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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.spe1 São Paulo July 2008

     

     

    NOTAS SOBRE UTOPIA

     

    Marilena Chauí

     

    I

    A utopia nasce como um gênero literário — é a narrativa sobre uma sociedade perfeita e feliz — e um discurso político — é a exposição sobre a cidade justa.

    Há pelo menos três aspectos curiosos no uso dessa palavra.

    O primeiro é que foi inventada no século XVI por Thomas More — Utopia é o título de uma obra escrita por esse filósofo —, porém passou a ser empregada para designar narrativas e discursos muito anteriores, como, por exemplo, a cidade ideal na República de Platão, ou o projeto arquitetônico da cidade perfeita traçada pelo geômetra e astrônomo grego Hipodamos de Mileto, que, aplicando a geometria e a astronomia ao plano urbanístico, concebeu a cidade de acordo com a harmonia cósmica, ou ainda a descrição da Idade de Ouro nos poemas dos latinos Virgílio e Ovídio.

    O segundo diz respeito ao sentido dessa palavra. Em grego, tópos significa lugar e o prefixo "u" tende a ser empregado com significado negativo, de modo que utopia significa "não lugar" ou "lugar nenhum". Aliás, numa carta a Erasmo, Thomas More, inventor da palavra, enfatiza que a emprega no sentido negativo ou do "lugar nenhum". Aliás, é notória a presença de palavras negativas nessa obra de More, isto é, de palavras que se iniciam pelo prefixo grego "a", que também possui sentido negativo: a capital da ilha de Utopia é Amaurote, a não-visível, situada às margens do rio Anhydria, sem água, seus habitantes são os Alaopolitas, sem cidade, governados por Ademos, príncipe sem povo, e seus vizinhos são os Achorianos, homens sem terra. O significado negativo da palavra utopia indica o traço definidor do discurso utópico, qual seja, o não-lugar é o que nada tem em comum com o lugar em que vivemos, a descoberta do absolutamente outro, o encontro com a alteridade absoluta. No entanto, um outro prefixo grego, "eu", é usado para dar um sentido afirmativo ou positivo a uma palavra, indicando nobreza, justeza, bondade, abundância. Assim, por exemplo, referindo-se à finalidade da política, Aristóteles usa eu zon para significar viver feliz ou bem-viver. O sentido positivo pode ser observado em inúmeras palavras, como eubosía, a boa pastagem ou a pastagem abundante; eugéneia, nobreza de origem; eudaimonía, felicidade, prosperidade; eunóesis, benevolência; eupraxía, boa conduta, ação reta. Assim, o sentido positivo veio naturalmente acrescentar-se ao sentido negativo, de maneira que utopia significa, simultaneamente, lugar nenhum e lugar feliz, eutópos. Ou seja, o absolutamente outro é perfeito.

    O terceiro aspecto curioso, que, aliás, nos concerne diretamente, refere-se à afirmação, hoje corriqueira, sobre o declínio ou o fim da utopia, decorrente do fracasso das revoluções socialistas, do refluxo do movimento operário mundial e do descrédito que pesa sobre o marxismo. Isso é curioso porque, como sabemos, Marx criticou as utopias e Engels escreveu uma pequena obra intitulada Socialismo utópico e socialismo científico, na qual comparava e opunha duas concepções do socialismo e, como Marx, recusava o socialismo utópico. Assim, é curioso que essa crítica seja esquecida e que o marxismo seja interpretado como utopia.

    Todavia, talvez esses três aspectos sejam curiosos apenas em aparência e sob eles se encontrem razões que os expliquem. Ou melhor, é possível que a própria definição do que seja a utopia implique os três aspectos mencionados.

    Bronislaw Baczko propõe a seguinte definição de utopia:

    representação imaginada de uma sociedade que se opõe à existente a) pela organização outra da sociedade tomada como um todo; b) pela alteridade das instituições e das relações que compõem a sociedade como um todo; c) pelos modos outros segundo os quais o cotidiano é vivido. Essa representação, menos ou mais elaborada nos detalhes, pode ser encarada como uma das possibilidades da sociedade real e leva à valorização positiva ou negativa desta sociedade (Baczko, 1978, p. 405).

    Em outras palavras, a utopia, ao afirmar a perfeição do que é outro, propõe uma ruptura com a totalidade da sociedade existente (outra organização, outras instituições, outras relações, outro cotidiano). Em certos casos, a sociedade imaginada pode ser vista como negação completa da realmente existente — como é o caso mais freqüente das utopias —, mas em outros, como visão de uma sociedade futura a partir da supressão dos elementos negativos da sociedade existente (opressão, exploração, dominação, desigualdade, injustiça) e do desenvolvimento de seus elementos positivos (conhecimentos científicos e técnicos, artes) numa direção inteiramente nova — como foi o caso, por exemplo, das utopias francesas do século XVIII, anteriores e posteriores à Revolução Francesa. Neste segundo caso, compreende-se que utopia possa significar eutópos e que o socialismo, por surgir de uma revolução integral, pudesse ter sido visto por muitos como utopia, apesar de Marx e Engels.

    O fundamental, porém, é que em qualquer desses sentidos — ruptura completa, desenvolvimento do que há de melhor numa sociedade existente — só pode haver utopia quando se considera possível uma sociedade totalmente nova e cuja diferença a faz ser absolutamente outra.

    II

    Antes de examinarmos a gênese das utopias, a partir da Renascença, e as críticas às concepções utópicas feitas a partir do século XIX, consideremos brevemente as principais características da utopia. Em sua busca da alteridade perfeita, a utopia:

    1. É normativa, isto é, propõe um mundo tal como deve ser, em oposição ao mundo de fato existente.
    2. É sempre totalizante e crítica do existente, ou seja, só há utopia quando há a representação de uma outra sociedade que negue ponto por ponto a sociedade existente, isto é, instituições, valores cívicos, éticos, estéticos e cognitivos, forma do poder, forma da propriedade, leis, permissões e proibições, forma da religião, forma da família e das relações pessoais entre adultos, entre estes e as crianças, os idosos etc. A utopia é criação de um mundo completo.
    3. É a visão do presente sob o modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da corrupção e da rapina, do pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das carências, ou seja, o presente é percebido como violência.
    4. É radical, buscando a liberdade e a felicidade individual e pública, graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo e sociedade, sociedade e Estado, cultura e humanidade, e à restauração de valores esquecidos ou descurados como a justiça, a fraternidade e a igualdade.
    5. É uma maneira peculiar da imaginação social, que busca combinar o irrealismo, ou a crença na total transparência do social, e o realismo, por meio da apresentação dos mínimos detalhes da nova sociedade. A transparência é considerada o princípio fundamental da nova sociedade, que não oculta nem dissimula nenhum de seus mecanismos e nenhuma de suas operações. Os detalhes, por seu turno, servem para dar concreticidade à nova sociedade imaginada e cada detalhe exprime o todo e o simboliza. Dessa maneira, as instituições são signos do novo, do todo e da interiorização coletiva da boa sociedade.
    6. É um discurso cujas fronteiras são móveis, ou seja, a utopia pode ser literária, arquitetônica, religiosa, política. Eis por que se pode falar em política utópica, arte utópica, ciência utópica, filosofia utópica, religião utópica. O fundamental, porém, é que esse discurso não é um programa de ação, mas um exercício de imaginação. Em outras palavras, o utopista é um revolucionário ou um reformador consciente do caráter prematuro e extemporâneo de suas idéias que, por isso, não podem ser postas como um programa. Como escreve Claude Gilbert Dubois, o discurso utópico permanece no plano potencial e hipotético, referido "a um possível que não traz consigo mesmo forçosamente a certeza de sua realização". No entanto, o discurso utópico pode inspirar ações ou uma utopia praticada, que assume o risco da história, mas com a finalidade de alcançar o fim da história ou do tempo e atingir a perenidade.

    III

    Recordemos, brevemente, as condições históricas que fizeram esse gênero de discurso surgir durante a Renascença, portanto, entre os séculos XV e XVI.

    Como já observamos, o termo utopia passou a ser empregado para referir-se a obras anteriores à Utopia de Thomas More. De fato, sob o impacto da obra de More, foram chamadas utópicas obras como a República de Platão, a Eneida de Virgílio, os poemas de Ovídio sobre a Idade de Ouro, o relato bíblico do Paraíso Terrestre e, particularmente, a esperança milenarista ou o simbolismo profético medieval do abade franciscano Joaquim di Fori, que interpretara a história segundo a imagem de três eras ou idades, a terceira e última das quais seria um tempo de sabedoria, sem escravos nem senhores, regida pelo amor e pela amizade, pelo espírito e pela liberdade. No entanto, ainda que todas essas obras pudessem de alguma maneira inspirar Thomas More, o sentido preciso do vocábulo utopia pertence à Renascença.

    Destaquemos alguns aspectos do pensamento renascentista que estarão presentes na Utopia de More. Antes de mais nada o humanismo, ou seja, distanciando-se do teocentrismo medieval, a Renascença dá ao homem o lugar central. Desenvolve a idéia de que o homem é dotado de capacidade e força não só para conhecer a realidade, mas sobretudo para transformá-la, idéia que transparece num adágio que será celebrizado por Francis Bacon: "o homem é o arquiteto da Fortuna", ou seja, o homem é senhor de sua sorte ou de seu destino. O humanismo exalta a razão humana, a lógica e a experiência no plano do conhecimento, e a vontade no plano da ação, isto é, o poder para dominar, controlar e governar os apetites e as paixões. O homem é, pois, capaz de guiar-se a si mesmo, desde que, por meio da razão e da vontade, estabeleça normas de conduta e códigos para todos os aspectos da vida prática. Essa idéia da racionalidade e do poder da vontade conduz a duas outras idéias, essenciais para o surgimento das utopias: a de que os homens valem por si mesmos, independentemente de privilégios de nascimento e sangue, de maneira que a oposição entre ricos e pobres é injusta e fonte das revoltas que destroem os Estados; e a de que é possível organizar um Estado sereno, feliz, glorioso e perfeito, fundado na eqüidade e dirigido por um verdadeiro príncipe. Além disso, as viagens marítimas e a descoberta de novas terras e novos povos iriam inspirar a fantasia da sociedade perfeita de homens igualitários vivendo em plena harmonia com a natureza, tanto assim que a Utopia de More inaugura uma narrativa em que a descrição da cidade ideal é feita por um viajante, que navegou por mares nunca dantes navegados. A cidade ideal tende a ser colocada numa ilha cuja localização permanece desconhecida e à qual o viajante chega por acaso, em geral em decorrência de um naufrágio. Em outras palavras, as utopias tendem a ser viagens imaginárias a ilhas desconhecidas, nas quais os humanos exercitam plenamente suas capacidades benfazejas.

    O humanismo político renascentista possui duas vertentes principais: a republicana e a monarquista. Os republicanos afirmam que o valor político fundamental não se encontra nas qualidades pessoais do governante e sim na liberdade. Se esta é o valor político supremo, que riscos podem ameaçá-la? Aqueles trazidos pela desigualdade. A liberdade só pode ser conservada por meio da igualdade, isto é, da justiça. Os monarquistas afirmam que o valor político fundamental é a paz. Que riscos podem ameaçá-la? A existência de facções, que acendem conflitos e rebeliões. A paz só pode ser conservada por meio da ordem, isto é, da lei. Essas duas vertentes do pensamento político serão reunidas na Utopia de More.

    Vivendo numa Grã-Bretanha sacudida pelos tumultos da Reforma protestante e da Contra-Reforma católica, das lutas políticas e religiosas de facções que se digladiam no Parlamento e em campos de batalha, no período do surgimento da monarquia absoluta dos Tudors, ou de Henrique viii, que prefere a adulação, a corrupção e a mentira em vez da prudência e da verdade, Thomas More inventa uma sociedade ideal, na qual reinam a liberdade e a igualdade, a paz e a ordem, a justiça e a lei. Como é isso possível? Pela supressão da causa da desigualdade, isto é, a propriedade privada da terra com seus privilégios; e pela supressão da causa das facções e dos conflitos, isto é, o Estado como instância separada da sociedade e as igrejas, portadoras da intolerância religiosa. Em Utopia, vigora a democracia direta, fundada na vontade coletiva guiada por homens virtuosos, e reina a tolerância religiosa. Opondo-se à pobreza e à injustiça, à corrupção e à desordem, à adulação e à mentira, o livro de More volta-se para a dignidade do trabalho e a crítica da ociosidade, propõe o planejamento da produção econômica e a distribuição igualitária dos bens, imagina a organização do tempo livre como momento não apenas de lazer e entretenimento, mas de dedicação à ciência e às artes, para que os homens possam viver segundo a razão e em harmonia com a natureza.

    Não vamos aqui examinar o livro de More, mas assinalar um conjunto de aspectos que passaram a operar como modelo para obras e discursos utópicos.

    1. A utopia é busca da cidade feliz ou justa, cujo fundamento se encontra na excelência da legislação, ou na lei, e na pedagogia ou na educação dos cidadãos segundo a justeza e excelência da lei.
    2. A utopia busca a estabilidade social e política, ou a estabilidade institucional, conseguida porque a fundação política é obra de um legislador excelente, que legisla para um povo novo, ainda não corrompido socialmente.
    3. A utopia instaura a identificação de cada indivíduo com a lei ou com o Estado, ou seja, o consenso perfeito, a unanimidade das vontades dirigidas para um mesmo fim, de maneira que não há conflitos nem sedições.
    4. A cidade ideal exerce uma vigilância permanente sobre todos os seus membros: o Conselho Dirigente costuma ocupar um palácio de vidro ou de cristal, de onde cada habitante possa ser visto, ficando sempre exposto ao olhar de todos.
    5. A cidade ideal é coletivista: desaparece a família como núcleo social e os casamentos estão submetidos a regras sociais destinadas a manter o amor e a sexualidade sob controle; desaparecem a propriedade privada e o dinheiro, cada um recebendo segundo suas necessidades e capacidades, de maneira que estão eliminadas a desigualdade e a competição. A felicidade é sempre coletiva, cada um oferecendo-se como espelho para todos os outros.
    6. A cidade ideal é insular, isto é, uma ilha isolada de todo o restante do mundo e cuja localização permanece secreta de modo a mantê-la protegida de ataques, invasões e más influências. Além de isolada e ilocalizada (donde u-topia), a cidade ideal é geométrica e arquitetonicamente planejada, ou seja, é produto de um urbanismo racional deliberado, que organiza o espaço segundo exigências sociais, políticas e econômicas. O urbanismo geométrico significa que a razão humana domina a desordem da matéria e os caprichos da natureza e da história. Escreve Raymond Trousson:

    a cidade é o espelho e a medida do homem […] o espaço fechado é a imagem da perfeição realizada […] A figura geométrica fixa as formas e delimita sem equívocos um mundo à parte, pois a cidade utópica dobra-se sobre si mesma, sem contato com o exterior para evitar a corrupção […]. Nada é caótico ou deixado ao acaso, mas tudo é regrado e previsto, pois o urbanismo e a arquitetura estão encarregados de refletir o estado moral da cidade (Trousson, 2004, p. 42).

    1. O lugar do poder é claramente demarcado, tanto pela localização central quanto pelas características dos edifícios, que se distinguem das habitações. Estas tendem a ser homogênas e simples, enquanto a sede do poder civil tende a ser grandiosa e portentosa.
    2. A cidade ideal é bela e esplendorosa, arborizada, florida, ampla, clara, limpa, com edifícios públicos de mármore, rubi, safira, ouro e prata, enquanto as habitações particulares são simples, funcionais, limpas, arejadas e cercadas de jardins.
    3. Embora a educação, a ciência e as artes sejam estimadas e estimuladas, a tendência é evitar — seguindo Platão — obras escritas. Em lugar de livros e bibliotecas, há reuniões, conversas, debates, trocas de opiniões e de idéias. Ou seja, evita-se o isolamento da escrita e da leitura e seu individualismo em proveito do grupo e da coletividade.

    Há, ainda, um último traço da utopia que não provém da obra de More, mas da de um outro inglês, Francis Bacon, que, no início do século XVII, escreveu a Nova Atlântida. Como em More, a Nova Atlântida situa-se numa ilha cuja localização permanece secreta e foi alcançada pelo narrador em decorrência de um naufrágio. Por que nova Atlântida? Como se sabe, no diálogo Crítias, Platão narra o mito da Atlântida para opô-la às virtudes da Atenas antiga, cujas qualidades aristocráticas, guerreiras e frugais o filósofo julga destruídas pela democracia, com seu igualitarismo e opulência. Atlântida, na narrativa platônica, é a cidade injusta e passional, fundada por um deus (Poseidon) caprichoso e tumultoso, governada por reis, filhos bastardos do deus com as mortais, governantes arbitrários cuja vontade é lei. Arquitetônica e politicamente, Atlântida é uma cidade oriental e mais precisamente persa, pois os gregos não podem esquecer as ameaças, guerras e invasões dos persas, que destruíram suas cidades e ameaçam outras. Atlântida é cidade ímpia e tirânica, que mereceu o castigo de Zeus, que a fez submergir no oceano. Em contrapartida, a nova Atlântida de Francis Bacon é uma sociedade harmônica, feliz e próspera, na qual a principal virtude é o conhecimento e sua aplicação para superar as limitações da condição humana. Dirigida por sábios, tem em seu centro a Casa de Salomão, um grande laboratório dedicado às investigações científicas e às pesquisas tecnológicas, pois somente o avanço dos conhecimentos assegura bem-estar e felicidade à população. Seus cidadãos são cientistas; nela vigora a tolerância religiosa, embora a religião não tenha grande importância, pois, segundo o narrador, a sociedade cientificamente organizada já existia quando a ela, misteriosamente, chegaram os Evangelhos, ou seja, a verdade revelada e a fé vieram depois da ciência e são menos importantes do que esta, pois prudência, justiça, tolerância, benevolência, sobriedade e prosperidade são virtudes cívicas e não religiosas, nascidas do conhecimento e não da fé. A educação do jovem cientista visa prepará-lo não para igualar-se a seu mestre e sim para superá-lo, pois a Nova Atlântida é a utopia do progresso da ciência. A tecnologia é, a um só tempo, fonte do progresso da ciência — graças à invenção de instrumentos cada vez mais precisos — e efeito do progresso científico — o avanço dos conhecimentos inventa novas técnicas. Pesquisas em todos os campos do saber têm como finalidade prolongar a vida, manter a juventude e retardar o envelhecimento, curar doenças tidas como incuráveis, transformar o metabolismo, a estatura e a fisionomia, aumentar a capacidade cerebral, alargar os espíritos, criar novas espécies vivas e inorgânicas, produzir alimentos novos, produzir novos fios duradouros para o vestuário, aumentar os prazeres dos sentidos e, se possível, impedir a morte.

    Se em Utopia é a política o elemento decisivo — isto é, a figura do legislador e do governante justo que guia a democracia direta —, com a Nova Atlântida, o racionalismo e o experimentalismo científicos passam a integrar o discurso utópico, articulando intrinsecamente a cidade ideal e a ciência —, isto é, o progresso do saber é o elemento decisivo e determina as obras utópicas posteriores. Assim, a partir do século XVIII e sobretudo do século XIX, na cidade utópica, as máquinas farão todo trabalho, deixando aos homens o tempo para cultivar o espírito e o corpo; a natureza estará completamente domada, submetida ao homem, que não mais se vê desarmado diante dela; as doenças estarão vencidas e a morte deixa de ser um enigma doloroso; sofrimentos e terrores, crueldades e acasos estarão completamente ausentes.

    É essa dimensão da utopia que dará origem a um novo gênero literário, a ficção científica, cuja primeira manifestação, no século XIX, encontra-se na obra de Júlio Verne.

    IV

    Esse conjunto de aspectos, brevemente apresentado, indica que, entre os séculos XVI e XVIII, a utopia é um jogo intelectual no qual o possível é imaginário, combinando a nostalgia de um mundo perfeito perdido e a imaginação de um mundo novo instituído pela razão.

    Em contrapartida, quando passamos ao século XIX, a utopia deixa de ser um jogo intelectual para tornar-se um projeto político, no qual o possível está inscrito na história. Esta deixa de ser a narrativa de grandes feitos e de acontecimentos contingentes para ser concebida como ciência do encadeamento causal necessário dos fatos e das instituições humanas. Agora, a utopia é deduzida de teorias sociais e científicas, sua chegada é tida como inevitável porque a marcha da história e o conhecimento de suas leis universais garantem que ela se realizará. Deixa de ser obra literária para tornar-se prática organizada, passando a ser encarada pelos poderes vigentes como perigo real e a ser censurada como loucura.

    Sob os efeitos da ciência e da técnica — isto é, da segunda revolução industrial — e da idéia de marcha necessária da história como progresso, o discurso utópico se torna realista e pragmático. Há uma positivização do imaginário utópico de maneira a diminuir a distância entre a cidade imaginária e a real, entre a história desejada e a vivida. Como escreve Baczko, há uma cientifização da utopia, que se torna um projeto de reforma global como ciência aplicada, e o futuro é arrastado para as fronteiras do presente, ou seja, a utopia surge como possibilidade objetiva, inscrita na marcha progressiva da história.

    É nesse novo contexto que se realiza a crítica de Engels e Marx ao socialismo utópico. A utopia, dizem eles, é um pressentimento ou uma prefiguração de um saber sobre a sociedade que o marxismo resgata no plano de uma ciência da história. Ou seja, assim como da alquimia se passou à química e da astrologia à astronomia, assim também é possível passar do socialismo utópico ao socialismo científico. O socialismo utópico é uma sabedoria afetiva e parcial, expressão do imaginário dos oprimidos. Em contrapartida, o socialismo científico é o amadurecimento racional do saber utópico dos dominados e o amadurecimento racional de sua prática política. Nesse sentido, o socialismo científico é a passagem do afetivo ao racional, do parcial ao totalizante, da antecipação ou pressentimento à emancipação revolucionária. Em outras palavras, o socialismo utópico ergue-se contra o sofrimento dos humilhados e oprimidos, mas o socialismo científico é o conhecimento das causas materiais (econômicas e sociais) da humilhação e da opressão, ou seja, o modo de produção capitalista, fundado na luta de classes, que é determinada pela propriedade privada dos meios sociais de produção — a revolução socialista será, por isso mesmo, a passagem à propriedade social dos meios sociais de produção, passagem que será a ação política da classe economicamente explorada quando, por sua organização, conhecer-se a si mesma como classe.

    Como se observa, o marxismo resgata o sentido do socialismo utópico assinalando sua parcialidade e sua pouca historicidade. Dessa maneira, a crítica marxiana se distingue da crítica conservadora (Comte, Durkheim, Sombart), para a qual a utopia é um miserabilismo nascido do medo da proletarização, uma quimera e uma loucura por excesso de imaginação. Os conservadores absorvem a história na natureza e afirmam que a utopia é antinatural, isto é, absurda: desejar o fim da propriedade privada seria o mesmo que desejar a fonte da eterna juventude, uma impossibilidade natural. Marx e Engels distinguem dois tipos de propriedade: a propriedade privada dos bens necessários à vida e à vida feliz, e a propriedade social dos meios sociais de produção. Isto lhes permite distinguir dois tipos de utopia: aquela que permanece como sombra da sociedade existente, oferecendo-se como doutrina, sistema, filosofia e pedagogia para as massas — esse tipo de utopia é inaceitável — e aquela que antecipa e prefigura a sociedade futura como sociedade nova que nega a sociedade presente — é essa utopia que o socialismo científico assimila e transforma. Em outras palavras, o socialismo marxiano valoriza na utopia seu caráter antecipador de um saber concreto sobre o social e seu caráter prefigurador da sociedade nova.

    Também sob esse aspecto, a posição de Marx e Engels se distancia do cientificismo conservador. De fato, este parte de uma indagação: são as utopias realizáveis? Essa pergunta pressupõe, em primeiro lugar, a identificação do possível com o provável — isto é, nega a dimensão criadora do possível, achatando-o numa probabilidade que seria cientificamente demonstrável; conseqüentemente, em segundo, que a história abriga um único possível; e, em terceiro, que o utopista o conhece e possui a visão completa do futuro. Dessa maneira, o valor de uma utopia é medido por um critério não-utópico, qual seja, a previsibilidade científica e a unicidade do possível. Ora, nenhuma utopia influenciou o curso da história por seu realismo, mas, ao contrário, pela negação radical das fronteiras do real instituído e por oferecer aos agentes sociais a visão de inúmeros possíveis. O utopista desloca a fronteira daquilo que os contemporâneos julgam possível.

    A crítica marxista à interpretação conservadora aparece claramente em Marcuse, quando denuncia a redução da utopia à mera ideologia, que supõe que toda forma do mundo, toda transformação do meio técnico e do meio natural é uma probabilidade real que tem seu lugar, seu tópos na história. Ou seja, ao passar do u-tópos ao tópos, do não-lugar a um lugar pre-fixado na história, a ideologia cientificista proclama o fim das utopias. Nesse mesmo sentido, também se colocando numa perspectiva marxista, Manheim, em Ideologia e utopia, distingue os dois termos. Utopia é a negação do tópos da classe dominante ou uma visão global da sociedade que se opõe à da classe dominante; é uma elaboração da classe historicamente ascendente e expressão de seus anseios profundos. Em contrapartida, ideologia é o sistema global de representações e valores da classe dominante, que deformam e mistificam a realidade social, imobilizando a consciência de classe. Dessa maneira, a utopia não é propriamente um discurso, mas um conjunto de práticas e de movimentos sociais contestadores da sociedade presente no seu todo.

    V

    Seria preciso, como conclusão, articular os principais aspectos do discurso utópico (aqueles nove, que mencionei acima) e o fenômeno do totalitarismo.

    Essa articulação foi feita na segunda metade do século XX em vários romances, como, por exemplo, 1984, de Orwell, Admirável mundo novo, de Huxley, e Farenheit 541, de Bradbury. E reaparece, no início do século XXI, no primeiro filme da trilogia Matrix.

    Referindo-se à articulação entre os elementos próprios do discurso e da narrativa utópicos e o totalitarismo, alguns autores falam em distopia, o tópos dilacerado e infeliz. As obras de distopia nos levam do sonho ao pesadelo.

    Mas isto é uma outra história que fica para uma outra vez.

     

    Marilena Chauí é professora-titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

     

     

    NOTAS

    1. É assim, por exemplo, que o messianismo judaico e o milenarismo cristão podem ser vistos como religiosidade utópica, na medida em que ambos concebem um tempo de abundância, paz e felicidade terrenas para o povo de Deus; tempo biblicamente conhecido como o "tempo do fim", revelado aos profetas Daniel e Isaías e a João de Patmos, autor do Apocalipse. No caso judaico, o tempo final será o da restauração de Israel e do retorno da dispersão à "terra prometida". No caso cristão, trata-se de um "reino de mil anos", que antecede a "segunda volta de Cristo", a "batalha do Armagedon" — em que Cristo vence definitivamente o demônio —, o "juízo final" e a entrada na eternidade.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    BACZKO, Branislaw. 1978. Lumières de l’utopie. Paris: Payot.

    TROUSSON, Raymond. 2004. "La cité, l’architecture et les arts en Utopie". Morus. Utopia e Renascimento, n. 1.