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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.spe1 São Paulo July 2008

     

     

    ORIGENS, MÍTICAS E CIENTÍFICAS

     

    Eduardo Rodrigues da Cruz

     

    Escolhi para o argumento que se segue um viés de análise cultural, mais que propriamente o da ética. Como uma imagem vale mais que mil palavras, este artigo se desenvolve a partir de algumas imagens significativas, registradas nos últimos anos, que dizem respeito ao tema "gênese da vida humana" e minha linha de pesquisa. Tendo este texto se originado do simpósio dedicado a esse mesmo tema (veja "Introdução", p. 52, desta edição), o estilo da apresentação oral é mantido, para suscitar interesse por certas questões mais do que desenvolver uma hipótese até seu término lógico-empírico.

    A primeira pergunta que precisa ser levantada é se é o caso, se vale a pena explorar questões ligadas à origem da vida para além dos limites estritos da ciência. A resposta é afirmativa, diante da complexidade do fato social de onde emergem tais questões.

    Podemos tomar como exemplo uma recente edição especial da revista Superinteressante, que contempla três números (219, de novembro de 2005; 220, de 7 de dezembro de 2005; 221, de 16 de dezembro de 2005), que tiveram tal vendagem que foram publicadas em um só volume no início do ano seguinte. Sugestivamente, aparecem como matérias de capa várias perguntas que foram colocadas no simpósio supracitado: a origem da vida, o seu término e a existência de um criador. Curioso que sejam as revistas de divulgação científica, e não as religiosas, que coloquem para o grande público tais perguntas de cunho filosófico-religioso.

    Com essa motivação em mente, gostaria de propor três temas básicos para reflexão: a origem do cosmos, a origem do homem e os tons mítico-religiosos que marcam o discurso em torno delas. Comecemos pela origem do cosmos.

    Esta é com freqüência apresentada, principalmente nos meios de divulgação, como dando lugar a uma dinâmica linear e progressiva, o desenvolvimento do cosmos. Como se sabe, o credo progressivista, apesar dos protestos de muitos cientistas, continua a dominar os corações e mentes de muitos. A seguir destaco dois exemplos, ligados ao ambiente acadêmico. A Figura 1 apresenta o desenvolvimento do cosmos na forma de uma "bela história", isto é, uma que nos leva de um começo ignóbil a um fim triunfante para a humanidade1. Esse tipo de figura — esta e a próxima — sugere três questões. A primeira é a de como se processa a origem de tudo — inicia-se pelo "Big Bang", na parte inferior da imagem, passa-se então para a formação do sistema solar, da crosta terrestre, os primeiros animais. Depois, subindo, o aparecimento do homem, o surgimento da filosofia e dos grandes cientistas. E, finalmente, no topo, um futuro glorioso.

     

     

    O que se nota primeiro é a evolução temporal — não está claro se é contingente ou não. Pode-se ter uma visão determinista aqui, mas de qualquer forma temporal, uma progressiva escala de tempo apontando para o mais elevado.

    Segunda questão: a do progresso e do papel do conhecimento nesse progresso, mais clara na Figura 2.

     

     

    A noção de progresso é atualmente muito questionada, mas ela está impregnada em nossas mentes. A pergunta que percorreu o simpósio Gênese da Vida Humana, se há um destino, ou se tudo é chance, acaso ou contingência, de certa forma foi respondida por essas figuras. Pode ser que os autores tenham tido outra idéia em mente, mas as figuras em si, que os editores escolheram, já sugerem uma espécie de destino onde a ciência tem um papel proeminente.

    Terceira questão: em termos da tradição judaico-cristã, uma origem única e uma escala temporal estão subentendidas na definição de criação a partir do nada (ex-nihilo). A criação a partir do nada significa que Deus, ao criar o mundo, não foi subordinado por nenhuma outra coisa preexistente, apenas por sua própria vontade. Essa vontade não é caprichosa, mas se faz através de leis, de estruturas, de relações. Por outro lado, vontade e liberdade implicam contingência, ou seja, o que foi criado poderia não tê-lo sido. Mas o foi, de uma maneira não arbitrária, mas que ao mesmo tempo permite múltiplas escolhas.

    Ou seja, a visão progressivista não é necessária — o progresso pode ocorrer, mas não é necessário, no âmbito de várias ciências, incluindo a teologia (na medida que a natureza é entendida como criação).

    Agora, passemos para a origem da vida humana, o segundo tema proposto. Também aqui temos uma "bela história" (Figura 3).

    A origem da vida humana é derivada da origem da vida como um todo, e mesmo da origem do mundo inanimado. Nesse sentido, a teologia pressupõe certa continuidade do mundo inanimado para a vida, e da vida para a vida humana. A mesma seqüência de raciocínio, ou seja, uma criação a partir do nada, significa que a matéria preexistente, ou o pó, como é dito no livro do Gêneses, não possui nenhum telos para a vida. É pó. O sopro divino é que permite a emergência da vida humana, no seio dessa longa escala evolutiva. Essa escala anterior vem do desenvolvimento do Homo — primeiramente dos hominídeos, depois do Homo e, por volta de 100, 150 mil anos atrás, do Homo sapiens. A Figura 4 reflete a explosão cultural na Europa, que ocorreu em torno de 40 mil anos atrás e que indica, também, o surgimento da consciência do homem moderno como homem cultural, como aquele que dá origem à arte, à religião e a formas culturais várias.

     

     

    Essa explosão cultural é também contingente e pode ter ocorrido em outras épocas, em outros locais na face da Terra. Apenas que essa européia é a mais conhecida. Mas, de novo, uma "bela história" se desenrola a partir da evolução de nossa espécie, e essa narrativa tem um colorido progressivista. Vejamos também a Figura 5.

     

     

    Essa é uma imagem que todos conhecemos, que entende o Homo sapiens como resultado privilegiado de um processo linear. Apresenta-se aí como do ser humano, qual é sua origem a partir de ancestrais comuns aos outros primatas. É uma linha equivocada, como observam todos os biólogos evolutivos contemporâ­neos. No entanto, uma imagem vale mais do que as intenções de um autor — a nossa idéia de que a vida humana está associada a um progresso acaba prevalecendo.

    E aí vem o meu terceiro tema, a persistência de um substrato semi-religioso presente nas nossas imagens e discurso contemporâneos sobre a origem, em qualquer escala. A idéia de progresso biológico corresponde, também, a uma idéia de progresso espiritual. Por outro lado, há alguns autores mais extremados, como o biólogo Stephen J. Gould, que enfatizam mais do que outros a contingência do processo evolutivo. Gould diz que a linha não apenas está equivocada, como totalmente equivocada, e que não deveríamos mais pensar nesses termos. Em seu livro Vida maravilhosa ele apresentou graficamente sua posição.

    Nessa Figura 6 encontramos uma reprodução contida nesse livro, onde se nota que o mesmo esquema linear aparece nas mais variadas formas, lugares e culturas diferentes: tornou-se uma imagem globalizada. Ela permanece no nosso inconsciente coletivo, determinando as nossas formas de pensamento.

     

     

    A Figura 7, de cunho futurista, caminha na mesma direção. Essa agora fala não apenas do que ocorreu no passado, mas também de um futuro possível. No pináculo da evolução está um robô. Logo antes vem um robozinho, que em seguida é já um híbrido — ser humano e robô — e, finalmente, apenas o robô, que seria, novamente, quase que o passo seguinte da evolução natural da espécie humana. Essa idéia de forma alguma é restrita; muitos profissionais da robótica indicam isso como nosso futuro — ou seja, nossa herança biológica estaria perto do fim, e com isso toda a sua contingência e finitude2. Nós teremos, aí segue o raciocínio, um futuro mais inteligente e significativo, a realização de muitas utopias. Há uma esperança em relação ao futuro, que certamente tem um pano de fundo religioso. Não há ciência que aponte, em si, para isso. Mas há muitas filosofias pretensamente baseadas na ciência que assim o fazem. Muitas obras de ficção científica falam (positiva e negativamente) dessa esperança, que é a de um futuro mecânico (no sentido mais lato do termo). É uma esperança religiosa invertida, e a proposta de humanização mostra-se, ao final do percurso, como desumana.

     

     

    Mas Stephen Gould teria razões para estar muito decepcionado com os brasileiros. No mesmo ano de seu falecimento, é publicado em português seu livro Pilares do tempo, sobre ciência e religião. Novamente, ele combate aí a idéia de uma evolução progressiva e linear. A ironia: o editor brasileiro (Rocco), que trabalha muito com divulgação científica, cismou de escolher, na capa, justamente a seqüência que em princípio deveria ser combatida (Figura 8). Então, resumindo: as preocupações religiosas são as preocupações humanas mais básicas. "De onde viemos? Para onde vamos? Como devemos nos comportar?", que também são aquelas da ciência contemporânea (cf. Marcelo Gleiser).

     

     

    Sem uma abordagem interdisciplinar, onde também considerações religiosas e teológicas entrem no processo, dificilmente teremos respostas satisfatórias para as questões da origem da vida como um todo. O que está em jogo é a origem do cosmos e da vida humana, inclusive na própria definição do que é pessoa, indivíduo, ser humano, e o papel da intencionalidade.

    Não podemos ter aqui uma resposta puramente científica. As respostas, se e quando houver, também terão componentes filosóficos e teológicos3. Qualquer hipótese que se formule — e nossa intenção é não só formular as perguntas corretas, mas também hipóteses viáveis para a origem da vida — tem de levar em consideração vários níveis de realidade e formas de tratar o assunto racionalmente, tendo em mente os limites do pensamento humano e os caminhos possíveis de resposta. Daí que proponho a importância do pensar teológico, propriamente entendido, para todas as etapas de aquisição de conhecimento sobre tais perguntas fundamentais.

    Essa importância também se revela na prática. De fato, um dos grandes desafios para uma explicação científica das origens é o criacionismo "científico" (ou seu sucedâneo, o intelligent design), que racionaliza o tema mítico das origens no livro do Gêneses. A Figura 9 ilustra o fato de que visões criacionistas começam a ganhar a esfera pública no Brasil. Os que defendem o que deve ser considerada a única abordagem correta, a visão darwiniana da vida, podem facilmente incorrer em erros estratégicos se não se aliarem a outras partes interessadas no debate, como o grosso da teologia cristã contemporânea.

    Considerem-se as duas citações abaixo, de Epstein e Vieira, que aparecem em um número da revista eletrônica ComCiência dedicado ao desafio do criacionismo. Para um leitor desavisado, elas apenas representam visões filosóficas opostas. Como separar o joio do trigo, só com base no conhecimento científico?

    Não acreditamos que, do ponto de vista da ciência, o criacionismo mereça mais do que uma breve menção, não sendo suas razões capazes de abalar o edifício das crenças científicas e das evidências a favor do evolucionismo. A teoria evolucionista naturaliza o homem fazendo-o parte imanente e contingente de um processo mais amplo e global. O criacionismo lhe atribui uma origem transcendental e necessária através do sopro da vontade divina. Assim, o evolucionismo explica a origem do homem de "baixo para cima" a partir de formas menos complexas e o criacionismo de "cima para baixo" através do ato divino (Epstein, 2004).

    A partir das considerações apresentadas, conclui-se que, na realidade, evolucionismo e criacionismo constituem duas maneiras distintas, e extremas, de aceitar uma explicação para a existência da vida. Da nossa existência, a existência de nosso planeta e do nosso sistema solar, e a própria existência do Universo, explicação esta que transcende as potencialidades da ciência e do método cientifico, podendo ser aceita somente por um ato de fé — seja fé criacionista, seja fé evolucionista (Vieira, 2005)!

    A partir desta percepção, muitos cientistas e teólogos têm se dedicado a dialogar sobre as grandes questões relativas às origens. Um exemplo de fôlego pode ser visto no livro Construindo pontes (Peters & Bennett, 2003), e é a este diálogo que convidamos o público leitor.

     

    Eduardo Rodrigues da Cruz é mestre em física, doutor em teologia e professor titular do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Tem pesquisado nas últimas décadas a interface entre as ciências naturais e a religião e publicado a respeito em diversos países.

     

     

    NOTAS

    1. Em tempos não muitos distantes, "A mais bela história" remetia imediatamente o leitor à Bíblia Sagrada. Agora, os novos mitos permitem o surgimento de uma nova narrativa, com elementos extraídos diretamente da ciência.

    2. Ver, por exemplo, Ray Kurzweil (2005).

    3. O próprio Richard Dawkins, o arquiinimigo da religião, reconhece (malgrado sua intenção) esse ponto — ver Dawkins, 2006, último capítulo.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    DAWKINS, Richard. 2006. The God delusion. Boston/New York: Houghton Mifflin.

    EPSTEIN, Isaac. 2004. "Criação e evolução". ComCiência [on line] 58, jul. [disponível em www.comciencia.com.br, acesso em 20 de maio de 2005].

    GOULD, Stephen J. 1990. Vida maravilhosa. O acaso na evolução e a natureza da história. São Paulo: Cia. das Letras.

    ____. 2002. Pilares do tempo. Ciência e religião na plenitude da vida. Rio de Janeiro: Rocco.

    KURZWEIL, Ray. 2005. The singularity is near. When humans transcend biology. Nova York: Viking/Penguim.

    LANGANEY, André et. al. 2002. A mais bela história do homem. De como a Terra se tornou humana. Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil.

    MITHEN, Steven. 2002. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. São Paulo: Editora da Unesp.

    PETERS, Ted & BENNETT, Gaymon. 2003. Construindo pontes entre a ciência e a religião. São Paulo: Loyola/ Editora da Unesp.

    REEVES, Hubert et al. 1996. A mais bela história do mundo. O segredo de nossas origens. Lisboa: Gradiva.

    SUPERINTERESSANTE. 2006. São Paulo: Editora Abril. nos 219; 220; 221.

    TAYLOR, Stuart Ross. 2000. Destiny or chance. Our solar system and its place in the cosmos. Cambridge: Cambridge University Press.

    VIEIRA, Ruy Carlos de Camargo. 2004. "Subsídios para a compreensão da controvérsia entre o criacionismo e o evolucionismo’’. ComCiência [on line] 58, jul. [disponível em www.comciencia.com.br, acesso em 20 de maio de 2005].