros que me separam de você nesse momento, a sua imensa gargalhada.

     

    Leandro Sarmatz nasceu em Porto Alegre, em 1973. Mora em São Paulo desde 2001. Jornalista e mestre em letras pela PUC-RS. Tem ficções e poemas publicados em Cacto, Jandira, Inimigo rumor, Zunái, entre outras revistas.