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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.spe1 São Paulo jul. 2008

     

     

    A TECNOLOGIA, SUAS ESTRATÉGIAS, SUAS TRAJETÓRIAS

     

    Evando Mirra de Paula e Silva

     

    GÊNESE E EVOLUÇÃO DOS OBJETOS TÉCNICOS Quando Thomas Edison apresentou ao público a lâmpada elétrica incandescente, iluminando Menlo Park na noite de 31 de dezembro de 1789, foi grande o espanto causado por aqueles bulbos de que jorrava luz. Era a primeira vez que uma inovação tecnológica era lançada como um grande espetáculo e seu impacto foi mágico. Mas a exposição desse novo objeto já trazia algumas características que viriam a ser encontradas em toda inovação. Em primeiro lugar, ele não surgia do nada. Era, pelo contrário, a culminância de uma história que se desenrolava há quase oitenta anos. Também não era produto do talento de uma só pessoa. Havia sido necessário o esforço de muitos e tinha-se articulado todo um conjunto de técnicas para que, finalmente, aquelas lâmpadas brilhassem. Além disso, havia ainda uma novidade no conceito desse objeto, uma verdadeira mudança na regra do jogo. Até então uma boa lâmpada era aquela que queimava por longo tempo. A lâmpada de Aladim queimava óleo, as tochas queimavam madeira, os lampiões de rua queimavam gás. A lâmpada elétrica, pelo contrário, funcionava porque não queimava! Um fio percorrido por corrente elétrica emitia luz — enquanto permanecesse incólume.

     

     

    A iluminação tem raízes remotas, pois há mais de 70 mil anos já se usavam lamparinas primitivas nas cavernas. Um longo percurso fez surgir tochas, velas, lampiões, mas foi apenas no século XIX, depois da invenção da bateria elétrica, que se pensou na possibilidade de uma nova rota para produzir uma lâmpada. A história pode ser datada das experiências de Humphry Davy na Inglaterra. Químico prestigioso, descobridor de metais, como o sódio e o potássio, Davy se interessou pelo efeito elétrico e construiu a mais poderosa bateria de seu tempo. E quando a utilizou, por volta de 1802, para fazer passar uma corrente elétrica através de uma fita de platina, constatou que o metal se aquecia intensamente e emitia luz. O brilho era fraco e o efeito era fugaz, pois a fita metálica se destruía quase imediatamente. O próprio Davy aperfeiçoou o invento e diversificou a técnica, ao criar o "arco elétrico", em 1809, fazendo passar uma corrente entre duas barras de carvão ligadas à bateria. Os resultados, porém, ainda não permitiam nenhum uso prático. Mas eram suficientes para provocar a imaginação e fazer nascer o sonho.

    Pois foi atrás desse sonho que muitos se lançaram. Vamos lembrar alguns deles. Warren de la Rue, ainda na Inglaterra, introduziu em 1840 um aperfeiçoamento importante, ao encerrar uma bobina de platina em um tubo à vácuo antes de passar a corrente elétrica pelo fio. Sua idéia era a de aproveitar o elevado ponto de fusão da platina para operar em temperaturas elevadas, mas utilizando o vácuo para isolar o metal dos gases que poderiam atacá-lo, e aumentar assim a duração de vida do fio. O princípio era correto, mas o vácuo, então em seus primórdios, era imperfeito, e o custo da platina proibia qualquer utilização em larga escala. Do outro lado do Atlântico, o norte-americano John Wellington Starr obteve, em 1845, uma patente para a utilização de filamentos de carbono, outro material de alto ponto de fusão, mas de custo muito mais conveniente. Em Nova York, o alemão Heinrich Göbel, em 1854, fabricou lâmpadas utilizando fios de bambu carbonizado em um vidro sob vácuo. Diz a lenda que Göbel aproveitava frascos vazios de água de colônia, o que agregava um suave perfume à sua iluminação…

    Essas tentativas produziam resultados imperfeitos, inadequados para uso prático, mas apontavam rumos e encorajavam a procura de soluções mais eficazes. Muitas delas — como as de James Bowman Lindsay e de Frederick de Moleyns, no Reino Unido — permitiram avanços significativos. As pesquisas conduzidas, entre 1860 e 1878, pelo químico inglês Joseph Wilson Swan geraram patentes para utilização de filamentos de papel carbonizado. Bombas capazes de gerar vácuo de nível mais elevado possibilitaram a Swan produzir filamentos mais duráveis e iniciar timidamente a comercialização de sua lâmpada. Em 1874, os canadenses Henry Woodwards e Matthew Evans, em Toronto, melhoraram a proteção dos fios pela introdução de um gás inerte — nitrogênio — na ampola. Foi nesse ambiente que Thomas Edison procurou criar, nos laboratórios construídos em Menlo Park, todo um sistema que permitisse a exploração comercial efetiva da lâmpada elétrica.

    Foi um gigantesco trabalho de equipe, vivido em clima de grande excitação, onde foram atacados simultaneamente muitos desafios. Francis Upton, jovem e talentoso físico de Princeton, foi encarregado de projetar um dínamo capaz de produzir tensões superiores a 100 volts. Charles Batchelor e John Kreusi se ocuparam dos problemas mecânicos. Francis Jehl testou cerca de 6 mil tipos de filamentos, do tungstênio ao simples fio de cabelo. O tungstênio foi abandonado por razões econômicas, mas a nova bomba de vácuo de Sprengel — emprestada pela universidade de Princeton — viabilizou a utilização da celulose carbonizada. Grosvenor Lowrey, brilhante advogado de Nova York, montou a sociedade financeira — a Edison Electric Light Company, futura General Electric — que garantia o financiamento das pesquisas pela venda antecipada de licenças das futuras patentes. Foi ele ainda quem convenceu Edison a construir a primeira central elétrica no coração do distrito financeiro de Nova York.

    Resultados animadores foram se acumulando, à medida que problemas iam sendo resolvidos, até que, em outubro de 1879, conseguiu-se uma lâmpada que durou 45 horas. O cenário estava quase pronto para a exposição pública. Na noite de 31 de dezembro, uma grande multidão veio finalmente admirar as quinhentas ampolas que iluminavam as instalações de Edison em Menlo Park. Os múltiplos componentes do sistema — tais como geradores, condutores, isolantes, interruptores e medidores — tinham sido simultaneamente criados ou adaptados, no mesmo espírito de resultado prático, mostrando a extraordinária capacidade de Edison para "inventar microcosmos tecnológicos". William Joseph Hammer, engenheiro elétrico, foi colocado na direção da Edison Lamp Works, que, em 1880, produziu 50 mil lâmpadas e iniciou a comercialização do novo artefato. Em setembro de 1882, a pequena central elétrica da rua Pearl alimentava o distrito financeiro de Wall Street. Edison havia criado o primeiro laboratório industrial, voltado para produzir conhecimento e controlar a sua aplicação.

    A invenção da lâmpada elétrica e sua introdução no mercado mostram como toda inovação é indissociavelmente técnica e social. Seu desenvolvimento, das primeiras idéias até a utilização econômica em larga escala, exigiu a integração do trabalho de diversos atores — cientistas, tecnólogos, engenheiros, financistas, advogados, promotores —, operando em diferentes palcos. Foram mobilizados, nesse desenvolvimento, conhecimentos tácitos, experiência e engenhosidade, acoplados a conhecimentos oriundos da ciência e ao uso de instrumentos da investigação científica. A aceitação do novo produto foi socialmente construída, mobilizou adesões e enfrentou resistências, ensejou batalhas entre diferentes grupos de interesse, modificou hábitos antigos e gerou hábitos novos. Testemunhas da radicalidade dessa mudança inusitada, placas douradas fixadas nas paredes alertavam: "Esta sala está equipada com a lâmpada elétrica de Edison. Não tente acendê-la com fósforos. Gire apenas a chave na parede, junto da porta".

    A geração de um novo produto tecnológico é muitas vezes imaginada, quando vista externamente, como um empreendimento racional, frio e desapaixonado. Mas a criação da lâmpada mostra como esse empreendimento é freqüentemente vivido, no interior do ambiente inovativo, como um grande jogo. Há uma dimensão lúdica no enfrentamento dos múltiplos desafios, no arranjo das peças disponíveis — e na invenção de novas peças — para solucionar o enigma. Os diferentes atores mergulham em um universo de que conhecem as regras e as armadilhas. Tomam parte nessa aventura todos os ingredientes da condição humana, em sua fragilidade e em sua grandeza, exigindo muitas vezes a superação de limites e até mesmo gestos de transgressão. Porque, se a tecnologia é da ordem do jogo, inovar é, muitas vezes — como ilustra a história da lâmpada —, mudar as regras do jogo.

    O objeto técnico é tão antigo quanto a humanidade. A palavra técnica tem origem na tradição grega da tekhné como arte, sagacidade, habilidade de fazer as coisas com certa desenvoltura. Máquina remonta à antiga mekhané, maquinação, artifício capaz de engenhar efeitos espantosos, estranhos à ordem natural. Mecânica remete à mekhanikê tekhné, a esperteza, a astúcia. A dimensão criativa dessas práticas, mediadoras entre o homem e a natureza, as associava à poiesis, criação, confecção, fabricação. Eram passíveis de aprendizado: Aristóteles define a técnica como uma hexis (hábito, atitude adquirida) poiètikè (criadora). Era considerada pelos gregos como um produto característico da cultura, manifestação da produção coletiva que constrói cada forma de vida social, elemento de constituição do mundo enquanto mundo humano. Esses atributos são também compartilhados pela tecnologia contemporânea. Mas entre o antigo e o novo existe uma cisão definitiva. Trata-se da transformação do modo de evolução.

    As técnicas dos antigos — a roda, a alavanca, o tratamento da terra e dos metais — evoluíam lentamente, ao sabor da inventividade prática e do acaso. Mesmo quando se começou a estruturar uma visão científica do mundo, essa visão teve pouca ressonância no mundo dos objetos. Durante longo tempo, as práticas técnicas e o pensamento científico percorreram trilhas separadas. Fundadas no saber empírico, as técnicas concebidas em cada civilização, visando resolver questões relevantes para aquela civilização, seguiam trajetórias reguladas por critérios de eficácia, essencialmente desprovidos de justificação teórica. O pensamento científico, por sua vez, orientando-se pela busca de formas de inteligibilidade, pautadas na elaboração teórica, visava questões de interesse universal, das quais as práticas técnicas estavam excluídas.

    É verdade que as possibilidades de aproximação já se anunciavam discretamente no século XVII, quando a agenda científica começou a se organizar em torno do diálogo entre a razão e o experimento. De Galileu a Newton, consolidou-se no campo científico a estratégia de produzir em laboratório, em condições controladas, a partir dos modelamentos teóricos, os fenômenos sobre os quais a ciência iria se pronunciar. Com isso, o objeto técnico foi-se integrando ao universo científico, para assumir ali um papel de relevo. Mas foi somente no final do século XIX que se reuniram as condições para a incorporação organizada do conhecimento científico no projeto tecnológico. Além da agregação de idéias oriundas da ciência, a evolução tecnológica inspirou-se a partir dali nas próprias estratégias da pesquisa científica. Construir uma visão teórica do fenômeno técnico, formular hipóteses, testá-las experimentalmente, tudo isso começou a constituir parte essencial do universo técnico.

    Essa presença do fato científico no ambiente tecnológico não significou, contudo, fusão de identidades. Os critérios de validação de uma teoria científica, com suas exigências de consistência e seus protocolos de formalização, permanecem distintos dos critérios de validação da inovação tecnológica, ancorados na eficácia de desempenho e na viabilidade econômica. Nem a crescente densidade científica suprimiu o lugar dos saberes tácitos e da engenhosidade prática no universo técnico. O que se estabeleceu foi uma freqüentação recíproca, estimulante para ambos os parceiros, de maior ou menor intensidade segundo a natureza da área considerada. A criação da lâmpada elétrica já anunciava as características desse modo de evolução: realizou-se como atividade socialmente organizada, baseada em planos concebidos em vista de objetivos definidos, agregando conhecimentos científicos ao saber tradicional e se valendo de estratégias da ciência. Iniciava-se a convergência entre ciência e tecnologia, cujo percurso seria decisivo para o século XX.

    Mas a história da lâmpada elétrica ilustra ainda a característica de sistema com que se opera o desenvolvimento tecnológico. O novo produto surgiu sob uma forma tateante e imperfeita e seu aperfeiçoamento só foi possível pela construção progressiva de um ambiente mais acolhedor, com o aparecimento de técnicas de suporte capazes de melhorar seu desempenho e lhe conferir robustez e confiabilidade. Essa é outra dimensão essencial do universo tecnológico: as técnicas, em diferentes graus, dependem umas das outras, há entre elas certa consistência, o seu conjunto articulado compõe um ecossistema específico. Essa dupla articulação — da evolução temporal, que faz com que um objeto traga em si toda a sua história, e do jogo de relações que entretém, em dado momento, com os objetos vizinhos — é parte essencial de sua gênese. Ela significa que o objeto tem um passado, que o torna disponível para um futuro. E que esse futuro só existirá se conhecermos a lógica de evolução desse objeto e as técnicas correlatas que o sustentam.

    É por isso que a importação selvagem de tecnologia está sempre fadada ao fracasso. Quando se compra a receita de fabricação de um artefato técnico, sem conhecer a sofisticada trama em que foi engendrado, compra-se apenas um momento de uma história, desprovido do percurso que o trouxe até ali, desconhecendo o contexto das técnicas que o conformam e as possibilidades de evolução que traz em si. A tecnologia desenvolvida por uma sociedade faz parte de sua cultura. Ela não pode ser simplesmente transposta para uma outra sociedade. Precisa sempre ser reinventada em seu novo habitat, o que exige da cultura que a acolhe tanto o domínio dos conhecimentos básicos quanto das técnicas que circunscrevem esse artefato. "Verum ipsum factum", afirmava Giambattista Vico: "só conhecemos verdadeiramente aquilo que fazemos". Só uma sociedade que pesquisa e que fabrica é capaz de absorver uma tecnologia produzida em outra cultura, incorporando à sua produção própria um acervo externo de produção.

    O CONHECIMENTO É A NOVA FORMA DE RIQUEZA DAS NAÇÕES A singela história da lâmpada incandescente aponta também para uma das grandes transformações do nosso tempo. À medida que o novo sistema de iluminação se difundia, um vasto empreendimento se colocava em marcha, para geração, transmissão e distribuição de energia elétrica; para fabricação e comercialização das lâmpadas e de todos os componentes; para instalação e manutenção das redes nas vias públicas, nas casas, nas salas de espetáculo. Para aqueles que detinham o conhecimento, a nova empreitada transformava-se em riqueza.

    Esse fenômeno acentuou-se desde então, até permear toda a economia dos países desenvolvidos. O documento que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publica periodicamente sob o título de Science, Technology and Industry Outlook reafirma em suas edições recentes que "investimentos crescentes em conhecimento são o vetor-chave do desempenho econômico, e estão associados à emergência de uma sociedade mais interconectada [networked], onde a criação e a aplicação do conhecimento tornam-se cada vez mais colaborativos". Essa presença crescente do conhecimento tende a tornar-se ainda mais visível à medida que as novas tecnologias — como as tecnologias da informação e comunicação, biotecnologia, nanotecnologia, genômica, robótica, materiais avançados, energias alternativas — começam a se fazer presentes na vida cotidiana, no espetáculo, nos serviços e em todo o empreendimento industrial. Essas tecnologias não apenas criaram — e estão criando — novas atividades, novas áreas de trabalho, novas fontes de riqueza, mas modificaram — e estão modificando —, de maneira profunda, os setores mais tradicionais.

    Não é segredo que, desde a revolução industrial, algumas tecnologias desempenharam um papel-chave a cada etapa do crescimento. Primeiro a indústria têxtil e depois as ferrovias foram empreendimentos condutores das transformações econômicas e sociais. O lugar foi ocupado em seguida pelas tecnologias automotivas e a indústria automobilística. A partir da metade do século XX, foi o computador que irrompeu em cena para criar um novo cenário. Com a invenção da internet, a informática multiplicou sua presença e articulou-se às telecomunicações para comporem o grande vetor de transformação. As tecnologias da informação e da comunicação desempenham hoje claramente esse papel e serão ainda certamente, no futuro próximo, as tecnologias essencialmente portadoras do futuro. Mas novas possibilidades já se desenham no horizonte. Nos últimos anos do século XX, começaram a se tornar visíveis as manifestações daquela que, muitos acreditam, será o fio condutor das transformações no século XXI: a tecnologia de manipulação da matéria na escala dos átomos e das moléculas, a nanotecnologia.

     

     

    Mas, qualquer que seja a tecnologia estruturante do espaço tecnológico no futuro, ela não deverá estar sozinha. Porque se acelera um movimento de convergência de diferentes tecnologias que se integram em sistemas específicos, gerando estruturas inéditas com funcionalidades originais. O telefone celular não é mais apenas um telefone, nele convergem técnicas da informática, das telecomunicações, do processamento de imagens; a TV digital tem os atributos de um computador; os biomateriais utilizados em próteses articulam o orgânico e o inorgânico de uma forma inédita. Começa a tornar-se familiar a sigla NBIC, que designa efeitos de convergência entre a nano e a biotecnologia, as tecnologias da informação e comunicação e as ciências cognitivas, incluindo-se aí a neurociência. Ainda estamos nos prelúdios da compreensão e da exploração desses movimentos de convergência, mas já são visíveis os seus efeitos e o seu alcance.

    Como exemplo dessas tendências que se desenham, valeria a pena explorar um pouco mais o que é a nanotecnologia e como se manifestam os seus impactos.

    EMPREENDIMENTOS MOBILIZADORES DO CONHECIMENTO: A NANOTECNOLOGIA Uma empresa européia anunciava há pouco tempo um produto surpreendente: um vidro que não se suja, que permanece sempre limpo. O segredo? Seu recobrimento por uma camada de óxido de titânio, invisível aos olhos, inacreditavelmente fina, cuja espessura atingia apenas 4 centésimos de 1 milésimo de milímetro! Em linguagem técnica, dizemos que a camada mede 40 nanômetros. O prefixo nano designa 1 bilionésimo: 1 nanômetro (símbolo: nm) representa 1 bilionésimo de metro. Para comparação, um átomo mede cerca de 2 décimos de 1 nanômetro; um fio de cabelo tem como espessura cerca de 30 mil nanômetros; uma pessoa de 1 metro e 80 centímetros mede 1 bilhão e 800 milhões de nanômetros…

    As nanociências e nanotecnologias trabalham na compreensão e no controle da matéria na escala nanométrica, cobrindo da fração de nanômetro, dimensão do átomo, até algumas centenas de nanômetros, dimensão típica de um vírus. No caso específico do vidro autolimpante, o nanorrecobrimento introduz duas ações. Primeiro um efeito, dito de fotocatálise, pelo qual os raios de sol quebram as ligações dos resíduos orgânicos que se tenham eventualmente depositado em sua superfície. Segundo, a nanocamada é hidrofóbica: quando a chuva atinge o vidro, não se formam gotas, a água flui livremente e arrasta as partículas que ali se encontram (Esquema 1)

     

     

    A possibilidade de criar novos materiais, com propriedades inéditas, mediante a manipulação na escala dos átomos e moléculas, obteve um primeiro avanço com o físico Richard Feynman numa conferência famosa, em 1959. Entretanto, o desenvolvimento de instrumentos capazes de permiti-lo só veio a acontecer a partir da década de 1980. Um evento-chave foi a invenção do microscópio de varredura por tunelamento. Nesse aparelho, uma agulha extremamente fina, cuja ponta é constituída de alguns poucos átomos, "varre" uma superfície a uma distância de menos de 1 nanômetro. Durante a varredura, elétrons tunelam (forma de movimento antecipado pela mecânica quântica, como se os átomos atravessassem um minúsculo túnel) da agulha para a superfície e levam informações até um computador. A partir dessas informações, o computador constrói uma imagem da superfície, imensamente ampliada, na qual ficam visíveis os seus átomos.

    Dessa forma, pela primeira vez o relevo atômico da superfície de um corpo pode ser visto e investigado. Além da visualização de uma superfície na escala nanométrica, esses instrumentos permitem ainda manipular os átomos e deslocá-los de um ponto a outro. Operam assim como verdadeiras pinças na escala atômica.

    Outra invenção-chave foi a da epitaxia por feixes moleculares, que permite a produção de filmes pela exposição de um substrato a feixes atômicos ou moleculares. A espessura de cada camada pode ser controlada com a precisão do tamanho do átomo. Técnicas de utilização do feixe eletrônico permitem recortar os filmes superpostos e fabricar estruturas nanométricas nas três dimensões. O resultado são as chamadas caixas quânticas ou pontos quânticos. Essas caixas apresentam comportamentos surpreendentes, somente inteligíveis no quadro da mecânica quântica, têm capacidade de auto-organização e um enorme potencial de aplicação (Esquema 2).

     

     

    As nanotecnologias permitem, dessa forma, a criação de novas moléculas com arquiteturas especiais, do que resultam propriedades também muito especiais. É um campo amplo, ainda na sua infância, envolvendo áreas como a química, a física, a engenharia de materiais, a biofísica, a bioquímica, a ciência da computação, a medicina. Trabalha-se hoje, por exemplo, na produção de moléculas cuja arquitetura permita que elas se auto-organizem em estruturas maiores, à semelhança do que se passa nas moléculas biológicas. Os produtos que se buscam vão de computadores moleculares extremamente poderosos e materiais avançados para próteses até anticorpos sintéticos capazes de encontrar e destruir vírus ou células cancerígenas onde eles se achem no corpo. Os princípios ativos podem ser encapsulados no interior de macromoléculas projetadas para serem absorvidas por órgãos específicos do corpo, ou por órgãos afetados por doenças, onde liberarão a droga. Dessa forma, doses muito menores de medicamentos podem ser direcionadas a pontos determinados, atingindo diretamente o alvo e reduzindo, ainda, os efeitos colaterais.

    Entre as vedetes das novas moléculas, encontram-se os nanotubos de carbono. Desenvolvidos a partir de 1991, os nanotubos são formados por folhas de átomos de carbono, em um arranjo hexagonal, que se enrolam como um "espaguete" de diâmetro tipicamente entre 1 e 2 nanômetros. Mesmo que os tubos sejam eventualmente longos, sua parede pode consistir de uma única folha, ou seja, apenas uma camada atômica (Esquema 3).

     

     

    Esses nanotubos são unidades básicas para um grande número de aplicações. Uma delas, em desenvolvimento, é a montagem de nanotubos para produzir materiais muitas vezes mais leves e mais resistentes do que o aço, além de serem capazes de operar sob temperaturas muito elevadas. Materiais com essas propriedades poderão ter, por exemplo, forte impacto nos transportes, com estruturas muito mais leves e mais econômicas no uso de energia.

    Vemos assim que o engenho empreendedor humano se prepara, mais uma vez, para modificar profundamente os artefatos de que nos valemos e engendrar, assim, novas soluções e os inevitáveis novos problemas correlatos. O potencial de transformação se arrisca a ser maior agora, com a convergência das tecnologias. Mas, além dessas promessas — ou, dizem alguns, ameaças — que começam a se materializar, o universo das nanotecnologias representa ainda um espaço privilegiado para a elaboração teórica. Uma das razões é a possibilidade aberta para a investigação in situ de efeitos estranhos, como o que tem sido chamado memória de forma dos metais, ou mesmo transformações de fase mais usuais que ocorrem na matéria.

    Além disso, essa escala de investigação é um lugar original para o contraponto entre o orgânico e o inorgânico. Tanto a matéria viva quanto a matéria inorgânica são constituídas pelas mesmas unidades básicas, átomos de carbono, oxigênio, silício e outros elementos químicos. Quando bilhões e bilhões desses elementos se organizam, encontramos, em alguns casos, a manifestação da vida, em outros, a chamada matéria inerte. A escala nanométrica permite flagrar o instante em que a diferenciação ainda não se deu, ou em que se estará processando. A expressão da bioquímica norte-americana Rita Cowell não poderia ser mais feliz: "a nanoescala é o ponto mágico em que os mundos da matéria viva e da matéria não-viva se encontram". Questões muito antigas estão sendo assim retomadas sob um enfoque radicalmente novo.

    NANOTECNOLOGIA NO BRASIL O Brasil tem registrado sucessos encorajadores em nanotecnologia. Um dos primeiros produtos nanotecnológicos desenvolvidos no país foi a "língua eletrônica", equipamento capaz de reconhecer e analisar sabores. Criado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o artefato é composto por um conjunto de nanoeletrodos de ouro (são necessários 8 mil deles para atingir o diâmetro de um fio de cabelo), recobertos por filmes de polímeros condutores. Com grande sensibilidade e precisão, os sensores podem avaliar a qualidade de bebidas, como água, vinho e café, quantificar os componentes, detectar adulterações e monitorar os produtos.

    Outro produto nanotecnológico criado no Brasil é fruto de uma parceria entre universidade e empresa. Trata-se de um novo pigmento branco para tintas à base de água, desenvolvido pelo Instituto de Química da Universidade de Campinas (Unicamp) em cooperação com a empresa Bunge. O produto poderá substituir o dióxido de titânio, atualmente utilizado para todos os tipos de tintas à base de água e que apresenta o inconveniente da toxicidade. Composto por nanopartículas ocas de fosfato de alumínio, cujos espaços vazios dão opacidade ao pigmento, seu uso permite ainda melhorar a durabilidade e o desempenho das tintas. A empresa estima o mercado potencial do novo produto em cerca de US$ 5 bilhões.

    As estratégias da nanotecnologia têm um amplo espectro de utilização. Exemplo disso é o trabalho realizado pelo Laboratório de Nanoscopia do Centro Tecnológico de Minas Gerais (Cetec). Dentre suas aplicações da nanotecnologia a processos industriais, o Centro utiliza técnicas de microscopia de varredura por sonda mecânica para caracterização e análise de materiais. Um caso interessante é o da estrutura de fios finos.

     

     

    Fios finos de aços contendo 0,8 % de carbono, devidamente trabalhados, apresentam níveis elevadíssimos de resistência mecânica e são empregados na fabricação de cordas de piano, cabos para pontes pênseis e elevadores, bem como na produção das finas redes metálicas que conferem aos pneus mais segurança e alto desempenho. A evolução tecnológica fez com que esses fios se tornassem cada vez mais finos, inviabilizando o uso das técnicas tradicionais de análise de sua estrutura. Os métodos desenvolvidos pelo Cetec, com a utilização da microscopia de força atômica, permitem hoje monitorar aspectos estruturais em uma escala antes inatingível e fornecem informações essenciais para controlar a produção e aprimorar a qualidade do produto (Esquema 4).

     

     

    Empresas brasileiras do setor de cosméticos, como Natura e Boticário, têm também investido intensamente no desenvolvimento de produtos com técnicas da nanotecnologia. Entre outras vantagens, o nanoencapsulamento dos ingredientes ativos melhora sua penetração nos substratos (pele ou cabelo), permite distribuição mais uniforme, maior permeação e liberação direcionada nas camadas da pele. Nessa linha, já foram lançados produtos como anti-sinais para o rosto e hidratantes com nanoemulsões.

     

     

    Outro campo intenso de pesquisas tem sido a área médica. Estão sendo desenvolvidos no Brasil sistemas de diagnóstico precoce e de tratamento do câncer utilizando nanopartículas para liberação de fármacos antitumorais, que agem somente contra as células cancerígenas. Desenvolvem-se também, entre outras, terapias para distúrbios gastroenterológicos, doenças parasitárias e para fabricação de vacinas. O nanoencapsulamento permite levar medicamentos para o interior das células, aumentando sua eficácia e estabilidade, e diminuindo seus efeitos tóxicos.

    A nanotecnologia pode trazer ademais novos recursos para o combate às chamadas doenças negligenciadas, que afetam milhões de pessoas, sobretudo nos países pobres, mas que não dispõem de tratamentos eficazes, pois não são consideradas suficientemente atraentes para a indústria farmacêutica mundial. O Instituto Nacional de Tecnologia (INT), em parceira com a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade de São Paulo (USP), vem trabalhando, com sucesso, na produção de nanopartículas poliméricas biocompatíveis, capazes de conduzir o fármaco e promover uma liberação controlada nas regiões pulmonares afetadas. É grande a relevância desses resultados, pois a tuberculose, que havia sido controlada, ressurgiu recentemente no país, com alta letalidade.

    Nanocompósitos para a indústria química e petroquímica, nanorrecobrimentos para têxteis inteligentes ou para painéis externos de veículos, nanossensores para navegação aérea e espacial são alguns dos outros produtos em desenvolvimento no país. Essa amostragem revela que, no Brasil, como em países tecnologicamente mais avançados, as aplicações disponibilizadas da nanotecnologia apresentam-se como evolutivas, no sentido de que a nova abordagem traz soluções originais, ou permite ganhos significativos de desempenho, no caso de questões familiares. Impacto ainda maior é esperado para as aplicações disruptivas que se anunciam, nas quais abordagens radicalmente novas poderão trazer soluções marcadas pelo inédito. A própria radicalidade dessas soluções confere maior relevo a uma dimensão presente em qualquer transformação tecnológica. Trata-se dos aspectos éticos envolvidos nas intervenções dessa natureza e dos cuidados necessários para que as inovações sejam introduzidas com segurança quanto a seu impacto e suas conseqüências, notadamente na saúde e no meio ambiente.

    TRAJETÓRIAS TECNOLÓGICAS: CUIDADOS, INCERTEZAS Não se trata de uma questão isolada. Pelo contrário, é exemplar da grande mudança em andamento na institucionalidade do empreendimento científico e tecnológico. Outrora confinado aos laboratórios e conduzido com certa autonomia por pesquisadores e empresas, esse empreendimento, hoje, ganha as ruas e incorpora, cada vez mais, em suas escolhas estratégicas e em seus processos decisórios, as visões de sociedade e o peso da opinião pública. Esses efeitos são acentuados pela complexidade das interações (locais, nacionais e internacionais) entre instituições de ensino e pesquisa, governo, empresas e indivíduos, que compõem o quadro contemporâneo da pesquisa e da inovação. O próprio fortalecimento da colaboração — com a formação de redes e aceleração dos fluxos de conhecimento entre diferentes organizações, bem como suas características de multidisciplinaridade e transdisciplinaridade, contribuem para abrir esses processos como um fato social total, para utilizarmos a expressão do etnólogo Marcel Mauss.

    Ao abrir-se para um debate mais amplo, com envolvimento de um número maior de atores, as trajetórias tecnológicas mergulham em universo que lhes era menos familiar, expostas explicitamente, nesse novo tempo, ao debate público e aos conflitos entre diferentes grupos de interesse. As escolhas se fazem agora claramente em terreno de incertezas e clima de controvérsia. Uma antiga comédia mostrava a reação dos Três Patetas à pergunta: "Em que direção se encontra a cidade de Tunis?".

     

     

    Visões contraditórias — sustentadas às vezes com certeza e obstinação apaixonadas — integram o contexto em que somos hoje chamados a fazer escolhas e definir estratégias no ambiente da tecnologia e da inovação. Mas esse desacordo sobre os rumos não constitui um problema. Pelo contrário, é parte da solução. Porque as decisões são efetivamente controversas e nenhum dos atores sociais detém sozinho as respostas. É antes da tensão entre as visões contraditórias que nascem as opções tecnológicas e suas correções de rumo ao longo do caminho. Reside nisso, talvez, um dos aprendizados decisivos para aqueles países, como o Brasil, que não foram até agora os condutores da geração de ciência e tecnologia. Já dispomos de competência científica e conhecemos os mecanismos da inovação. É preciso ganhar desenvoltura na construção em terreno incerto e em meio à divergência. Navegadores da bruma e da incerteza, devemos avançar fazendo o melhor uso de instrumentos imperfeitos, cautelosos quanto aos passos a serem dados e quanto às suas conseqüências, em meio a acordos parciais e conquistas provisórias.

    É por isso que o aprendizado do gesto coletivo se torna tão fundamental. É por isso que este é um desafio maior para a transformação modernizadora de nossa cultura. Menos habituados ao gesto cooperativo em clima de dissonância, em que se hierarquizam os desacordos e se constroem entendimentos, temos ainda um longo percurso até absorvermos, de fato, a sábia lembrança de Caetano Veloso em "Fora da ordem": "Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem; apenas sei de diversas harmonias bonitas, possíveis sem juízo final".

    No filme Gladiador, de Ridley Scott, quando o herói e um pequeno grupo de gladiadores se encontram, na solidão da arena, frente às portas que guardam todos os perigos, o ator Russell Crowe lhes dirige o apelo essencial: "Quaisquer que sejam as ameaças que venham desses portões, nossa chance de sobreviver está em ficarmos juntos; se trabalharmos juntos, nós sobreviveremos".

    É este também o aprendizado essencial que nos cabe, se quisermos conquistar nossa cidadania no universo da tecnologia e da inovação. Se, além das diferenças, aprendermos a enfrentar juntos os imensos desafios, a partida estará ganha.

     

    Evando Mirra de Paula e Silva é professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e diretor da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).