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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.61 no.2 São Paulo  2009

     

     

    Continuará existindo a física de altas energias, após o LHC?

    Carlos Escobar

     

     

    Há mais de seis décadas presenciamos o crescimento exponencial da energia dos aceleradores de partículas, podendo a grosso modo dizer que, desde 1930, a energia dos aceleradores terrestres, concebidos e construídos pelo ser humano em seus laboratórios, aumenta por um fator 10 a cada seis anos. Do acelerador eletroestático de Cockcroft e Walton (ainda hoje usado nos grande laboratórios como Fermilab e Cern) com energia inferior a 1 MeV (1 milhão de eletronvolt) ao gigantesco Grande Colisor de Hádrons (LHC) do Cern [Organização Europeia para a Investigação Nuclear], que foi a estrela dos meios de comunicação mundiais em setembro de 2008, por ocasião do seu primeiro feixe, a energia efetiva dos aceleradores de partículas aumentou em 100 bilhões de vezes! Um crescimento tão estupendo quanto o aumento em velocidade de computação desde as calculadoras mecânicas dos anos 1930 aos computadores de hoje.

    Graças aos aceleradores de partículas, após um período inicial de fantásticas descobertas de novas formas de matéria em raios cósmicos, temos hoje um conhecimento bastante aprofundado das leis da natureza que regem o comportamento da matéria em escalas sub-nucleares, da ordem de um bilionésimo de um centésimo de nanômetro, para escolher uma escala de comprimento que está em moda, a nanoescala. O universo nessas dimensões é o universo de quarks, glúons, bósons vetoriais e léptons (entre os quais o nosso querido e indispensável elétron). Mas é inequívoco o sentimento dos cientistas que trabalham em física de altas energias: a teoria, que foi construída a partir dos anos 1960, é incompleta, possui um grande número de parâmetros livres sobre os quais nada tem a dizer, a maioria dos quais ligados às massas das partículas fundamentais que entram nessa teoria e, para complicar, argumentos de consistência interna mostram que essa teoria necessita modificações fundamentais numa escala de energia, além daquela até agora atingida pelo mais energético acelerador em operação, o Tevatron do Laboratório Nacional Fermi (Fermilab), nos EUA. Para investigar essas questões foi construído o LHC, o projeto de maior complexidade já tentado pela humanidade. Mas isso já é história e foi abundantemente coberto pela imprensa e meios de comunicação em 2008. O que pretendemos aqui é esboçar preocupações e apontar caminhos que nos permita responder a pergunta feita no título deste artigo.

    O grande físico dinamarquês, Niels Bohr, costumava brincar dizendo que previsões são difíceis de serem feitas, especialmente quando dizem respeito ao futuro. Estarei totalmente enquadrado na observação brincalhona de Bohr. Claro que o futuro da área dependerá totalmente das descobertas feitas no LHC, principalmente no que diz respeito à física de altas energias realizada em aceleradores terrestres, afinal, poucos acreditam que outra grande máquina venha a ser construída após o gigantesco e caro (6 bilhões de euros) acelerador do Cern, ainda que existam em estudo projetos tais como o Colisor Linear Internacional (ILC), um colisor de elétrons (convém lembrar que o LHC é um colisor de prótons) com energia bastante inferior ao LHC, mas com a vantagem de produzir interações mais limpas com as quais poderíamos estudar com precisão alguns dos fenômenos descobertos no LHC. Nessa visão o LHC seria uma máquina de descobertas e o ILC uma máquina para estudos de precisão. A crise econômica, os desafios ambientais, a necessidade imperativa de diminuir as desigualdades sociais e econômicas numa escala mundial, desafios que, se não enfrentados, levam ao risco de nossa própria sobrevivência como espécie, não recomendam a construção de novos aceleradores sem que haja uma radical inovação tecnológica ou em técnicas de aceleração, conseguindo gradientes de campos pelo menos 100 vezes maiores do que os hoje alcançados nas cavidades de rádio frequência que alimentam os grandes aceleradores ou na tecnologia de imãs supercondutores, não sendo improvável que nos próximos dez anos alcancem-se avanços em supercondutores de alta temperatura permitindo a fabricação de imãs grandes com campos de 30 a 50 tesla, quando hoje no LHC os imãs supercondutores com fios de liga NbTi chegam a 8,3 tesla. Sem falar na temperatura, já que os imãs de NbTi do LHC tem que operar a 1,9K (-271º C) enquanto os imãs com supercondutores de alta temperatura poderiam operar a temperaturas entre 90 e 120º K, dispensando o resfriamento com hélio líquido que onera pesadamente os custos operacionais das máquinas supercondutoras, como o Tevatron e o LHC.

    A maneira pela qual apresentei até agora os dilemas da física de altas energias pode levar à impressão equivocada de que só é possível fazer essa física em aceleradores terrestres. Não só essa impressão é enganosa como ignora a raiz histórica da área, seu nascimento como disciplina autônoma de investigação, com seus próprios programas e instrumentos. Como mencionei brevemente, logo no início deste artigo, a física de altas energias nasceu da física de raios cósmicos, fenômeno descoberto em 1912 pelo físico austríaco Vitor Hess e investigado a fundo por físicos do calibre de Robert Millikan, Arthur Compton, Bruno Rossi, Pierre Auger, Enrico Fermi, Georgiy Zatsepin e, mais próximos a nós, Gleb Wataghin, Cesar Lattes, Giuseppe Occhialini, Marcelo Damy de Souza Santos e outros. A entrada em operação, após a Segunda Guerra Mundial, dos grandes aceleradores de partículas nos EUA e na Europa, tiraram os raios cósmicos do palco das altas energias. Mas a história parece querer completar um ciclo, trazendo de volta ao centro das atenções os raios cósmicos, agora investigados na sua fronteira de altíssimas energias, na qual lidamos com partículas possuindo energias cerca de 10 a 30 milhões de vezes maiores que as dos feixes circulantes de prótons do LHC! Isso é o que estamos fazendo no Observatório Auger em Malargüe, província de Mendoza, na Argentina (www.auger.org). Claro está que num experimento de raios cósmicos não temos um feixe intenso, controlado, com seus parâmetros bem determinados como num acelerador terrestre, mas começamos a observar, através desses raios cósmicos, fenômenos até então insuspeitos na natureza e que podem levar-nos à revisão de aspectos fundamentais da física de partículas e da astrofísica relativística. De maneira inspiradora, a janela aberta na última década pelos avanços na astronomia, astrofísica e cosmologia permite-nos vislumbrar uma resposta positiva à pergunta feita no título deste artigo: sim, a física de altas energias continuará saudável, enquanto a humanidade assim o esteja, explorando agora o domínio astrofísico e cosmológico. A geração futura de projetos nessa área exibe um amplo leque de possibilidades que permitirão testes fundamentais da teoria da relatividade geral de Einstein, num regime em que ainda não foi testada, possibilitarão uma nova mirada no passado do universo através do estudo da famosa linha de 21cm fortemente deslocada para o vermelho, elucidarão a existência ou não da matéria e energia escura e estabelecerão, sem ambiguidades, a existência e propriedades dos buracos negros, que exercem forte fascínio não só para os cientistas como para o público em geral.

    Demonstração da pujança dessa nova área, física de astropartículas (assim é chamada) são as mais de 350 cartas de intenções (white papers) apresentadas em resposta à chamada formulada pela National Academies dos EUA no Decadal Survey Astro2010 e o programa equivalente na Comunidade Europeia conhecido como Aspera (www.7nationalacademies.org/bpa/Astro2010.html e www.aspera-eu.org/).

    Longa vida à física de altas energias! "Espere, não será física de astropartículas?", poderiam perguntar. Não importa, a natureza é inexorável e o ser humano limitado, assim como a história não terminará, enquanto estivermos vivos não terminará a busca pelo conhecimento das leis que regem o comportamento da matéria, seja em grande escala, seja na mais minúscula escala acessível ao conhecimento humano, o que necessitamos são dados experimentais:

    Teorias, meu amigo, são cinza,
    mas verde é a eterna árvore da vida.

    Fausto de Goethe

     

    Carlos Escobar é professor titular do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador da colaboração brasileira no Observatório Pierre Auger.