SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.60 número especial 1 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.60 n.spe1 São Paulo jul. 2008

     

     

    ORIGEM DA VIDA

     

    Hernan Chaimovich

     

    Esta curta contribuição trata de origens tomando como referência a pergunta: "O que a ciência pode dizer com relação à origem da vida na Terra?". Pensadores contemporâneos, em especial Maturana, Varela e Luisi (Varela & Maturana, 2001; Luisi, 2006), influenciaram a forma como eu organizo as minhas idéias neste tema e devem ser consultados para que se obtenha uma visão mais abrangente e aprofundada sobre o assunto.

    Para colocar essa perspectiva, é importante fixar uma escala de tempo. A Terra tem mais ou menos 5 bilhões de anos. As rochas mais antigas datam de 3,9 bilhões de anos. A datação da primeira célula, ou o primeiro fóssil que mostra quiçá ter uma célula, apareceu há 3,5 bilhões de anos (Figura 1).

     

     

    A transição que interessa aqui acontece, portanto, em um intervalo de algumas centenas de milhões de anos e pode-se denominar como "a transição à vida". Os fenômenos que aconteceram entre a formação das rochas mais antigas e aquilo que se pode definir como aparição da vida, as transições entre aquilo que não é vida e aquilo que é vida, seguramente ocorreram entre 3,5 e 3,9 bilhões de anos atrás. Este é o foco de quem estuda a origem da vida, claramente distinto daqueles que se preocupam com a evolução subseqüente. Neste marco a pergunta é: O que a ciência pode dizer sobre a questão básica: o que é a vida? O que acontece em um momento histórico qualquer que propicia diferenciar algo que não tem vida de um objeto vivo? E também: o que é vida quando se olha uma célula contemporânea como a mostrada esquematicamente na Figura 2.

     

     

    A primeira coisa a ser notada é que a célula apresenta uma fronteira que separa aquilo que está fora daquilo que está dentro. Outra propriedade a ser apontada é que dentro dessa fronteira, que parece como a parte externa do corte de uma esfera no esquema da Figura 2, existem estruturas complexas. Olhando esse esquema com mais detalhe se poderá apreciar a complexidade de uma célula nucleada típica (Voet & Voet, 2006). Há estruturas, reações e interações complicadas dentro da célula atual: milhões de reações químicas, moléculas complexas como RNA e DNA, ou seja, o interior da célula é um sistema complexo. Mas o que desejo ressaltar é o seguinte: dentro dessa maquinaria complexa existem sistemas que geram a própria fronteira, e isso não é trivial. Assim, a célula é um sistema delimitado por uma fronteira que se produz no sistema contido pela própria fronteira. Existe, claro, comunicação com o ambiente, entrada de nutrientes e sinais, e saídas de materiais e energia, que podem ser calor, produtos ou sinais. É essa complexidade necessária para definir uma estrutura como "viva" ou o sistema podia ser muito mais simples? É essa complexidade o produto da evolução ou a célula primordial possuía, necessariamente, complexidade comparável?

    Num exercício conceitual se poderia definir um sistema como "sistema vivo" quando se cumprem alguns requisitos, por exemplo, a existência de uma fronteira que, independentemente da complexidade interna, é gerada por um mecanismo próprio do sistema. Assim, a fronteira é gerada pelo sistema contido pela fronteira. Adicionalmente, o sistema tem uma relação com o ambiente, caracterizada por entrada de nutrientes ou energia, e, de alguma forma, saída de produtos. O sistema vivo, nessa definição, é autocontido, autogerado e automantido. Essas características, centrais para a construção de uma definição de sistema vivo, independem da complexidade da maquinaria interna. O problema científico da origem da vida não pode, portanto, se limitar às complexidades desse sistema celular interno, que hoje contém DNA e RNA, ou focalizá-las exclusivamente. Qual(ais) o(s) conteúdo(s) dos sistemas vivos há alguns bilhões de anos é, hoje, uma pergunta sem resposta. Um sistema fechado que se auto-mantém pode, em princípio, se reproduzir.

    No contexto desse percurso atrás de uma definição, podem-se formular algumas perguntas, respeitando-se os limites do método científico. Por exemplo: podem-se obter sistemas fechados simples que se auto-reproduzem? Ou sistemas fechados simples são capazes de acelerar reações com eficiências comparáveis aos "modernos" catalisadores enzimáticos? Do ponto de vista experimental, é possível mostrar, hoje, que vesículas fechadas, delimitadas por uma membrana, que se reproduzem e que produzem a sua própria fronteira podem ser preparadas (Luisi, 2006). Outras vesículas que catalisam reações a velocidades enzimáticas podem também ser preparadas em laboratório (Cuccovia, Quina & Chaimovich, 1982). Toda uma escola dentre os cientistas que estudam a origem da vida pensa que a separação dentro/fora, evento fundamental para a definição de um sistema vivo, pode ter começado pela formação espontânea de vesículas compostas de lipídios primordiais (Deamer & Pashley, 1989). Um esquema representando uma vesícula se mostra na Figura 3. Claro que esses sistemas-modelo não estão "vivos", mas reproduzem algumas das propriedades que devem ter sido parte dos processos ancestrais no caminho da transição inanimado-vivo.

     

     

    A atividade central da célula primordial é manter a sua própria identidade e se reproduzir. Essas atividades distinguem aquilo que é vivo daquilo que não é vivo. Esse é o propósito, usando uma palavra extremamente antropocêntrica, do sistema vivo. E a(s) célula(s) primordial(ais) faz isso por um processo interno de regeneração, isto é, sem referencial externo.

    Um sistema vivo mínimo pode ser definido como um arranjo molecular espacialmente definido por uma fronteira sintetizada pelo próprio sistema, que se auto-mantém, regenera todos os componentes do seu interior e é capaz de se reproduzir.

    Essas características podem ser as ferramentas usadas, até hoje, num jogo que podemos definir como o jogo das listas, que se descreve em seguida. Um conjunto de palavras é apresentado a uma pessoa sem nenhuma educação formal (ou a um ser extraterrestre) e se lhe solicita separar essas palavras em duas listas: a "lista do vivo" e a "lista do não-vivo". O conjunto de palavras pode ser, por exemplo: mosca, radinho de pilhas, árvore, computador, mula etc. A pessoa sem nenhuma educação formal, quiçá sem saber ler, mas ordenando as palavras que ouviu, não tem dificuldade nenhuma em separar as palavras em duas listas. A mosca é viva, a árvore também, a mula, a criança, cogumelo, ameba. O radinho, que eu escuto, não é; o carro não é; o robô não é; o cristal não é; a lua não é; e o computador também não. E a pergunta é: Qual é — ou quais são — as qualidades que discriminam o vivo do não-vivo? E essas qualidades têm de estar presentes em todos os membros da "lista do vivo" e têm de estar ausentes em todos os membros da "lista do não-vivo". Em geral, essas qualidades reproduzem os critérios mínimos apresentados acima para definir um sistema vivo.

    Há cinqüenta anos, um estudante de pós-graduação, num laboratório importante nos Estados Unidos, demonstrou que podia sintetizar moléculas componentes nos sistemas vivos, como aminoácidos, ácidos graxos e outras, fazendo passar descargas elétricas por uma mistura de gases que podia ter sido, ou não, a atmosfera primordial (Miller, 1953). Toda uma escola de bioquímicos pensou que: "Pronto. Descobrimos a vida!". Quarenta anos depois, alguns cientistas pensam que "a vida começa com o RNA". E eu me pergunto: colocando um pouco de RNA em um tubo, e mantendo a esterilidade, quanto tempo se vai esperar até que surja uma coisa que o nosso camponês possa colocar na "lista do vivo"? Eu acho que se vai ter de esperar muito tempo. É que nós acreditamos de uma forma extremamente empáfica que sabemos tudo.

    Outra pergunta a se fazer com relação a essa complexidade de distinguir o que é vivo do que não é vivo, e as suas origens, é: As proteínas de hoje são as únicas que poderiam ter sido formadas? Ou então se poderia afirmar que essas proteínas deram origem à vida por uma série determinística e obrigatória de eventos. Porque, se as proteínas que hoje existem fossem as únicas proteínas possíveis, quiçá as proteínas e, portanto, a vida têm uma origem por um único caminho. Ou, por outro lado, se essas proteínas são produtos de condições contingentes, a vida, também, é um produto contingente. Essa pergunta pode ser feita dentro do método científico e tem resposta. Experimentos mostram que, dependendo de como se faz o desenho do experimento, proteínas que não têm absolutamente nada a ver com as proteínas de hoje podem ser obtidas e são estáveis (Luisi, Chiarabelli & Stano, 2006). Pelo menos no nível de proteína, a estrutura presente é produto da evolução e certamente tem origem contingente. Esses experimentos demonstram que a estabilidade termodinâmica não determina o início, e o resultado vai junto com a evolução: as proteínas que temos não são as únicas que poderíamos ter se as condições iniciais tivessem sido diferentes e o processo evolutivo passasse por um caminho distinto.

    Não se obteve em laboratório transição entre matéria inanimada e vida. Isso é claro. Portanto, essa transição permanece até hoje como hipótese. E é perfeitamente possível que esse enfoque experimental, de baixo para cima, isto é, das moléculas até a aparição de um objeto vivo seja impossível, ou extremamente improvável, pela própria contingência. Porque, se é por acaso ou por condições contingentes que a vida é aquilo que é, conceitual e experimentalmente pode ser impossível reproduzir a vida como ela existe em condições de laboratório e sem o conhecimento das condições que determinaram essa transição.

     

    Hernan Chaimovich é professor titular do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Academia de Ciências da América Latina (ACAL), Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), membro correspondente da Academia Chilena de Ciências e fellow da Associação para o Avanço da Ciência dos Estados Unidos (AAAS).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    CUCCOVIA, I. M.; QUINA, F. H. & CHAIMOVICH, H. 1982. "A remarkable enhancement of the rate of ester thiolysis by synthetic amphiphile vesicles". Tetrahedron 38(7), pp. 917-920.

    DEAMER, D. W. & PASHLEY, R. M. 1989. "Amphiphilic components of the murchinson carbonaceous chondrite: surface properties and membrane formation". Orig. Life Evol. Biosph. 19, pp. 21-38.

    LUISI, P. L. 2006. The emergence of life. From chemical origins to synthetic biology. Cambridge: Cambridge University Press.

    LUISI, P. L.; CHIARABELLI, C. & STANO, P. 2006. "From the never born proteins to the minimal living cell: two projects in synthetic biology". Orig. Life Evol. Biosph. 36, pp. 605-616.

    MILLER, S. L. 1953. "Production of aminoacids under possible primitive Earth conditions". Science 117, pp. 2351-2361.

    VARELA, F. J. & MATURANA, H. 2001. A árvore do conhecimento. As bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena.

    VOET, D. & VOET, J. D. 2006. Bioquímica. São Paulo: Artmed/Bookman.