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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.spe1 São Paulo July 2008

     

     

    O CONCEITO DE PESSOA — ASPECTOS BIOLÓGICOS E FILOSÓFICOS

     

    Francisco M. Salzano

     

    Pode-se visualizar o problema da gênese da vida humana através de dois enfoques, o filogenético e o individual. No primeiro caso, procura-se estabelecer o que distingue a nossa espécie das outras da biosfera. No segundo, a ênfase é diferente, associando-se o processo biológico de formação de um novo ser com o conceito filosófico e ético de pessoa, o qual implica direitos e obrigações. Essa questão vem sendo considerada há séculos, e é sobre ela que versará o presente trabalho.

    A INEFICIÊNCIA DO PROCESSO REPRODUTIVO NA ESPÉCIE HUMANA Inicialmente deve-se salientar que a reprodução em nossa espécie está longe de ser eficiente. Estima-se que a prevalência de casais incapazes de se reproduzir situa-se entre 5% e 10%. Nada menos do que 50% das células-ovo formadas (zigotos) perdem-se nos estágios pré-embrionários, e calcula-se em 15% a taxa de abortos naturais, definidos como o término da gestação antes da 22ª semana (cinco meses e meio; embrião ou feto com quinhentos gramas ou menos). Entre os que nascem, de 1% a 3% apresentam más-formações, indicativas de falhas no processo ontogenético.

    Em todo o caso, se tudo correr bem, a Tabela 1 apresenta uma descrição dos estágios desse desenvolvimento. São três etapas mais ou menos bem definidas, a de pré-embrião (duas primeiras semanas de vida, que ocorrem antes da implantação no útero); de embrião (da 3ª à 12ª semana), com a formação das estruturas básicas; e de feto (do 3º mês ao nascimento) com o crescimento e diferenciação dos órgãos. A formação do tubo neural, que dará origem à espinha da coluna vertebral, ocorrerá no 17º dia, e o início da vida cerebral, entre a 28ª e a 32ª semana (sete a oito meses) de gestação (Robertson, 1986; Glantz, 1976).

     

     

    PROGRESSOS NO CAMPO DA REPRODUÇÃO Um dos desenvolvimentos mais espetaculares do século passado foi o da separação, na nossa espécie, entre sexo e reprodução. Pode-se fazer sexo sem objetivos reprodutivos, utilizando-se métodos anticoncepcionais, bem como gerar novos seres em laboratório (bebês de proveta). A Tabela 2 lista doze possibilidades, criadas pelo desenvolvimento científico-tecnológico, de intervenção no processo reprodutivo humano. Elas vão desde o controle da produção e qualidade dos gametas à inseminação artificial com a avaliação da normalidade do material formado, monitoramento do desenvolvimento embrionário e fetal, intervenção intra-uterina tanto no embrião/feto quanto no seu ambiente e eventualmente até a interrupção da gestação quando os embriões ou fetos são anormais.

    No caso específico da genética, o controle realiza-se através de métodos citogenéticos (para a detecção de anomalias grosseiras, como a presença de um cromossomo a mais, na síndrome de Down), bem como moleculares (detecção de uma modificação submicroscópica, envolvendo apenas uma unidade do DNA, como em grande número de erros inatos do metabolismo).

    Sucessos espetaculares, muito debatidos, constituem as técnicas de terapia gênica (na qual haveria a introdução de DNA, através de vetor apropriado, em indivíduo com determinada anormalidade genética, com o objetivo de curá-lo) e de clonagem (substituição de todo o núcleo de uma célula por outro de um organismo geneticamente distinto). No entanto, o número de casos de sucesso com relação à terapia gênica é ainda pequeno e a clonagem reprodutiva tem sido proibida na legislação de diversos países, inclusive na do Brasil (Lei nº 11.105, de 24/3/2005). Essa mesma lei (ver também o Decreto nº 5.591, de 22/11/2005), no entanto, permite a utilização terapêutica de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento.

    O CONCEITO DE PESSOA Onde deve ser estabelecido o limiar que caracteriza o ser moral, com direito à vida? As respostas a essa pergunta são muito variadas. Talvez a mais radical, atualmente adotada pela Igreja Católica, é a de que esse direito estabelece-se na fecundação, isto é, a de que a célula-ovo já teria status de pessoa. Segre (1999) salienta que a orientação da ética através da religião só pode levar a becos sem saída, lembrando que, tomada em sentido literal, toda a miséria humana decorre de um ato de vingança, realizado através da expulsão de Adão e Eva do paraíso. Deve ser mencionado, também, que essa posição da Igreja Católica é relativamente recente. Para Santo Agostinho e outras autoridades eclesiásticas católicas da Idade Média (época de maior terror religioso), o direito à vida principiava no nascimento.

    Conceito equivalente ao de Santo Agostinho, envolvendo o aspecto da viabilidade extra-uterina, foi adotado por um grupo científico da Organização Mundial de Saúde (WHO, 1974). A recomendação foi de que a expulsão do útero de um feto de quinhentos gramas já deva ser considerada como o nascimento de um novo ser, com os direitos equivalentes. Isso independentemente do fato de que bebês com período de gestação de 22 a 28 semanas, correspondendo a pesos ao nascimento de quinhentos a 999 gramas, têm probabilidade muito reduzida de sobrevivência.

    Essa questão do status moral e legal do embrião ou feto foi cuidadosamente discutida por Robertson (1986). Segundo ele, a noção de que um pré-embrião seja uma entidade com direitos ou uma pessoa não tem fundamento, pois esse conjunto de células não é claramente um indivíduo. A individualidade no desenvolvimento só se estabelece com a formação do disco embrionário, o que ocorre apenas à época da implantação no útero. Antes disso pode ocorrer, inclusive, o fenômeno da gemelaridade, com a formação de dois ou mais indivíduos. Por outro lado, é somente entre a 6ª e a 8ª semana de gestação que se começam a desenvolver o sistema nervoso e a coluna vertebral.

    Tem sido sugerido também (Glantz, 1976) que o direito de pessoa deveria ser estabelecido à época do início da "vida cerebral", que ocorre entre a 28ª e a 32ª semana (7º ao 8º mês) de gestação. Como a morte de um indivíduo é definida pela interrupção de funcionamento do cérebro, há uma lógica em conceber seu início quando esse órgão começa a funcionar.

    Em termos legais (ver, por exemplo, decisão de 1973 da Corte Suprema dos Estados Unidos da América), a pessoa não existiria antes do nascimento, e este tem sido definido como compreendendo a completa expulsão do bebê pela mãe, bem como pela ocorrência de respiração e circulação independente por parte do recém-nascido (Salzano, 1983). No entanto, as leis relacionadas ao abortamento diferem bastante entre os países. No Brasil, em termos estritos, ele só é permitido em duas situações: (a) quando a vida da mãe corre perigo; ou (b) em caso de estupro (artigo 128 do Código Penal).

    O primeiro alvará brasileiro autorizando a realização de um aborto por anomalia fetal foi proferido pela Comarca de Rio Vermelho do Mato Grosso, no Mato Grosso do Sul, em 1991, em um caso de anencefalia (feto sem cérebro); e estima-se que já foram proferidas cerca de 2 mil autorizações em casos de anomalia fetal incompatível com a vida (Diniz & Ribeiro, 2004). Em 2005, o Conselho Nacional de Saúde aprovou resolução favorável ao direito da mulher de optar pela interrupção da gestação de feto com anencefalia. Dos trinta conselheiros presentes, apenas três votaram contra (Zero Hora, 2005). Já em um estudo envolvendo 1.838 mulheres em idade de reprodução, 59% manifestou-se favorável à interrupção da gestação nesses casos (Osis et al., 1994).

    DILEMAS E UMA LEMBRANÇA O que deve prevalecer, um conceito abstrato de pessoa atribuído a um punhado de células ou o direito ético de qualquer criança ou adulto de receber uma medicação apropriada para suas enfermidades? Em todos os regulamentos existentes até o momento relativos ao uso de embriões para pesquisa, o tempo em que ele poderá permanecer vivo, in vitro, não poderá ultrapassar a fase de pré-embrião (catorze dias). E um direito muito negligenciado é o de que todo ser humano deve usufruir ao máximo os benefí­cios obtidos por meio da ciência e da tecnologia, independentemente de sexo, afiliação étnica, condição socioeconômica e país de residência. Concluo com uma lembrança: nem o católico mais fervoroso mandou rezar missa de sétimo dia por um aborto espontâneo!

     

    Francisco M. Salzano é professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), exercendo suas atividades no Departamento de Genética do Instituto de Biociências dessa instituição. É membro da Academia Brasileira de Ciências e membro estrangeiro da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos e da Academia Chilena de Ciências, bem como de duas outras academias de ciências regionais.

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    DINIZ, D. & RIBEIRO, D. C. 2004. Aborto por anomalia fetal. Brasília: Letras Livres.

    GLANTZ, L. H. 1976. "The legal aspects of fetal viability". In MILUNSKY, A. & ANNAS, G. (eds.). Genetics and the law. Nova York: Plenum, pp. 435-450.

    MOORE, K. L. & PERSAUD, T. V. N. 2004. Embriologia clínica. São Paulo: Elsevier.

    OSIS, M. J. D.; HARDY, E.; FAÚNDES, A.; ALVES, G. & BALAREZO, G. 1994. "Opinião das mulheres sobre as circunstâncias em que os hospitais deveriam fazer abortos". Cad. de Saúde Pública 10, pp. 320-330.

    ROBERTSON, J. A. 1986. "Embryo research". The University of Western Ontário Review 24, pp. 15-37.

    SALZANO, F. M. 1983. A genética e a lei. Aplicações à medicina legal e à biologia social. São Paulo: T.A. Queiroz e EDUSP.

    SEGRE, M. 1999. "Reflections on bioethics: consolidation of the principle of autonomy and legal aspects". Cad. de Saúde Pública, 15, Supl. 1, pp. 91-8.

    WHO (World Health Organization). 1974. Health aspects of human rights in the light of developments in Biology and Medicine. Genebra: who.

    ZERO HORA. 2005. "Conselho aprova aborto de fetos sem cérebro". 10 mar.