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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.61 no.1 São Paulo  2009

     

     

     

    ENTREVISTA: THOMAS LEWINSOHN

    Degradação ambiental e controle excessivo da pesquisa ameaçam a biodiversidade brasileira

     

    Para o cientista brasileiro, é mais fácil fazer pesquisa de campo nos Estados Unidos do que em seu próprio país. Quem afirma é o ecólogo Thomas Michael Lewinsohn, professor titular do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde coordenou o Programa de Pós-Graduação em Ecologia até 2008. Recentemente convidado para a comissão de elaboração de um novo projeto internacional de monitoramento de biodiversidade em florestas tropicais, ele comenta que teria muito mais facilidade de fazer coletas e encaminhar espécimes biológicos para identificação a partir do Panamá do que no Brasil e alerta que é hora de incentivar os especialistas a conhecer e preservar um dos maiores patrimônios de biodiversidade do mundo, em cujos biomas as áreas melhor preservadas estão desaparecendo a olhos vistos. Para essa tarefa, ele estima que o país tenha apenas cerca de 10% dos profissionais necessários. Embora identifique um cenário nada otimista, reconhece avanços importantes no conhecimento e nas iniciativas governamentais, mas afirma que ainda é preciso convencer os gestores de ciência e tecnologia a investirem em projetos de longo prazo que darão subsídios para a formulação de políticas ambientais. Ele coordenou o "Diagnóstico do conhecimento da diversidade brasileira", encomendado pelo Ministério do Meio Ambiente, uma das iniciativas mais importantes para melhorar o conhecimento da biodiversidade.

    Há ainda uma enorme burocracia a que o pesquisador tem que se submeter para não ser considerado um biopirata. Isso complica o trabalho da pesquisa no país?

    Desde a proposta de uma legislação de maior controle sobre o acesso ao conhecimento da biodiversidade brasileira, existe uma guerra de trincheiras entre a comunidade científica e os responsáveis pela implementação do sistema de controle no governo. Houve algumas tentativas de aproximação, mas o problema básico, em nenhum momento, foi resolvido. O que se fez foi colocar a burocracia on line, mas ela continua desnecessariamente complicada e obstrutiva e, por isso, contraria os maiores interesses nacionais. Temos uma comunidade científica ainda reduzida, embora o Brasil tenha uma base importante para ecologia, nada trivial e das maiores entre os países chamados megadiversos. O número de cientistas tem crescido, mas eles são cerca de 10% do necessário para atuar na área, considerando as dimensões e a diversidade de biomas do Brasil. Então, há uma comunidade que já é reduzida, insuficiente para a responsabilidade e a urgência das tarefas que temos, e cria-se um sistema que trata todo o cientista como desonesto até que ele prove sua honestidade. É uma inversão de valores e do bom senso. Muitas vezes há verbas para desenvolver uma pesquisa que é do interesse do governo, foi encomendada e financiada por ele, mas não se pode desenvolvê-la porque não se tem as licenças. Hoje em dia, seria mais fácil para mim, como brasileiro, fazer pesquisa de campo nos Estados Unidos do que no Brasil, onde sou um pesquisador com uma história, pertenço a uma instituição que tem um crédito importante. Seria da máxima urgência, em princípio, que todas as instituições estabelecidas e cientificamente credenciadas tivessem licenças abrangentes, respeitada a legislação.

     

     

    A Amazônia é, sem dúvida, o ecossistema que mais atenção tem recebido. No entanto, mesmo com planos de preservação, monitoramento por satélites e legislação protetora, o desmatamento continua devastando a região. Como estão, então, os outros biomas brasileiros, como o Cerrado e a Caatinga?

    Existem boas razões para estarmos alarmados com, virtualmente, qualquer outro bioma brasileiro, embora as condições possam ser um pouco diferentes. Os ecossistemas naturais da Caatinga já sofreram reduções imensas ao longo dos últimos séculos de ocupação. Ela é, ao mesmo tempo, um sistema muito vulnerável e pouco compreendido, então, deveria ser uma prioridade de estudo e conhecimento. O Pantanal é absolutamente crítico, e talvez seja o sistema mais vulnerável no Brasil, porque depende de um balanço hídrico muito complexo e delicado, qualquer alteração é capaz de desestruturá-lo com consequências ainda imprevisíveis. Sofre ameaças de todo tipo, seja pela entrada muito agressiva da soja, seja pelas incursões para plantio de cana, como parte da política de etanol, que ressurge com muita força. Da Mata Atlântica nem adianta falar, porque já ultrapassou um nível de redução, de degradação de área, combinada com pressões extremas demográficas. O bioma coincide com a maior parte das áreas de maior densidade demográfica. A única coisa que me ocorre dizer, em termos de política ambiental para a Mata Atlântica, é colocar um defeso sobre tudo o que ainda existe e resiste, e de uma forma intransigente, não negociável, porque o nível é de resgate emergencial dos últimos remanescentes.

     

     

    O Cerrado sofreu uma redução de área muito mais violenta que a Amazônia e ironicamente, em parte, por causa dela. Quando a atenção internacional se virou para a Amazônia, nos anos 1980, uma das principais ações de desmatamento era a queima de carvoarias para abastecer siderúrgicas. Uma grande parte dessa atividade foi deslocada, intensificada, no Cerrado e, até hoje, é um dos problemas mais sérios e recorrentes do bioma. Outro grande impacto na região ocorreu com a entrada de grandes investimentos, no final dos anos 1970, para a irrigação e correção de acidez do solo, que permitiu a substituição da pecuária de baixa intensidade pela soja. Em menos de trinta anos, a soja está comendo o Cerrado. Há os ecossistemas costeiros, que costumamos deixar de fora desses balanços, mas que são tão ou mais vulneráveis que a própria Mata Atlântica, e estão sob pressão de empreendimentos de todo tipo. E, finalmente, acabamos sempre esquecendo dos Campos do Sul, onde estão, especialmente, as áreas originais de araucárias, os campos nativos de alta diversidade, ecossistemas riquíssimos e pouco valorizados. A ameaça é muito forte, porque a região Sul brasileira é, igualmente, de crescimento e ocupação demográfica muito intensa. Temos, portanto, de norte a sul problemas em grande escala, nenhum ecossistema brasileiro está a salvo ou relativamente bem preservado.

    O país é dono da maior biodiversidade do mundo e o esperado é que isso nos coloque à frente como especialistas em ecologia e meio ambiente. Como estamos em relação aos países desenvolvidos, nesse campo?

    Uma das nossas desvantagens históricas é que nossa matriz de colonização não tinha lá uma grande vocação de história natural. Séculos de coleta de espécies – estudadas e descritas – foram depositados em coleções em países como Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos. E, para se fazer um trabalho taxonômico tradicional, é preciso recorrer a essas coleções, o que não é fácil nem barato. Houve conversas internacionais sobre maneiras de corrigir uma certa injustiça que está embutida na história. Há um termo que assusta os pesquisadores do Primeiro Mundo, que é o repatriamento. O que não é nada simples e exige instituições muito bem aparelhadas, estruturadas e com garantias de continuidade. Nossas instituições, que guardam coleções científicas de referência, têm dificuldades imensas de infra-estrutura, de garantir o seu acervo. O repatriamento, nesses termos, seria uma irresponsabilidade. O ponto é que a legislação brasileira dificulta o trânsito de materiais biológicos ou de pessoas, o que acaba jogando diretamente contra os nossos interesses. Não podemos nos dar o luxo de não trocar informações [com pesquisadores e instituições estrangeiros], porque se passa a tomar decisões mal embasadas e que cientificamente não se sustentam. É preciso abrir os portos (cientificamente) novamente, de uma forma muito consciente, uma vez que as sanções que existem já são do conhecimento dos cientistas que trabalham em instituições reconhecidas do Primeiro Mundo, e também são respeitadas por essas instituições. Existe risco de biopirataria sim, mas o fato de fecharmos os portos me parece muito mais arriscado, nas consequências imediatas, do que o risco que correríamos com uma política de trânsito de materiais biológicos mais livre.

    Em 2003, o senhor lançou o livro Biodiversidade brasileira — síntese do estado atual do conhecimento. De lá para cá o país conhece melhor sua biodiversidade e esse conhecimento tem feito diferença nas políticas de preservação ambiental?

    Não houve uma incorporação explícita de novas políticas provocadas por esse estudo, mas essa não era a sua intenção. O trabalho realmente faz certas recomendações, mas não procuramos ditar, formalizar recomendações estruturais; não fizemos "dez mandamentos" como conclusão. Entendíamos que esse balanço seria subsídio para uma discussão. Não vemos, na esfera pública oficial, alterações substanciais em função disso, mas sabemos que, de alguma forma, várias das idéias foram absorvidas na tomada de certas decisões e como referência para formular, subsidiar e justificar projetos de pesquisa. Esses indicadores mais informais têm sido muito animadores.

    Estudos que têm uma grande urgência, que precisam de respostas rápidas, frequentemente, nos obrigam a enfocar grupos de espécies de animais ou plantas mais bem conhecidos. Para aprofundar o conhecimento da biodiversidade, são necessários estudos comparativos entre diferentes regiões. A idéia é de criar áreas que funcionem como observatórios biológicos, para que se acompanhe, no longo prazo – anos, décadas e, se possível, séculos – e se observe o que se mantém, o que muda espontânea e não espontaneamente. Esse tipo de observatório é absolutamente essencial, mas é muito difícil convencer gestores de ciência e tecnologia, não de sua importância, mas de sua continuidade, que é fundamental. Vamos começar a colher frutos depois de dez anos, e bem melhores depois de vinte ou trinta anos. Pode parecer muito, mas se não começarmos, nunca teremos resultados e respostas para as perguntas mais importantes.

     

     

    O senhor afirmou que seria fundamental entendermos as relações e a organização das espécies num determinado ecossistema para se formular polí­ticas ambientais, geralmente baseadas na contagem das espécies e sua distribuição geográfica. Tornar as informações mais complexas não dificultaria a ação de políticas ambientais?

    Espero que não. É consenso que espécies não se preservam isoladamente na natureza. Todas as espécies de maior ou menor interesse para nós humanos fazem parte de sistemas dinâmicos ricos, complexos e de uma rede de interações biológicas. A metáfora da Arca de Noé é muito usada pelos conservacionistas, mas ela não garante que, se juntarmos todas as espécies, teríamos a sobrevivência de um sistema ecológico qualquer. O argumento básico é conhecermos quais espécies existem e onde, mas isso não é suficiente para termos um plano de manejo, um sistema de conservação. Minha linha de pesquisa tem ido na direção de observarmos a organização das interações biológicas dentro de uma comunidade natural e que espécies se relacionam, de que forma e com quem. Fazemos isso só com certos tipos de interações, como de animais que são visitantes florais ou, muitas vezes, polinizadores de plantas; interações com outros animais que são dispersores de frutos e sementes com suas plantas; parasitos e seus hospedeiros; e tenho trabalhado, mais particularmente, com as interações de plantas com herbívoros. Cada recorte de um desses modos de interação pode levar a um reconhecimento da organização de comunidades ecológicas que, por sua vez, pode nos dar pistas do que é essencial, para além da presença ou ausência de diferentes espécies. Essa seria uma das maneiras de chegarmos mais perto de entender o funcionamento dos ecossistemas.

     

    Germana Barata