SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.61 número2 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

    Links relacionados

    • En proceso de indezaciónCitado por Google
    • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

    Compartir


    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.61 n.2 São Paulo  2009

     

     

     

    LÎNGUA PORTUGUESA

    Embates e acordos na história das reformas ortográficas

     

    Os leitores de jornais de grande circulação e das principais revistas semanais começaram o ano sentindo um certo estranhamento ao ler palavras como estreia, ideia ou para, do verbo parar, sem o reconfortante acento agudo. Perceberam, assim, que entrou em vigor a nova forma de grafar uma pequena parcela das palavras que compõem o imenso vocabulário da língua portuguesa. A imprensa aderiu depressa às reformas, mas o mesmo não deve acontecer no mercado editorial de livros, particularmente em Portugal, onde as mudanças são ligeiramente maiores e há controvérsia entre os escritores. Porém, reformas como essa são processos lentos, e o prazo para adequação ao acordo ortográfico entre oito países de língua portuguesa – incluindo São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e Moçambique, na África, e Timor Leste, na Ásia – se estende até 2012.

    Serão mais de duas décadas de travessia desde que Antônio Houaiss publicou A nova ortografia da língua portuguesa (Ática, 1991). Ali estavam as mudanças atuais, que deveriam ter entrado em vigor em 1994. No entanto, a ratificação do acordo só aconteceu em 1996 e, ainda assim, apenas Portugal, Brasil e Cabo Verde o assinaram. As mudanças, resultantes de um debate sobre unificação ortográfica ocorrido em Lisboa, em 1990, eram bem mais modestas que as propostas em encontro semelhante ocorrido no Rio de Janeiro, em 1986. Esse projeto anterior, rejeitado por Portugal, propunha, entre outras coisas, acabar com os acentos gráficos em todas as palavras paroxítonas e proparoxítonas.

    Luiz Carlos Cagliari, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara (SP), defende que não precisaríamos de sinal gráfico algum além das letras. Ele lembra que no inglês não há acentuação e que isso não gera problema para os usuários da língua. Cagliari acredita que o uso de acento gráfico em português gera confusão, mas explica a sua origem e por que as mudanças na escrita da língua já realizadas ao longo da história nunca contemplaram uma queda ampla e irrestrita da acentuação. "O uso das marcas de acento do português vieram da idéia das matres lectionis usadas pela escrita semítica (do árabe e do hebraico) para representar a qualidade de certas vogais (distinção entre ê/é, ô/ó), porque o alfabeto latino não tinha letras diferentes para esses sons. As reformas ortográficas nunca tiraram o acento gráfico da escrita porque os reformadores acham que alguns elementos tradicionais precisam ser mantidos. Houaiss gostaria de tirar os acentos, mas preferiu seguir as tradições, neste particular", acrescenta o pesquisador da Unesp.

    PRIMEIRA REFORMA EM 1911 A primeira mudança oficial na escrita da língua portuguesa, implantada em setembro de 1911, um ano após Portugal se tornar uma república, começou a ser gestada bem antes. "Em 1904, Gonçalves Viana, foneticista, filólogo e lexicólogo português, apresentou, em um volume intitulado Ortografia nacional, uma proposta de simplificação ortográfica", conta Elis de Almeida Cardoso, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Essa obra sugeria, por exemplo, a supressão de símbolos de etimologia grega, como o ph, de pharmácia. "Em 1907, as influências de Gonçalves Viana já haviam chegado ao Brasil. Nesse ano, foi elaborado pela Academia Brasileira de Letras (ABL), a partir de uma proposta de Medeiros de Albuquerque, um projeto de reformulação ortográfica", acrescenta Elis.

    Embora essas propostas fossem semelhantes, apenas em 1915 a ABL aprovou um projeto do filólogo Silva Ramos, que ajustou a reforma brasileira aos padrões da portuguesa, de 1911. E, mesmo assim, ela ainda teria suas idas e vindas. "Em 1919, o Brasil revoga, por indicação do acadêmico Osório Duque Estrada, tudo que tinha sido estabelecido em 1907", comenta Elis, referindo-se ao poeta parnasiano autor da letra do Hino Nacional Brasileiro. Em 1931, Brasil e Portugal enfim assinam um acordo. "Depois de oficializado em 1933, o acordo de 1931 é derrubado pela Constituição brasileira de 1934, que mandava voltar à ortografia da Constituição de 1891. Só em 1938, a paz ortográfica é restabelecida, com a volta do acordo de 31", finaliza. Inicia-se, ali, um processo de uniformização da ortografia brasileira e portuguesa, que culminou em um novo acordo assinado em 1943.

    CIZÂNIAS EM OUTROS IDIOMAS Segundo Cagliari, da Unesp, esses embates também ocorreram em relação a línguas como o francês e o inglês, mas nunca resultaram em mudanças significativas. "A língua francesa tem uma longa tradição de brigas no sentido de procurar modificar sua ortografia. Na prática, muito pouca coisa foi mudada nos últimos séculos. A difusão dos livros agiu como uma força conservadora acima da vontade de muita gente interessada em mudanças ortográficas", afirma Cagliari, dando como exemplo a influência da obra L'Orthographe, publicada por Claire Blanche-Benveniste e André Chervel em 1978.

     

     

    "Com relação à língua inglesa, não é muito diferente. A Austrália resolveu adotar uma ortografia própria, porque os australianos achavam que pronunciavam diferentemente as palavras. A reforma durou pouco e eles voltaram atrás. Por outro lado, basta abrir os corretores ortográficos dessas línguas e vamos encontrar muitas variantes locais, dialetais. As diferenças passaram a fazer parte de uma tradição de uso dessas variedades da língua, sem a necessidade de unificação". Cagliari acrescenta que países como a França, os Estados Unidos e a Inglaterra não possuem leis ortográficas, e têm apenas uma tradição escrita, que vai se modificando aos poucos.

    Já as colônias americanas da Espanha começaram cedo a propor alternativas em relação às normas da Real Academia Española (RAE). Em 1823, o venezuelano Andrés Bello publicou, em Londres, a obra Indicaciones sobre la conveniencia de simplificar la ortografía en América. Algumas das simplificações sugeridas por Bello foram incorporadas, em 1844, à proposta feita pela Faculdade de Filosofia da Universidade do Chile ao governo de seu país, a qual também foi adotada na Colômbia, na Venezuela, no Equador, na Argentina e na Nicarágua. Até mesmo a Academia Literária e Científica de Professores de Instrução Primária de Madrid, na Espanha, já havia adotado simplificações propostas por Bello.

    Naquele mesmo ano de 1844, no entanto, a rainha Isabel II, da Espanha, decretou que apenas as normas da RAE deveriam ser seguidas. Na América Latina, o Chile foi o último país a manter a ortografia sugerida por Bello até 1927, quando aderiu às normas da academia espanhola. Apenas no final do século passado, a RAE incorporou em suas edições do Diccionario de la lengua española e da Ortografía de la lengua española as variações dialetais da Espanha e dos países americanos. Em 1997, o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez sugeriu o retorno às propostas de Bello, durante o Primeiro Congresso Internacional da Língua Espanhola, realizado no México com a presença de linguistas, escritores e autoridades como o rei da Espanha. No evento, a sugestão causou muita polêmica e nenhum entendimento. Cá e lá, o embate entre tradição oral e escrita, usos e costumes, literatos, filólogos e linguistas permanece vivo e aquecido, como a linguagem praticada por qualquer povo ou nação.

     

    Rodrigo Cunha